Gigantes tecnológicos como a Apple, Google, Microsoft, Dell e Tesla estão a ser julgados por se aproveitarem do trabalho de crianças nas suas baterias. “Esta miséria está no meu bolso, está na minha mão quando vejo os SMS, estou nas redes sociais ou falo consigo”, explicou ao i Siddharth Kara, responsável pela investigação.
Quando nos falam em produção “artesanal”, provavelmente pensamos em atenção ao detalhe, qualidade ou respeito pelas tradições. Mas na República Democrática do Congo, prospeção artesanal de cobalto significa pessoas pobres, frequentemente crianças, a escavar em rochas soltas, com pequenas pás, às vezes com as mãos, expostas a metais pesados e fumos tóxicos. Cavam túneis que chegam aos 30, 40 metros de profundidade, sem vigas ou estruturas de segurança, que frequentemente colapsam. O cobalto que mineram é essencial para as baterias de lítio, utilizadas em quase todos os nossos equipamentos, produzidos por algumas das empresas mais ricas do mundo, como a Apple, Google, Microsoft, Dell ou a Tesla. São apenas alguns dos gigantes tecnológicos que enfrentam um processo na justiça norte-americana, desde a semana passada, por cumplicidade com o trabalho infantil. É movido por 14 familiares e vítimas, com o apoio da International Rights Advocates.
O i falou com Terry Collingsworth, advogado e diretor desta ONG. Quisemos saber qual é a probabilidade de que os telemóveis que usámos na nossa conversa tivessem cobalto minerado por crianças. “Perto de 100%, se não 100%”, assegurou Collingsworth. “Cerca de 60% da produção global de cobalto vem da RD Congo, e quase deste um terço vem de prospeção artesanal, que inclui crianças. No final é tudo misturado e fundido junto, haverá sempre uma porção de cobalto minerado por trabalho infantil”, explicou Siddharth Kara, investigador e professor na Universidade de Harvard, cuja pesquisa resultou no processo judicial.
O investigador tem sido um visitante frequente do chamado Copperbelt – ou “cinturão do cobre” – que abrange as províncias congolesas de Alto Catanga e Lualaba. É aí que estão a maioria das minas de cobalto, cujo preço disparou na última década. E deverá continuar a subir, à semelhança da procura: os fabricantes de baterias utilizaram 41 mil toneladas de cobalto em 2017, mas a estimativa é que usem 117 mil toneladas em 2025. É essencial para o boom tecnológico, que gerou biliões para as empresas envolvidas, mas deixou um resto de miséria no fundo desta cadeia, no sudeste da RD Congo. “Aldeias inteiras são arrasadas por bulldozers quando um depósito de cobalto é descoberto. Enormes porções do território foram devastados, florestas cortadas e enormes minas construídas”, conta Siddharth. “É quase impossível ganhar a vida de outra maneira que não seja na prospeção”.
É uma indústria desumana, assegura o investigador, onde “os salários pagos aos adultos envolvidos mal chega a um ou dois dólares por dia”. Algo que força as crianças a contribuir para a sobrevivência da família, e é agravado pelo custo da educação na RD Congo, acrescenta Siddharth: “É quase impossível de compreender, mas uma mensalidade de seis dólares é a diferença entre ter uma educação ou morrer numa mina de cobalto”. Um círculo vicioso, “por ser um trabalho tão perigoso. Se um pai, mãe ou irmão mais velho fica aleijado ou morre, ainda é mais premente que a criança abandone a escola e entre no setor mineiro”, explica o investigador, que documentou vários casos de prospetores órfãos, que perderam ambos os pais nas minas. Além disso, muitas vezes adultos formam grupos de cinco ou seis crianças, que forçam a trabalhar para si. “Metade dos miúdos que representamos passaram por isso”, afirma Collingsworth. A mais absoluta miséria junta-se ao tráfico humano. “É uma combinação dos dois fatores”, nota o advogado.
Entretanto, os prospetores artesanais vão sendo expostos a níveis elevadíssimos de cobalto. “Por vezes vemos mulheres e crianças – toda a gente, aliás – com tosse e dermatite de contacto”, conta Siddharth. Já os cientistas alertam que concentrações elevadas de cobalto podem causar problemas cardíacos e de visão. Como se verificou nos anos 60, quando uma empresa canadiana adicionou cobalto à cerveja, para ter uma espuma mais consistente – rapidamente foi relacionado com um aumento nos ataques cardíacos. Outros efeitos, a longo prazo, estão por estudar. ”Irá uma percentagem elevada desta população desenvolver cancro mais tarde, assumindo que vivem o suficiente para isso, antes de serem enterrados vivos? Não sabemos”, declara o investigador.
Tudo isto com o apoio tácito de multinacionais de mineração, como a chinesa Zhejiang Huayou Cobalt e a britânica Glencore, segundo se lê no processo. Quer seja em minas formais – propriedade destas empresas – ou informais – à beira de um rio ou no meio do campo – os prospetores artesanais vendem o cobalto a intermediários, que revendem às multinacionais. “Montam pequenas tendas cor-de-rosa e pintam com spray algo como ‘loja de cobalto’”, conta Siddharth, explicando que, de certa forma, “os minerais estão a ser lavados”.
“Se acontece algum acidente que chega aos media – o que quase nunca acontece – ou se alguém questiona porque é que têm prospetores artesanais nas minas, a resposta é sempre: ‘eles estão ali ilegalmente, não deviam estar ali, etc., etc.’. Ao mesmo tempo, esse trabalho é usado para aumentar a produção de cobalto a custo zero”, assegura o investigador. Já Collingsworth acrescenta: “Eles sabem o que estão a fazer. Estive lá duas semanas e observei-o, está ali, à vista de todos, é tão óbvio. Não podem dizer que não sabiam. E é só isso que temos de provar, que eles foram cúmplices conscientes deste esquema”.
A relação entre estas multinacionais de mineração e gigantes como a Apple, Google, Microsoft, Dell, ou a Tesla é em tudo semelhante. Os abusos na RD Congo são conhecidos há anos, com investigações de jornais como a Bloomberg, que expôs o caso em 2008, bem como relatórios de organizações não governamentais. “A Amnistia Internacional contactou estas empresas e questionou-as. Todas as empresas reagiram emitindo comunicados, garantindo que o trabalho infantil era proibido aos seus fornecedores, mas não fizeram nada”, critica o advogado das vítimas.
Tentáculos globais
Há poucas dúvidas de que o Estado congolês esteja envolvido nestes abusos. “As forças armadas congolesas estão muito presentes por toda a região de prospeção de cobalto. Bem como forças menos convencionais, como milícias”, conta Siddharth. Fez a sua investigação com o apoio de ONG’s congolesas, que já tinham a confiança e faziam parte da comunidade – não foram identificadas para evitar retaliações violentas. O mesmo se passa com os queixosos. “Se se sabe que alguém falou a forasteiros sobre estas condições, não verão outro nascer do sol”, afirma o investigador. Para os militares e milícias no terreno, “o silêncio, secretismo e falta de transparência são fundamentais para manter o negócio a todo o vapor, com o máximo de lucros”.
Entretanto, a Glencore – o maior vendedor de matérias-primas do globo – está a ser investigada pela justiça norte-americana, por corromper o Governo do Congo. Os chamados Paradise Papers revelaram que, em 2009, a Glencore emprestou dezenas de milhões de dólares ao multimilionário israelita Dan Gertler, para que conseguisse um acordo favorável à multinacional britânica.
Note-se que, em 2001, uma investigação das Nações Unidas revelou que Gertler ofereceu cerca de 18 milhões de euros ao Presidente congolês Joseph Kabila, para que comprasse armas. Acabou a conseguir que o Estado congolês não cobrasse uma dívida de quase 400 milhões de euros à Glencore – mais do que o orçamento da RD Congo para a Educação.
Os tentáculos da Glencore são cada vez mais visíveis, um pouco por todo o globo. A multinacional foi uma das indiciadas por corrupção no Brasil, na operação Lava Jato. Juntamente com outras três empresas, é acusada de pagar o equivalente a quase 14 milhões euros em subornos a funcionários da Petrobras, a empresa energética semiestatal brasileira. “As empresas investigadas pagavam propinas a funcionários da Petrobras para obter facilidades, conseguir preços mais vantajosos e realizar contratos com maior frequência”, lia-se num comunicado da Procuradoria-geral da República do Brasil, de 2018. A Glencore também é acusada de praticar crimes semelhantes na Venezuela, subornando funcionários da PDVSA, a empresa petrolífera estatal.
Apesar do poder da Glencore, uma empresa britânica sediada na Suíça, importa salientar que os chineses da Zhejiang Huayou são os verdadeiros pesos pesados na RD Congo. Fala-se numa corrida ao cobalto entre superpotências, desencadeada pela sua importância para o setor tecnológico, mas Siddharth discorda. “Não é uma corrida, a China já domina”, nota. As estatísticas mostram que a maioria da extração de cobalto na RD Congo é dominada por interesses chineses. O resto vem em parte da Austrália, mas sobretudo de países como o Zâmbia e Cuba, com grande presença da China. Que, além disso, também domina a indústria de refinação do minério – têm cerca de 80% do mercado. “Eles podem fechar a torneira global de cobalto amanhã, se quiserem”, assegura o investigador.
“Uma história que se repete”
A prospeção de cobalto ocorre na antiga província de Catanga, onde se estabeleceram boa parte dos europeus quando o Congo era uma colónia belga. Há um eco colonial nas ações destas empresas multinacionais? “Claro, é uma história que se repete para as pessoas do Congo. Há uma centena de anos, era o Rei Leopoldo e, depois, o Estado belga a explorar os recursos que eram valiosos na altura, incluindo borracha e depois metais, como cobre e ouro. Interesses estrangeiros, que pilham o povo e o ambiente do Congo para se enriquecerem a si mesmos”, considera Siddharth, acrescentando: “É a mesma história. Simplesmente há um sistema diferente, um pouco mais reluzente e bem polido. E desta vez o recurso é o cobalto”.
Aliás, muita da constante instabilidade na RD Congo desde a independência teve origem no Catanga, com os seus enormes jazigos de minerais. Foi na região, em 1961, que foi torturado e morto o primeiro primeiro-ministro eleito na RD Congo, Patrick Lumumba, às mãos dos independentistas catangueses, liderados por Moïse Tshombe, um empresário do setor mineiro – contava com o apoio da Bélgica, França e África do Sul. Lumumba foi capturado pelo então coronel Joseph-Désiré Mobutu, que manteve o país sob um reinado de terror durante mais de três décadas. “Certamente que a pobreza e instabilidade, corrupção e quebra do Estado de direito, facilitam a exploração e da região e da sua população”, salienta Siddharth.
Miséria no bolso
Por vezes, ao longo da conversa, o tom de Siddharth torna-se emotivo. Sobretudo quando fala dos casos do colapsos de túneis, de crianças enterradas vivas. “Destroem a alma”, diz o investigador. “Ter uma mãe a descrever-lhe isso, a imaginar o terror e o medo que o filho sentiu, enquanto sufocava lentamente no escuro, completamente sozinho...“. Por momentos, faltam-lhe as palavras para continuar. “É um pesadelo. Pensar que esse tipo de miséria está no meu bolso, está na minha mão quando vejo os sms, estou nas redes sociais ou quando falo consigo, é demasiado para processar”, desabafa.
“Quando o professor Kara voltou da sua última viagem, ele conhecia o meu trabalho como advogado. Contactou-me e disse: ‘Temos de voltar. Quero que vejas isso, temos de tentar ajudar estas crianças’. Dois meses depois estávamos num avião a caminho da R D Congo”, conta Collingsworth. Hoje, assegura: “Faço trabalho de direitos humanos há quase quarenta anos, mas este é o pior caso em que trabalhei”. O advogado recorda o caso de uma mulher, listada no processo como Jane Doe 1, cujo sobrinho foi enterrado vivo numa derrocada. “Quando a entrevistei estava histérica, nem se pôde despedir dele. Disse-me: ‘por favor ajude-me, as nossas crianças estão a morrer como cães’. Ali toda a gente conhece um miúdo enterrado nas minas”.
Ambos os ativistas não hesitam em apontar o dedo às grandes empresas tecnológicas, que consideram cúmplices desta tragédia. “Eles podiam resolver este problema rapidamente. Não custaria muito em termos de recursos ou esforço para garantir segurança, dignidade, empregos formais, salários que permitam viver, escolas, clínicas”, acusa Siddharth. Tudo por uma fração dos lucros destas multinacionais, dependentes do cobalto.
Até agora, estas empresas têm seguido “guião do costume”, nas palavras de Collingsworth. “Primeiro são apanhados e negam. Depois, quando não podem negar, porque as provas estão a acumular-se, emitem alguma política da treta e dizem: ‘ok, resolvemos o assunto’. Tentam convencer o público com fraude e programas modelo, são apanhados outra vez e depois processados”, resume o advogado, garantindo: “Já não acreditamos neles”. Em 2016 foi criada a Responsible Cobalt Iniciative, por parte das autoridades chinesas. Juntou empresas como a Apple Inc, Sony Corp, Volvo e a Mercedes-Benz Cars – Collingsworth fala numa única mina modelo. “A realidade no terreno, que vi com os meus próprios olhos, não reflete qualquer iniciativa responsável no que toca à extração de cobalto”, garante Siddharth.
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