Análise do poema “Qualquer dia”O Inverno representa o sombrio e frio regime político que governou Portugal, de 1933 até 1974. Ao longo desse tempo, foi necessário: “bater o queixo”, pois muitos calaram o medo e o sofrimento em tiveram de viver; tiveram de apertar o cinto, porque houve fome, miséria e muitas privações.
A personificação “o vento assobia” aparece como uma alusão às notícias que circulavam, como que levadas pelo vento, isto é, por alguém que as conhecia. Assobiavam os rumores e as notícias das vítimas de perseguições, de torturas, de maus-tratos, da guerra colonial, de fugas a perseguições que conduziram ao exílio.
Era preciso pôr lume para aquecer a vida e ficar à espera, pois o “Inverno” era muito rigoroso e não havia “mantas na manhã fria”, isto é, não havia protecção que desse liberdade de reunião, de expressão e de opinião aos cidadãos do país.
Num Inverno como esse, a «lenha verde não ardia», porque as ideias novas não alimentavam a “fogueira”, uma vez que só as ideias “maduras”, daqueles que defendiam o sistema e a Situação, “ardiam” e faziam sentido.
O frio marcava profundamente aqueles que lutavam para aquecer as suas vidas com o calor da liberdade e com as vivências democráticas. O frio estava estampado nas fábricas, nas escolas, nas prisões, nas perseguições brutais, nas vivências sociais e humanas e na ausência de princípios cívicos e democráticos.
Muitos conspiraram em silêncio (No Inverno penso muito): pensaram muito e anteviram a liberdade (Oh que coisas eu já via); ganharam ódio ao regime e à situação política, com ou sem vontade de o fazer (E juro que o não queria).
O Inverno continuava a deixar marcas no tempo de Marcelo Caetano, com cargas policiais, perseguições, prisões, tortura e sofrimento, mas terminaria um dia, (“Qualquer dia”), para ajudar a concretizar os sonhos dos poetas, dos cantores e de muito mais gente.
“Qualquer dia”, um dia qualquer, um dia num futuro próximo, a liberdade chegaria, para levar os rigores do Inverno, provocados pelos dominadores do regime, e trazer o Sol, a Luz, a libertação. Era essa a ânsia e o desejo profundo e utópico de Zeca Afonso e de outros autores de poemas e de canções.
Neste poema, há a antevisão de um futuro diferente para os portugueses, a contrastar com o mau tempo proporcionado pelo regime político que vigorava há muito tempo. Seria este um desejo liminar e pré-figurativo da liberdade que nasceria num dia de Abril.
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A simbologia das palavras: os sentidos implícitos nas canções de Zeca Afonso e a revolução silenciosa”, Albano Viseu. In: Revista 3 do CEPHIS (Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social de Trás-os-Montes e Alto Douro), setembro de 2013. Coimbra, Terra Ocre edições/Palimage.
Texto de apoioZeca Afonso fez parte de um movimento criador de sentidos e conseguiu, como outros cantores de intervenção, mobilizar toda uma massa humana que se tornou permeável aos apelos empolgantes e transformadores, transmitidos nas letras das suas canções. Esse movimento deu sentido à contestação dos fenómenos sociais que inquietavam a sociedade portuguesa e conseguiu, ao detetar esses males, abrir brechas no velho edifício estruturado do Estado Novo. Cantou-se e viveu-se em surdina, tendo-se partilhado conceitos e ideias encobertos nos sentidos implícitos das canções. Essa revolução silenciosa preparou o povo português para a mudança e para a revolução de Abril.
[…]
Zeca Afonso serviu-se de dois instrumentos estratégicos para transmitir mensagens políticas e enganar a censura do Estado Novo: através da temática escolhida, sugeria e não revelava; através do estilo adotado, possibilitava a crítica velada, recorrendo ao hábil estratagema da plurissignificação dos signos utilizados e dos recursos expressivos escolhidos:
‑ as metáforas e as imagens enriqueceram a linguagem simbólica;
‑ a ironia e a sátira foram utilizadas como método para criticar o regime;
‑ o estilo simples, a rima, o ritmo e as repetições contribuíram para que as mensagens fossem mais facilmente transmitidas e memorizadas e servissem de impulso mobilizador, conduzindo à ação;
‑ a utilização da quadra tornou mais permeável a forma de cantar e de divulgar aspetos essenciais, fazendo com que estes ficassem mais acessíveis;
‑ os jogos de paralelismo, a técnica do leixa-pren (repetição do último verso ou de algumas palavras do último verso de uma estrofe no primeiro verso da estrofe seguinte), a imitação da forma de cantar dos coros alentejanos criaram unidade, melodia e a vontade de cantar;
Outros recursos utilizados: adjetivação, personificação, antítese, enumeração, interrogação retórica, sinédoque, aliteração, eufemismo, perífrase, exclamação, apóstrofe e anástrofe.
O público ouviu as canções de intervenção, cantou-as em reuniões e em convívios, o que acabou por contribuir para a rápida divulgação do seu conteúdo e da sua mensagem.
Os temas acabaram por ajudar a reconhecer o que era cantado, tornaram-se essenciais e proporcionaram a adesão do público. Apelaram à luta, contra os males da Situação – os Vampiros, a guerra colonial (Menina dos Olhos Tristes) e o Inverno duradouro do regime (Qualquer dia) –, à unidade necessária (Venham mais cinco), à procura de um libertador e da libertação (Canto Moço) e à celebração da vitória de um povo livre (Grândola, Vila Morena).
Zeca Afonso, ao utilizar uma temática ligada à realidade social do seu tempo, teve em vista: apelar à unidade; criticar a questão colonial; divulgar flagelos sociais (as mortes provocadas pelo regime e pela guerra colonial, os desertores, a emigração clandestina, a pobreza), consciencializar as pessoas sobre a situação social, económica e política que se vivia no país; dar esperança e encorajar; agitar as pessoas, levando-as a refletir sobre a sua passividade e convidando-as a tomar a iniciativa; apelar à mudança.
Bibiliografia“
A simbologia das palavras: os sentidos implícitos nas canções de Zeca Afonso e a revolução silenciosa”, Albano Viseu. In: Revista 3 do CEPHIS (Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social de Trás-os-Montes e Alto Douro), setembro de 2013. Coimbra, Terra Ocre edições/Palimage.