quinta-feira, 30 de abril de 2020

Daniel Christian Wahl, biólogo: "O ‘normal’ a que ansiamos voltar não é 'normal'






Perante a crise atual provocada pela pandemia de Covid-19 e a pensar na crise climática, “os governos deviam investir sabiamente para construir uma economia regenerativa local ou regional mais resiliente”, defende o biólogo e ativista Daniel Christian Wahl em entrevista ao Expresso

A atual crise “está a mostrar-nos como é frágil o castelo de cartas da economia global que está a matar o planeta”, diz Daniel Christian Wahl. Este biólogo e influente pensador, que se dedica à conservação do equilíbrio do ecossistema terrestre, defende a necessidade de um novo paradigma, assente “no reforço da resiliência comunitária através de economias biorregionais”, para fazer frente à crise climática e à atual pandemia. Esta quinta-feira, às 15h, exporá as suas ideias numa conferência em ‘live streaming’ na Culturgest. Para já lembra que “o ‘normal’ a que ansiamos voltar não é ‘normal’”.

Acha que a natureza nos está a enviar uma mensagem com esta crise pandémica?
Nós somos natureza e uma das principais razões porque nos colocámos nesta alhada é por pensarmos que estamos fora da natureza. Estamos a meio da sexta extinção em massa, com uma perda de biodiversidade cada vez mais rápida e o desaparecimento em cascata de ecossistemas em todo o mundo. É isto que torna a expansão de pandemias mais provável. O nosso estilo de vida hipermobilizado. Voamos para encontros que podem acontecer por videoconferência. Emociono-me ao ver as imagens de médicos de hospitais em Espanha ou Itália a ter de decidir quem vive e quem morre. E sinto-me chocado quando leio que há cinco milhões de crianças a morrer por dia nos países mais pobres porque não têm acesso a água potável. Cada um de nós é cúmplice deste sistema de assassinatos. O ‘normal’ a que ansiamos voltar não é ‘normal’. E esta é uma oportunidade para percebermos isso.

E vamos mudar?
Essa mudança é irreversível. Esta crise está a mostrar-nos como é frágil o castelo de cartas da economia globalizada que usa enormes quantidades de recursos para mover materiais e pessoas em redor do mundo de uma forma que está a matar o planeta. Em relação à atual pandemia, é tempo de os Governos serem honestos e dizerem que as medidas que são agora impostas terão de continuar por provavelmente mais 6 a 12 ou mesmo 18 meses. E é melhor as pessoas habituarem-se a isso.

E porquê a necessidade de se ‘habituarem’?
Porque assim podem criar resiliências locais e regionais para enfrentarem o que aí vem. Cada vez virão menos alimentos e recursos de outros cantos do mundo. No hemisfério Norte é agora altura de lançar as sementes à terra. Eu aconselharia quem tem um jardim ou uma varanda a cultivar umas ervas aromáticas ou cenouras, nem que seja só para se manter são de espírito no confinamento caseiro. Valerá a pena. É uma forma divertida de estar com os filhos e de lhes ensinar alguma coisa sobre cultivo de alimentos.

Também por uma questão de prevenção?
Não temos a certeza de quão seguras são as redes de abastecimento de alimentos. Precisamos de criar comunidades mais resilientes, de regionalizar a produção e o consumo e de dar às pessoas a soberania sobre comida que comem, a energia e água que utilizam. O vírus está de uma forma acelerada a obrigar-nos a fazer estas coisas. Esta é a primeira de muitas outras grandes pandemias neste século e a primeira de muitas disrupções globais neste século. A vida tornou-se muito frágil devido ao nosso estilo de vida ao longo dos últimos 250 anos. E a forma mais sensata de seguir em frente é dar uma resposta às alterações climáticas e ao Covid 19 e seguir o caminho de reforço da resiliência comunitária apostando em prósperas economias biorregionais. Espero que o façamos em solidariedade global. Mas é tempo de nos focarmos nas comunidades locais e na escala regional, para construirmos as infraestruturas que nos possam ajudar a navegar num futuro muito incerto.

Há quem tema que após esta crise, os Governos decidam seguir o caminho do ‘business as usual’. Como levar os líderes a não seguirem esse caminho?
Há muita incerteza e é difícil afirmar o que quer que seja. Como consultor de alguns governos nacionais e regionais em várias partes do mundo, posso dizer que uma pandemia viral sempre esteve entre os cenários projetados. Devemos agir, assumindo que, em último caso, chegamos ao colapso económico e que não será fácil ligar os motores e voltar aos negócios como de costume. Os Governos deviam colocar a funcionar moedas locais ou tê-las prontas em caso de o euro colapsar. O mais provável é que nem o dólar nem o euro sobrevivam a isto. Espero estar errado. Precisamos de nos preparar para ajudar as populações a aceder às suas necessidades básicas ao nível biogerional quando saírem do confinamento.

Temos de acabar com a globalização e com o capitalismo como os conhecemos? É aqui que entra o seu conceito de cultura e economia regenerativa?
Durante anos, a economia hiper globalizada tem sido cega perante o facto de o bem estar real de uma comunidade depender mais de relações locais e regionais. No modelo da economia capitalista vigente, a externalização dos custos sociais e ambientais não são tidos em conta. Agora que estamos obrigados a injetar grandes quantidades de dinheiro para enfrentar esta pandemia de covid-19 à escala global, os diferentes governos deviam usar esses investimentos sabiamente para construir uma economia regenerativa local ou regional mais resiliente. E podemos fazê-lo por exemplo produzindo máscaras e proteções individuais para o vírus a nível local ou regional.

Isso pode levar ao ‘cada um por si’?
Claro que não pode ser cada um por si. Não é esse o objetivo. Não teremos uma base moral se não olharmos para o que se passa noutros pontos do globo. Temos de ser solidários. E este vírus vem mostrar-nos que temos um inimigo comum, capaz de fazer a humanidade unir-se e colaborar criando condições para que haja vida.

A conferência desta quinta-feira será por ‘live streaming’. Será a norma no futuro?
Estamos todos a aprender que há muita coisa que podemos fazer sem viajar.

A União Europeia está a trabalhar no Pacto Ecológico Europeu (Green Deal). O que pensa deste pacto e o que lhe pode acontecer em consequência desta crise?
Defendo um Green Deal em que os investimentos devem ser feitos em infraestruturas de energias renováveis, como a eólica e a solar, à escala bioregional e que devem ser as pessoas a deter essas infraestruturas e não as grandes empresas. Também precisamos de reinventar a política agrícola comum, de modo a voltar a apoiar os produtores locais e regionais, que têm um papel essencial como guardiões da saúde do solo, da água e dos ecossistemas. Este pacto é uma grande oportunidade para a inovação transformativa que conduz a uma economia regenerativa que apoia culturas regenerativas locais. Porém, muita da inovação em que se baseia o Green Deal tem na base tecnologia verde que propaga o ‘business as usual’. Isso apenas nos dá lagartas com asas, mas não as transforma em borboletas. A inovação transformativa permite-nos deixar morrer as infraestruturas antigas, que já não nos servem, e construir novas, tal como a lagarta tem de sofrer uma grande transformação para ser uma borboleta.

Será essa uma das mensagens que vai passar na teleconferência desta quinta feira?
Inicialmente a conferência era sobre como reconstruir economias saudáveis com base em economias regenerativas locais. Terá essa a linha condutora, mas como a situação hoje é diferente da de há umas semanas, chegará às pessoas de uma forma diferente. Há uma nova urgência. Há uma nova oportunidade de fazer as coisas de forma diferente na resposta a este vírus. Temos de ligar a resposta à covid-19 à resposta à catástrofe das alterações climáticas. Para implementar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável temos de ir mais além. Não podemos voltar ao ‘business as usual’.

É um optimista ou um cético face à capacidade de o Homem fazer a escolha certa?
Cito Einstein e digo que sou um pessimista para o século XXI e um otimista para o século XXII. Precisamos de estar conscientes de que aplicar de forma activa a ideia de culturas regenerativas a nível local vai melhorar a nossa qualidade de vida. Mas seria uma visão demasiado colorida pensar que uma mudança destas acontece de um dia para o outro quando devia ter começado há 50 anos. Temos de perceber que só reintegrando-nos, é possível a construção de uma relação saudável da humanidade enquanto natureza. Só assim é possível começar a construção desta catedral em que uma geração começa, uma nova geração continua e provavelmente uma terceira acaba e vê a catedral finalizada. Serão os nossos filhos ou netos que colherão os frutos

Saber mais: 

Página oficial

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Covid-19: o isolamento está a mudar até a maneira como a Terra se move

Uma redução no ruído sísmico devido a mudanças na atividade humana é um benefício, asseguram geocientistas.

Fonte: aqui
É verdade que a pandemia trouxe caos às nossas vidas – e à economia – um pouco por todo o mundo, mas os esforços para conter a propagação do vírus podem estar a ter outros efeitos. Por exemplo, que o próprio planeta se está a mover um pouco menos.  
Os investigadores que estudam o movimento da Terra estão a relatar uma quebra no ruído sísmico, que é o nome dado àquele zumbido das vibrações na crosta do planeta – e estão convencidos de que julgam que é resultado da baixa considerável das atividades humanas. O grande benefício? Poderá ser possível detetar terramotos menores e intensificar a atividade vulcânia e outros eventos similares.  
“Uma redução de ruído desta magnitude ocorre geralmente, por um período muito breve, na época do Natal”, nota Thomas Lecocq, um sismólogo do Observatório Real da Bélgica em Bruxelas, onde a queda dos valores foi observada.  
A explicação, lê-se na revista Nature, é relativamente simples: assim como eventos naturais (por exemplo, terremotos) fazem com que a crosta terrestre se mexa, o mesmo ocorre com as vibrações causadas por veículos em movimento e máquinas industriais. E embora os efeitos de fontes individuais possam ser pequenos, o ruído de fundo que produzem em conjunto reduz parte da capacidade dos sismólogos de detetar outros sinais que possam ocorrer na mesma frequência. 

“A queda é enorme”

Os dados que a equipa de Lecocq recolheu, no Observatório Real da Bélgica, revelam que o ruído sísmico induzido pelo homem caiu mesmo cerca de um terço e a informação está a despertar a atenção de outros cientistas.  
“Se o estado de confinamento se prolongar nos próximos meses é expetável que haja um afinamento tanto na deteção de tremores secundários como de eventos maiores”, avança Andy Frasseto, sismólogo do IRIS, um consórcio de pesquisa universitário dedicado a explorar o interior da Terra, situado em Washington, nos EUA.   
Um tweet de Celeste Labedz, estudante de geofísica no Instituto de Tecnologia da Califórnia, do outro lado dos Estados Unidos, dava também sinal do mesmo: “A queda é enorme”, comentou, em resposta a um sismólogo do Imperial College de Londres.
No entanto, nem todas as estações de monitorização do movimento sísmico terão um efeito tão pronunciado quanto o observado em Bruxelas, observa Emily Wolin, geóloga do Serviço Geológico dos EUA em Albuquerque, Novo México. E porquê? Muitas estão propositadamente localizadas em áreas remotas, para evitar o ruído humano. Aí, nota a cientista, será certamente menor.

Eco-regimes – Valorizar serviços prestados pelos Agricultores – Pedro Santos



O recente artigo “Os pagamentos eco regime: uma medida de política fundamental para a viabilidade e sustentabilidade futuras das explorações agrícolas portuguesas”, do Prof. Francisco Avillez, é o primeiro, e um excelente, contributo para uma discussão essencial relacionada com este novo instrumento da PAC. Por isso, deixo aqui uma reflexão sobre a importância destes pagamentos e o seu potencial de aplicação à nossa agricultura.

ENQUADRAMENTO

Segundo a proposta de reforma da PAC apresentada pela CE, os Estados Membros terão de especificar regimes voluntários no domínio climático e ambiental, os tais eco-regimes, para apoiarem os verdadeiros agricultores (genuine farmers, na redação inglesa) que se comprometam com práticas agrícolas benéficas para o clima e para o ambiente.

Estas práticas terão de responder aos três objetivos específicos da PAC definidos para este domínio:

  • Contribuir para a adaptação às alterações climáticas e para a atenuação dos seus efeitos, bem como para a energia sustentável
  • Promover o desenvolvimento sustentável e uma gestão eficiente de recursos naturais, como a água, os solos e o ar
  • Contribuir para a proteção da biodiversidade, melhorar os serviços ligados aos ecossistemas e preservar os habitats e as paisagens
Mas as práticas definidas para serem passíveis de pagamentos por eco-regimes terão de ir além dos requisitos da condicionalidade (a definição das “fronteiras” da condicionalidade é o primeiro passo para construir os possíveis acréscimos nos pagamentos) e terão de ir além dos requisitos mínimos legais associados à utilização de inputs (fertilizantes e produtos fitossanitários) e ao bem-estar animal. Além disso, deverão também ser intervenções diferentes das medidas agroambientais.

Apesar dos eco-regimes serem financiados pelo I Pilar da PAC (ou seja, sem cofinanciamento nacional) e as medidas agroambientais estarem enquadradas no II Pilar da PAC, a diferença entre os eco-regimes e as medidas agroambientais é muito ténue.

Os eco-regimes assumem a forma de pagamento anual por hectare, sendo este concedido através de pagamentos adicionais ao pagamento base (o conceito de “top up”) ou como pagamentos para compensar os beneficiários pela totalidade ou por uma parte dos custos adicionais suportados e pela perda de rendimentos resultante de compromissos assumidos.

As medidas agroambientais, que prosseguem os mesmos objetivos, são compromissos assumidos por um período plurianual (cinco a sete anos) e concretizam-se através de pagamentos que compensem os beneficiários pela totalidade ou por uma parte dos custos adicionais suportados e pela perda de rendimentos resultante de compromissos assumidos.

Na prática, os eco-regimes serão de adesão anual, podem ser apoios acrescidos ao pagamento base e são exclusivos dos verdadeiros agricultores. Este aspeto é muito importante porque relaciona a atribuição destes apoios aos agricultores que verdadeiramente produzam e atuam sobre o território e, dessa forma, podem ser um importante instrumento para dar maior legitimação aos pagamentos diretos. Num modelo em que se opte por um pagamento base de valor reduzido, os eco-regimes serão responsáveis por uma fatia muito importante dos apoios diretos.

Há a acrescentar que estes eco-regimes deverão ser medidas de aplicação anual (renováveis, mas cujo compromisso pode ser apenas de um ano), pagas anualmente e sujeitas a controlo anual; este ponto relativo ao controlo terá de ser bem avaliado para que as necessidades de cumprir regras de controlo não sejam impeditivas de tomar as decisões mais razoáveis no terreno.

COMO SE PODEM APLICAR
Os eco-regimes devem ser definidos de forma a que seja possível encontrar um modelo que permita a sua aplicação a diferentes modelos de produção e a diferentes geografias. Por isso, a discussão sobre estes instrumentos (e sobre a sua diferenciação relativamente a medidas agroambientais) não se deve centrar apenas nos efeitos de práticas agrícolas que promovam a descarbonização. O carbono tem a grande vantagem de ser “quantificável” e de ter uma grande visibilidade mediática, mas começa a ser redutor centrarmo-nos apenas nessa variável. A discussão deve ser mais abrangente e incluir os diferentes serviços que os agricultores prestam em termos de paisagem, de biodiversidade ou de impactos sociais. Pode ser a oportunidade para valorizar o facto de Portugal ser um dos países com mais biodiversidade na Europa, o que se pode comprovar pela extensão da rede Natura e pelo número e diversidade das reservas da biosfera; estas “condicionantes” são, muitas vezes, vistas como obstáculos, mas podem passar a ser valorizadas e aproveitadas como fator diferenciador da nossa agricultura face a países mais industrializados.

Se nos focarmos na paisagem e na biodiversidade, os atuais mecanismos da PAC já interferem com as questões ligadas ao clima e ambiente, a vários níveis, sendo que muitas vezes as medidas não são totalmente claras, são pouco efetivas ou induzem comportamentos contrários aos desejados. Alguns exemplos:
  1. Os apoios ao rendimento exigem, através da condicionalidade, a proteção de características da paisagem. No entanto, não há um requisito específico nos regulamentos da PAC que indique quais as características particulares a proteger e existem grandes diferenças entre os diferentes Estados-Membros. Para além disso, as regras acabam por se resumir a obrigações de manutenção de elementos da paisagem e não implicam, de todo, as formas de gestão das mesmas
  2. As regras do greening para as Superfícies de Interesse Ecológico (SIE) implicam uma proporção mínima da área arável de uma exploração (>15 ha) para esse fim. Nas diferentes SIE em Portugal, existem apenas as opções com maior facilidade de controlo pelas autoridades nacionais (compreensível, mas redutor), deixando de fora diversas opções que podiam influenciar positivamente a paisagem e a biodiversidade, como sebes, margens de parcelas, muretes, árvores isoladas e em linha, bosquetes, valas, entre outros
  3. A redução de pagamentos para agricultores que possuam elementos de paisagem que sejam consideradas não elegíveis para o cálculo da área que determina o volume dos pagamentos a receber, é um incentivo para que os agricultores removam esses mesmos elementos
Para além disso, a lógica destes apoios está, e vai continuar a estar, ligada à atuação de cada agricultor na sua exploração, quando, na maioria dos casos, os efeitos seriam substancialmente potenciados se fossem adotadas medidas com maior abrangência territorial, ou mesmo de abrangência regional. Mas essa é outra discussão.

No sentido de darmos passos efetivos e que sejam aplicáveis à realidade das explorações nacionais, devemos apostar em eco-regimes que possam gerar benefícios positivos de forma mais imediata (sendo que estes benefícios serão inevitavelmente numa lógica de médio-prazo) e com menores custos de implementação, e apostarmos em medidas agroambientais que possam gerar benefícios a longo-prazo e que necessitem de maior nível de investimento. Alguns eco-regimes podem ter escalas mais pequenas (a medida podem ser m2) e as medidas agroambientais devem focar-se em áreas de maiores dimensões (sempre, em ha).

A narrativa dos serviços dos ecossistemas tem de ser captada pelo setor e potenciada na adoção das medidas dos eco-regimes, com pagamentos “top-up”. Haverá certamente formas complementares de remunerar os muitos serviços dos ecossistemas, mas esta será uma oportunidade para dar importantes passos incrementais. Alguns exemplos:

  • A polinização ou o controlo natural de pragas dependem fortemente da área de habitats seminaturais presentes nas explorações. A preservação destas áreas será cada vez mais importante devido aos efeitos das alterações climáticas. A preservação ou o incremento destes habitas seminaturais pode ser apoiado num eco-regime
  • As parcelas com mais margens possuem maior biodiversidade e o impacto desta nas produtividades e na qualidade de produção é mais elevado. A manutenção (com gestão ativa) das margens culturais pode ser um eco-regime
  • Existe um vasto espectro de variabilidade na eficácia das diferentes medidas atualmente aplicadas nas Superfícies de Interesse Ecológico na biodiversidade. Por exemplo, sistemas agroflorestais, faixas-tampão, sebes, elementos da paisagem e terras em pousio, bem como a manutenção e preservação de lugares arqueológicos. Todos estes elementos são geralmente muito eficazes para promover a biodiversidade e podem ser valorizados através de eco-regimes
  • A plantação de determinadas culturas associadas à alimentação de pássaros ou à preservação de áreas de nidificação de espécies em zonas com potencial de captar atividades de birdwatching são um serviço dos ecossistemas que pode ser abrangido por um eco-regime
  • A adoção de tecnologias de agricultura de precisão e de monitorização da eficiência do uso de fatores será também um potencial eco-regime pelo seu importante contributo na gestão eficiente de recursos e na melhoria da qualidade do ar e da água
No meu ponto de vista, as medidas relacionadas mais diretamente com o aumento da matéria-orgânica do solo, como a agricultura de conservação ou os prados e pastagens permanentes melhoradas terão um enquadramento mais adequado ao abrigo das medidas agroambientais, não excluindo que alguns instrumentos possam ser integrados nos eco-regimes. É uma equação difícil e que marcará a discussão durante muito tempo, até porque poderá conduzir a transferências de dinheiro entre os dois pilares da PAC.

NOTAS FINAIS

Na ausência de dados de base que sustentem muitas das opções a tomar, os Estados Membros terão de garantir que as medidas são monitorizadas de forma sistemática usando dados de referência e modelos adequados. Por exemplo, se houver a intenção de apoiar margens de parcelas para promover as populações de polinizadores, devem ser analisadas essas populações numa amostra de localizações em que a intervenção irá ocorrer, assim como analisar outras localizações de “controlo” onde essas intervenções não ocorrerão. O envolvimento da academia e de institutos de investigação será essencial.

A operacionalização destes eco-regimes será decisiva para a rentabilidade de muitas explorações e será uma excelente oportunidade para valorizar o papel da agricultura e para renovar o contrato social e ambiental com uma sociedade mais urbana.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Coronavirus Is Our Future | Alanna Shaikh | TEDxSMU (legendado)


Global health expert Alanna Shaikh talks about the current status of the Covid-19 coronavirus outbreak and what this can teach us about the epidemics yet to come. Alanna Shaikh is a global health consultant and executive coach who specializes in individual, organizational and systemic resilience. She holds a bachelor’s degree from Georgetown University and a master’s degree in public health from Boston University. She has lived in seven countries and it the author of What’s Killing Us: A Practical Guide to Understanding Our Biggest Global Health Problems. Recent article publications include an article on global health security in Britain’s Daily Telegraph newspaper and an essay in the Annual Review of Comparative and International Education. She blogs on coaching and personal resilience at www.thisworldneedsbrave.com.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Bailado: Dido and Aeneas by Mark Morris Dance Group


Music: Henry Purcell 
Libretto: Nathum Tate

Dancers Dido & The Sorceress: Mark Morris 
Aeneas: Guillermo Resto 
Chorus: Mark Morris Dance Group

Singers Dido & The Sorceress: Jennifer Lane 
Aeneas: Russel Braun 
Chorus: Tafelmusik Chamber Choir

Cinematography: Barbara Willis Sweete

Youtube 

Site

Sobre a Ópera Dido e Eneias

O coronavírus e a batalha da espécie humana

Nestes tempos sombrios gostava de falar de esperança mas baseada no conhecimento. E também de esperança na espécie humana, na nossa criatividade, na nossa capacidade de dar a volta às situações mais difíceis.
António Costa Silva*


Não vamos ter ilusões. A tragédia global provocada pela pandemia do coronavírus é séria e é um dos maiores desafios já colocados à sobrevivência da espécie humana. Parece uma ironia do destino. Há alguns meses atrás estávamos preocupados, e bem, porque a espécie humana, no seu afã de dominar e subjugar a natureza, estava a destruí-la e a caminhar para o apocalipse climático. De repente é a própria espécie humana que é ameaçada pela natureza, na forma de um vírus microscópico, invisível e letal.

A realidade é mais complexa do que todas as nossas frágeis teorias e fundamentalismos. A situação é muito difícil mas é preciso termos esperança. Antes de falar de esperança é bom termos a noção do desafio. Nesta altura, os países confrontam-se com um dilema e há duas estratégias em curso. O modelo epidemiológico do Imperial College, da Universidade de Londres, é crucial para fazermos esta análise. É apenas um modelo e sabemos que os modelos, mesmo os mais avançados do ponto de vista científico, são apenas pálidas imagens da realidade.

O modelo testa as duas estratégias: a primeira, que é a da contenção, seguida na China, Coreia do Sul, Singapura e UE, incluindo Portugal. Significa actuar o mais cedo possível, confinar as pessoas à sua residência, evitar os contactos e tentar achatar a curva que mede o ritmo de propagação do vírus. Esta estratégia funcionou nos países asiáticos. Qual é o inconveniente? Sustém o contágio mas não erradica o vírus. O número de mortes é mais baixo mas quando a quarentena termina o vírus pode voltar e novas quarentenas podem ser necessárias. Isto pode ser insustentável do ponto de vista social e económico.

A outra estratégia é a do Reino Unido, Suécia, EUA e Israel. É uma estratégia que visa criar a imunidade de grupo, isto é, deixar o vírus propagar-se até grande parte da população estar infectada. Isto deve ser feito isolando e protegendo os grupos de risco como os idosos e os doentes. Qual é o inconveniente? O número de mortos pode ser brutal até se criar a imunidade de grupo. O modelo do Imperial College estima que, com esta estratégia, nos EUA podem morrer dois milhões de pessoas e no Reino Unido 500 mil. O preço a pagar é demasiado alto. E isto confronta os governos com grandes dilemas nas decisões que têm de tomar. Por isso, este não é o tempo de atirar pedras. Este é o tempo de nos unirmos à volta das autoridades e das instituições, seguirmos as directivas e as regras terapêuticas, ter em conta que as estratégias de combate não são estanques e podem ser híbridas, que todos estão a aprender com todos e que, no fim, as melhores decisões vão prevalecer para salvar o maior número de vidas.

Nestes tempos sombrios gostava de falar de esperança mas baseada no conhecimento. É a esperança na ciência que muitos desvalorizaram e atacaram ao longo dos últimos anos. O que nos vai salvar não é o obscurantismo, não é a feitiçaria, não é a sorte, não são as seitas que pregam contra as vacinas. O que nos vai salvar é o trabalho denodado dos profissionais de saúde e é o trabalho dos cientistas e dos investigadores para criarem uma vacina. A ciência, a investigação e o conhecimento vão sair mais reforçados desta crise. Vai demorar tempo mas os sinais da investigação que vêm do Japão, da China, da Alemanha e dos EUA são encorajadores. É também a esperança na espécie humana, na nossa criatividade, na nossa capacidade de dar a volta às situações mais difíceis. Quando as catástrofes aparecem elas fazem emergir o melhor de nós. Isso aconteceu muitas vezes na história. Nós temos muitos defeitos. Somos capazes do melhor e do pior. Mas quando toca a lutar pela sobrevivência mobilizamos tudo o que nos distingue, como a inteligência, e é assim que passamos as maiores tribulações. 

Nós surgimos há cerca de 200.000 anos atrás neste planeta extraordinário que é a nossa casa. O planeta já tinha 4500 milhões de anos de história quando nós aparecemos. O nosso percurso é uma fracção ínfima da vida do planeta. Nós somos os acidentes gloriosos de um processo imprevisível, como disse um dia o biólogo Stephen Jay Gould. Quando os nossos antepassados emergiram nas savanas africanas, e pronunciaram pela primeira vez a primeira palavra, começaram a comunicar uns com os outros e a cooperarem entre si. Essa cooperação foi decisiva para se defenderem com sucesso dos perigos imensos que os rodeavam. E eles sobreviveram porque, sem o saberem, transportavam consigo aquela que é a mais poderosa máquina da criação: o cérebro humano. Ele ajudou-os a ler o mundo, a decifrar os sinais, a detectar o perigo, a construir a cooperação que é a base da vida das comunidades. A descoberta da palavra mudou tudo e com ela veio também a capacidade de efabulação da nossa espécie, que é extraordinária.
Esta crise vai obrigar-nos a lutar pela sobrevivência, a reinventar a vontade e a atenção, a redescobrir a cooperação por objectivos comuns. Vai obrigar-nos a ler, a estudar e a pensar. Como dizia Swift: “Ser é ser tudo.” Esta crise vai reensinar-nos a ser tudo outra vez

Os nossos antepassados resistiram a tudo: aos ataques das feras, aos sustos da natureza, aos ciclos climáticos, à devastação das colheitas, às epidemias mortíferas, às erupções vulcânicas, aos terramotos, às quedas de meteoritos e asteróides. Nessa admirável luta milenar, em cada dia que chegava ao fim, eles reuniam-se à volta da fogueira e contavam as histórias que ainda hoje são o património matricial da nossa espécie. Eles inventaram o fogo, as ferramentas, a vida nas primeiras cavernas e nas primeiras comunidades. Eles inventaram as redes sociais de cooperação. Eles inventaram os primeiros poemas, as primeiras pinturas e transformaram a arte em mais uma ferramenta para a sobrevivência. E há 75.000 anos atrás a espécie humana passou por uma das maiores ameaças à sua existência: a erupção brutal do vulcão Toba, na Indonésia. Esta foi a maior explosão vulcânica até hoje registada na Terra. Biliões de metros cúbicos de cinzas vulcânicas foram expelidas para a atmosfera. O Sol deixou de se ver durante dias a fio. O planeta entrou numa espécie de Inverno vulcânico. As cadeias alimentares foram destruídas. Muitas espécies foram extintas. Os nossos antepassados sobreviveram a esta catástrofe indizível. No fim, os sobreviventes, estima-se hoje, foram cerca de 2000. Cabiam num hotel moderno. E nós somos todos filhos dos 2000.

É por isso que o ADN de dois seres humanos, sejam eles quais forem, é praticamente idêntico. Nenhuma outra espécie tem este grau de similaridade no seu ADN e isto torna ainda mais ridículas as teorias racistas, a xenofobia, a exclusão do outro. Só há uma raça: a raça humana. Estes sobreviventes resistiram a tudo, incluindo às glaciações que fizeram baixar a temperatura do planeta de forma terrível. Esta é uma grande lição. E quando, há cerca de 10.000 anos atrás, a temperatura subiu e as condições ficaram mais favoráveis, eles foram capazes de erguer grandes civilizações, da Mesopotâmia à Pérsia, da Índia à China, da Europa à África e às Américas. Neste caminho a espécie humana foi movida pela curiosidade, pelo espanto, que, como disse Platão, é o motor do conhecimento. Ontem como hoje ele vai contribuir para a nossa sobrevivência.

Na terceira parte do Gulliver, o escritor Jonathan Swift descreve uma estirpe de homens decrépitos e envelhecidos, acomodados e entregues a débeis apetites, falhos de vontade, incapazes de comunicar e incapazes de ler. Este parece um retrato premonitório das nossas sociedades antes do coronavírus: frívolas, superficiais, egoístas, monossilábicas, mutiladas, zombies em perpétuo zapping. Mas esta crise vai obrigar-nos a lutar pela sobrevivência, a reinventar a vontade e a atenção, a redescobrir a cooperação por objectivos comuns. Vai obrigar-nos a ler, a estudar e a pensar. Vai, porventura, criar novos paradigmas políticos, económicos e sociais. Como dizia Swift: “Ser é ser tudo.” Esta crise vai reensinar-nos a ser tudo outra vez.

*Professor do Instituto Superior Técnico

domingo, 26 de abril de 2020

Vivienne Westwood is right: we need a law against ecocide

The economic and legal system rewards corporations that bulldoze, stripmine and burn. A new law against ecocide could halt this destruction.

Fonte: aqui
Designer Vivienne Westwood expressed anguish and alarm at the worsening state of the planet, at a press conference yesterday. "The acceleration of death and destruction is unimaginable," she said, "and it's happening quicker and quicker."

Speaking in support of the European Citizens' Initiative to End Ecocide, her words echo a growing sentiment that we have to do something. One thing we can do is to enshrine the sanctity of the biosphere in law.
That ecocide – the destruction of ecosystems – is even a concept bespeaks a momentous change in industrial civilisation's relationship to the planet. To kill something, like Earth, presupposes that it is even alive in the first place. Today we are beginning to see the planet and all its subsystems as beings deserving of life, and no longer mere resource piles and waste dumps. As the realisation grows that we are part of an interdependent, living planet, concepts such as "rights of nature" and "law of ecocide" will become common sense.

Unfortunately, we live in an economic and legal system that contradicts that realisation. With legal impunity and at great profit, corporations bulldoze and cut, frack and drill, stripmine and burn, wreaking ecocide at every turn. It is tempting to blame corporate greed for these horrors, but what do we expect in a legal and economic system that condones and rewards them? Besides, all of us (in industrial society at least) are complicit. That's why we need a law of ecocide: a concrete emblem of the growing consensus that this must stop.
In moral terms the matter is clear, but what about economic terms? Is ending ecocide practical? Is it affordable? The economic objection implies, "Yes, we should stop killing the planet – but not now. We have to wait till the economy improves and we can afford it." Is this to say that we must accelerate our headlong depletion of natural capital in order that, in some mythical future, we will be rich enough to restore it? Does anyone really believe that we should preserve a living planet only if it doesn't disrupt business-as-usual?

The unvarnished truth that environmentalists might not like to admit is that a law of ecocide would hurt the economy as we know it, which depends on an ever-growing volume of goods and services, increased consumption so demand can keep pace with rising productivity at full employment. Today, that requires stripping more and more minerals, timber, fish, oil, gas, and so on from the Earth, with the inevitable loss of habitats, species, and ultimately the health and viability of the entire biosphere.

Changing that is no trivial matter. What about the estimated 500,000 jobs to be created by the ecologically devastating Albertan tar sands exploitation? We need to change our economic system so that employment needn't depend on participating in the conversion of nature into product. We will have to pay people to do things that do not generate goods and services as we know them today – to replant forests, for example, instead of clearcutting them; to restore wetlands instead of developing them. Every facet of modern life contributes to ecocide; we should expect, then, that every aspect of life will change in the post-ecocidal era.

It is more accurate to say that, instead of hurting the economy, a law of ecocide would transform the economy. It is part of a transition to an economy with less throwaway stuff, and more things made with great care, more bikes and fewer cars, more gardens and fewer supermarkets, more leisure and less production, more recycling and fewer landfills, more sharing and less owning.
What about the argument that if Europe criminalised ecocide, it would be put at a competitive disadvantage with countries that allow it? It is often the case that the rapid stripping of natural capital brings high short-term profits.

How can sustainably harvested lumber from one place compete with cheap, clearcut lumber from another? It can't – unless the principle of ending ecocide is also written into international trade agreements and tariff policies. Sadly, international trade agreements under negotiation today, such as the Transpacific Trade Partnership (TPP) and Transatlantic Trade and Investment Partnership (TPIP), threaten to do the opposite: corporations could have ecocide laws invalidated as barriers to trade.
We need to reverse that trend. A European anti-ecocide law would establish a new moral and legal basis for a global consensus to end ecocide and preserve the planet for future generations. Even if the law isn't enacted immediately, the initiative puts the idea on the radar screen. Sooner or later, such a law is coming, and far-sighted businesses that anticipate the changes it will bring will thrive in the long run, even if that requires difficult short-term transitions.

The European ecocide initiative has so far been signed by about 100,000 people – far short of the one million threshold required to compel the European Commission to consider it formally. Will future generations look back from a ruined planet and wonder why only 0.02% of Europeans exercised their democratic rights to stop ecocide? We can do better than that.

Charles Eisenstein is a speaker and writer focusing on themes of civilisation and human cultural evolution.

Mais informações no site:

sábado, 25 de abril de 2020

Música do BioTerra - Grândola Vila Morena, 2020


A solidariedade e irmandade entre profissionais do mundo da música levou-nos a criar este momento de partilha, de amizade e fraternidade.
Nesta situação difícil que vivemos, estamos mais do que nunca unidos.
Há valores que nunca abdicaremos de defender. Há valores que respeitamos, seguimos e amamos. As nossas vozes são o 25 de Abril de ontem, de hoje e de amanhã.

Áudio: Carlos Norton
Vídeo: João Pico

Com Afonso Dias, Alain Vachier, Ana Laíns, Ana Pico, Ana Sofia Gonçalves, António Gonçalves, António Pires, Bernardo Serrano, Carla Vasconcelos, Carlos Guerreiro, Carlos Moisés, Carlos Norton, Carlos Rosa, Catarina de Melo, César Matoso, César Prata, Davide, Francisco Fanhais, Homem em Catarse, Inês Pico, Joana Negrão, João Afonso, João Beles, João Gil, João Pico, Joaquim Balas, José Flávio Martins, Lika, Luanda Cozetti, Luís Caracinha, Luís Galrito, Luís Pucarinho, Luís Represas, Maria Anadon, Marina Lalbuquerque, Mauro Amaral, Miguel Pietá Machete, Nuno Murta, Paulo Cunha, Pedro Abrunhosa, Pedro Branco, Pedro Henriques, Pedro Mestre, Recanto, Sebastião Antunes, Vanda Leocádio, Vitorino, Viviane, Zé Francisco, Zeca Medeiros.

Poema da Semana: Ricardo Reis . "Não tenhas nada nas mãos"

Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,
Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.
Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?
Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?
Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra
Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.

Filme - Capitães de Abril, de Maria Medeiros


Ano: 2000
Título Original: Capitães de Abril
Elenco: Joaquim de Almeida, Luis Miguel Cintra, Maria de Medeiros, Stefano Accorsi
Direcção: Maria de Medeiros

Sinopse: A canção "Grândola Vila Morena" dá o sinal aos militares para sair à rua na noite combinada para invadir os quartéis. 
As tropas tomam o quartel de Santarém e a sede do Rádio Clube Português.
Manuel (Frédéric Pierrot) e Maia (Stefano Accorsi) estão no centro da acção mas não esquecem a promessa de nunca mais matar que fizeram quando voltaram da Guerra Colonial.
Antónia (Maria de Medeiros), mulher de Manel descobriu esta promessa quando, por acaso, encontrou o diário do marido. 
Não resistiu e leu algumas partes em que Manel conta os actos desumanos e os horrores dos homens na guerra. 
O pior foi que também leu a parte que Manel confessava tê-la enganado com uma mulher africana. 
Para Antónia é impossivel aceitar a infidelidade e a relação deles muda radicalmente. 
Manel, para reconquistar a mulher, vai tentar dar o melhor de si próprio no dia 25 de Abril...
Entretanto, há todo um povo à espera da liberdade...

Análise
O filme, Capitães de Abril (Maria de Medeiros, 2000), explora um momento histórico ocorrido em Portugal em 25 de abril de 1974: A Revolução dos Cravos. O recorte utilizado pela diretora do filme demonstra apenas o fim do regime ditatorial instaurado por Salazar. Tal recorte aponta para três principais fatos ocorridos nesta data que vai do desejo de militares sublevados da Escola Prática de Cavalaria localizado a oitenta quilômetros a nordeste da cidade de Lisboa, comandados pelo capitão Salgueiro Maia, oficial pertencente ao MFA (Movimento da Forças Armadas), a tomada de uma estação de rádio por oficiais da FAP (Força Aérea Portuguesa), e o cerco ao quartel do Carmo por forças do MFA onde se encontravam Marcelo Caetano e os ministros de seu governo. Do ponto de vista cronológico, o filme aborda do início do motim dos militares na noite de 24 de abril, até o embarque de Marcelo Caetano para seu exílio temporário na Ilha da Madeira na noite de 25 de abril de 1974.

No início do drama, cenas de pessoas mortas, em referência às guerras coloniais, dão o indicativo de uma das principais causas da revolução. O desejo exprimido pelo MFA era o de por fim às guerras coloniais em Guiné, Angola e Moçambique, instaurar a democracia em Portugal, e resgatar o prestígio das Forças Armadas. Diante disso, a Revolução dos Cravos, em termos ideológicos, não tem início na metrópole, mas sim em suas colônias, a partir do momento em que rebeldes africanos surgem e insurgem com armas na mão. Entretanto, essas não foram as únicas causas do “esgotamento” do regime de Salazar. Diversos pontos no que diz respeito à economia, à política (interna e externa), e à sociedade contribuíram para o descontentamento de diversas classes sociais para com o governo de Marcelo Caetano.

Tais desejos estão intrinsecamente relacionados com a postura do governo de Salazar em relação às colônias. Em um primeiro momento houve uma mudança na constituição portuguesa em 1951 afim de rebatizar as colônias com o nome de “províncias”, ou seja, parte de um Estado unitário, em contra-partida ao artigo 73 da carta da ONU (Organização das Nações Unidas) que trata de territórios não autônomos. A mudança na constituição prevenia contra a aplicabilidade das obrigações que o artigo propunha (promover o desenvolvimento econômico e político desses territórios). Em segundo, tratava-se do uso da base aérea de Açores pelos Estados Unidos para reabastecer Israel durante a guerra do Yom Kippur em 1973. Isto resultou em um embargo prolongado ao fornecimento de petróleo para Portugal, mesmo ao final da crise. E em terceiro, o agravamento da situação econômica no que diz respeito aos gastos militares:

Um terço da renda nacional portuguesa, nos anos 60, provinha das colónias. O déficit da balança comercial era estrutural e permanente. O agravamento da situação económica era produzido claramente pelo aumento dos gastos militares (SECCO, 2004, p.99).

Para a sobrevivência do Império português era necessário que houvesse tais intervenções militares na África portuguesa, mas para a sustentação do regime e não das suas economias e da infra-estrutura, ou seja, Império como superestrutura jurídico-política da sociedade metropolitana.

Entre as três principais cenas (o motim na Escola Prática de Cavalaria, a tomada da estação de rádio, e o cerco ao quartel do Carmo), a diretora tenta explanar acontecimentos que determinaram a causa da revolução. Seguindo a ordem das cenas, é possível exemplificar, por meio da construção fílmica, alguns desses fatos relevantes em que a diretora elucida, de forma subjetiva em relação aos atores, a problemática das estruturas sociais.

Após a apresentação mórbida, há uma cena no qual um casal (uma empregada doméstica e um jovem soldado) despedem-se em uma estação de trem no qual o soldado deve embarcar em um vagão que o levará ao quartel apos um final de semana de folga. No diálogo, a namorada deste exprime o desejo de fugir para a França em busca de uma vida melhor. Na construção desta cena, o desejo de emigração da maioria dos jovens em Portugal durante a década de setenta, revelava-se um aumento da escassez de mão-de-obra na metrópole. “Em 1973 houve um notável aumento do número de trabalhadores qualificados que emigraram. Nesse ano, das 120 mil pessoas que emigraram, 34% tinham alguma especialização profissional” (MAXWELL, 2006, p.45). 

Outro fato importante diz respeito ao alistamento militar, em que os jovens que permaneciam em Portugal cumpriam de quatro a seis anos de serviço militar, e este tempo de serviço militar aumentou gradativamente com a eclosão das guerras coloniais obrigando o governo a manter os alistados por mais tempo.

Mas a questão que envolve essa densa emigração não se resume apenas à guerra colonial e o tempo de serviço militar. O fato do desenvolvimento desigual de diversos países sob a égide de países imperialistas, a internacionalização da produção e do capital promoveram um duplo movimento que se resume na “exportação do capital de países imperialistas para países dependentes, e a exportação da força de trabalho dos países dependentes para países imperialistas” (POULANTZAS, 1975, p.56). 

Países como os Estados Unidos da América e da Europa Ocidental mantinham e sustentavam ligações económicas quase que mercantilistas com complexas redes de capital com Portugal afim de proteger seus investimentos tanto na metrópole quanto na África portuguesa. Esses interesses na África portuguesa podem ser exemplificados pelo fato de que diversos oligopólios controlavam e administravam os recursos naturais em Angola com a exploração de petróleo pela Shell, pela Tanganica Concessions, e pela Standart Oil, por via da The Angola Coaling Co.

Diante desse contexto, fica claro o objetivo da diretora do filme em elucidar em outra cena, uma reunião de gala em que há um diálogo entre um personagem que representa um presidente de uma companhia de petróleo do Texas, o ministro da defesa de Portugal, e um diretor da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). O mito do “orgulhosamente sós” já não fazia sentido ao final do regime salazarista.

Aliem das questões coloniais, era evidente o descontentamento popular em relação às liberdades públicas, com as lutas dos partidos e movimentos clandestinos de esquerda em prol da derrubada do regime salazarista. Tais organizações tinham participações nos meios estudantis e operários, e promoveram algumas ações ousadas como “a destruição da base aérea de Tancos, que contava com dezesseis helicópteros e onze aviões” (SECCO, 2004, p.99), construído no filme no momento em que um estudante é preso e interrogado por um agente da PIDE, acusado de ter ligação com o movimento MRLPT-ML (Movimento Revolucionário para a Libertação do Povo – Trotskista, Marxista, Leninista), grupo fictício para ilustrar os movimentos, e participado do atentado contra a base aérea.

É importante ressaltar que, mesmo com essas ações, não houve um movimento frontal da massa contra o regime. Tais lutas não tiveram um papel direto na derrubada da ditadura salazarista, mas bem ou mal foram o fator determinante. Nesse sentido, “convém avaliar a importância desta oposição, sobretudo pelo descontentamento característico das massas em relação ao regime” (POULANTZAS, 1975, p.63), o que acarretou o isolamento desta de modo progressivo em Portugal onde, na origem, do apoio popular, principalmente no campo, havia gozado de grande aprovação da população.

No que diz respeito às liberdades públicas, a censura intimidava os intelectuais e a sociedade, disseminando o medo sobre as possíveis consequências de qualquer ato reprovável à política oficial. Era o recurso ao “medo”, do qual falou o escritor José Régio com ironia:

"O medo é que guarda a vinha diz-se. Em grande parte, tem sido o medo que tem guardado a actual situação. Pode, ainda, ser o medo quem melhor a defenda. Não só em Portugal como em quaisquer países onde um regime conquista o poder pela força, e pela força impera, esse poderoso inimigo da alma se agigantou a ponto de tapar todo o horizonte[1].

“O medo é que guarda a vinha”, escreve José Régio, evidenciando sobre a produção artística em relação à censura, uma vez que o regime salazarista recorria às medidas repressivas, como a prisão de intelectuais, jornalistas e professores universitários. Soma-se essa repressão, contra a produção intelectual, com a fragilidade cultural no intuito de controlar, por meio da força, a dominação do regime.

A censura provavelmente limitava o intercâmbio científico, especialmente para aqueles que desejassem produzir um conhecimento crítico do país. Em 1965, 19,5% dos livros editados em Portugal eram traduzidos (oriundos do exterior). O gênero predominante era a literatura (81%), fato que colocava Portugal à frente de todos os outros países. Em contrapartida, apenas 4% dos livros traduzidos eram das áreas de ciências sociais. Portugal também via filmes estrangeiros. Norte-americanos, melhor dizendo. Viu 132 no ano de 1966. Contra 62 italianos e 49 franceses. Nesse mesmo ano, os portugueses só produziram cinco filmes de longa metragem. Seu cinema não era nacional e nem formava ou difundia uma auto-imagem do país (SECCO, 2004, p.96).

O exemplo nítido e de grande importância na construção fílmica desta referência à repressão da produção cultural, se constitui no momento em que uma música, no qual foi censurada, torna-se a senha entre os militares sublevados para o início da revolução. Grândola, Vila Morena de autoria de Zeca Afonso foi composta como homenagem à “Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense”, e banida pelo regime salazarista sendo-lhe acusada de uma música associada ao comunismo. Aos 25 minutos do dia 25 de abril de 1974, Grândola, Vila Morena foi reproduzida pela Rádio Renascença. Era o início da revolução.

O objetivo do MFA, no início da operação, era de tomar posse dos meios de comunicação e abrandar qualquer ação ou reação do povo em relação à revolução. Após os assaltos às fontes de informação audiovisual, seguiram-se vários comunicados pedindo a população que permanecesse em casa para evitar um possível confronto entre forças legalistas e o MFA, e o “derramamento” de sangue inocente. E foi o que se sucedeu. A revolução se seguiu de forma também inocente e fez com que o povo fosse somente um espectador da História. Apenas no momento em que a situação estava “supostamente” controlada, com o cerco no quartel do Carmo, é que se afloraram os desejos “reais” da população, uma vez que o MFA propunha um programa vago para suscitar todas as expectativas possíveis, embora tenha sido nitidamente democrático e antifascista. A massa encontrou no exército, o verdadeiro apoio e mesmo um aliado na luta que se moveu contra o regime ditatorial. Mas na construção fílmica proposta, os embates políticos mostram apenas o dia da revolução, e não há sinal das contradições políticas-sociais que sucederiam o governo do General Spínola.

Mesmo colocando em cena cerca de 1,5 mil militares e mais de 7,5 mil figurantes civis, Maria de Medeiros conseguiu realizar sua proposta de demonstrar um acontecimento extraordinário em que o símbolo da massa não revelava-se apenas um agente da história sendo manipulada, mas cruciais para uma narrativa em que a sutileza dos personagens demonstravam as contradições e os problemas sofridos pelo povo português durante o final do regime de Salazar.

Bibliografia:
MAXWELL, Kenneth. O império derrotado. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
POULANTZS, Nicos. A crise das ditaduras. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
ROANI, GL. Sob o vermelho dos cravos de abril – Literatura e revolução no Portugal contemporâneo. Revista Letras, Curitiba, n. 64, p. 15-32. set./dez. 2004. Editora UFPR
SECCO, Lincoln. A Revolução dos Cravos e a Crise do Império Colonial Português. Economias, espaços e tomadas de consciência. São Paulo: Alameda Casa Editorial / Fapesp / Cátedra Jaime Cortesão, 2004.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

COVID-19- A NOVA "PESTE ": Por uma nova 'habitação da Terra', por Viriato Soromenho-Marques


"O ainda incalculável preço físico, moral e económico da crise global causada pela expansão da pandemia do Covid-19 terá sido em vão se aceitarmos as duas teses que muitos governos começam a enunciar na sua gestão da resposta:
1) esta crise é externa, como se fosse uma calamidade natural sem relação com a ação humana;
2) a vitória sobre esta crise será conseguida quando retomarmos a "normalidade", fazendo o mesmo que antes e da mesma maneira. Se nos deixarmos embarcar nesta visão cega e febril perderemos o potencial de conhecimento e de regeneração que uma crise enfrentada com os olhos abertos sempre permite. Há muitas décadas que repetimos ser a crise global do ambiente e do clima o maior desafio existencial que a humanidade criou para si própria, com repercussões estruturais, ontológicas até, para o futuro do Sistema-Terra, que desde há séculos está a ser objeto de um processo de entropia, em função da agenda da Modernidade, fundada no princípio da "dominação". Desde que o Adão de Pico delia Mirandola (1486) foi entregue, por um Deus cada vez mais distante e meramente contemplativo, à tarefa de se completar a si próprio, pelo uso do seu livre-arbítrio, e que Tommaso Campanella (1623) identificou na aceleração tecnológica a força motriz dos Modernos, que a história da Europa, e hoje de todo o mundo, se transformou numa marcha cada vez mais intensa para a realização da utopia de uma dominação incondicional da humanidade sobre a Natureza. Em 1822, o jovem A. Comte dividia a história em duas idades. Depois da "idade da conquista", entrávamos na "idade da produção". A submissão tecnológica e industrial da Natureza (reduzida à homogénea e dócil "substância extensa" de Descartes) seria capaz de dela extrair todas as recompensas que não tínhamos conseguido obter através de milénios de guerra entre os povos para disputar os parcos e incertos excedentes das frugais economias agrícolas.

O TRIÂNGULO DA DISTOPIA DA DOMINAÇÃO
Depois das fantasias do final de século XX, em que tentámos escapar dos riscos da Modernidade através da poção mágica dos vários profetas da "pós-modernidade", sabemos hoje, em 2020, que continuamos na mesma estrada de Gama, de Copérnico, de Pascal, de Adam Smith, de Condorcet. Para se sair da Modernidade, para se evitar o colapso mortal contra o muro das pandemias (como o Covid-19), Que ocorrem pela intrusão humana nos últimos redutos da biodiversidade, para impedir a desordem social e a disrupção política que um processo descontrolado de alterações climáticas acarretará - envolvendo migrações de milhões de refugiados ambientais, com o risco de guerras brutais pela água e pelo solo arável - então teremos de enfrentar uma dura verdade: o meio milénio de esperança utópica na autonomia e na emancipação humanas, degenerou na distopia da dominação. A nossa época é a da utopia realizada por excesso, como pesadelo. A distopia da dominação, com a sua imensa inércia, transformou a economia numa força de niilismo material que ameaça devorar tudo e todos no seu caminho. Contudo, jamais poderemos sair do niilismo distópico sem percebermos como funcionou o software das promessas utópicas da Modernidade. Ele pode ser descrito pela dinâmica triangular que a seguir se enuncia:
1. Substituição da ética pela fusão da técnica e ciência, como ficou, especialmente, patente nas obras de Descartes e Bacon. A chave do futuro, desse lugar por realizar, desse u-topos, não se encontra na mudança da natureza humana (como seria o caso da conversão ética patente de modo central nas utopias clássicas, de matriz platónica), mas sim na intensificação da dominação da cultura humana sobre a Natureza.
2. Crença na transferência do infinito teológico e/ou metafísico para o poder humano sobre o mundo físico (cuja possível extensão ao campo da "biologia" está desde o inicio presente): progresso, crescimento exponencial (a religião do neoliberalismo!), mobilização, aceleração. Essa mutação radical da utopia moderna funda-se no aprofundamento do conhecimento sistemático dos processos causais inerentes às forças e fenómenos naturais, e na sua replicação técnica para fins humanamente úteis. É o horizonte e as promessas da sociedade tecnocientífica, em que nos encontramos longamente mergulhados, que se encontram enunciados na linguagem dos grandes pensadores de Seiscentos.
3. Recusa da existência de limites intransponíveis pela tecnociência em aliança com o Estado, o Mercado, ou com ambos. As grandes utopias modernas procuraram ajudar a criar uma espécie de nova humanidade, através da criação de inusitados meios tecnológicos (ao serviço da nova ideologia do cientismo), suscitados pela explosão do potencial científico
das sociedades, e pelo dinamismo de mercados económicos totalmente libertos de qualquer espécie de constrangimentos ou mecanismos de moderação. O tema do poderio humano, centrado durante séculos no controle e domesticação da natureza biofísica, conhece hoje uma espécie de recuo em direção à própria condição humana. Nas suas manifestações mais recentes, o cientismo afirma-se numa radicalidade demencial, como é o caso dos autores transhumanistas, segundo os quais a arquitetura atual da condição humana, fruto da evolução natural, é um obstáculo à continuação ilimitada das aplicações tecnológicas, sendo por isso urgente uma nova engenharia do fenómeno humano! É caso para recordar o lema da Liga Hanseática: navigare necesse,
vfvere non est necesse. . .

AO LONGO DOS ÚLTIMOS CINCO SÉCULOS
temos assistido ao intenso desfilar desta aposta ideológica na abertura indeterminada do mundo às modulações e modelações da novel tecnociência. Os entes físicos surgem como mera matéria-prima, amorfa e ilimitadamente robusta, pronta a ser transformada, pela livre decisão de um Demiurgo humano. O infinito deixou de ser um predicado atribuível apenas ao Deus criador do Cristianismo, ou às ideias puras da metafísica antiga, para se transferir para a indefinida e inesgotável capacidade plástica da criatividade humana, armada pelo braço da técnica. Apenas num século, entre 1901 e 2001, a força propulsora da tecnociência fez multiplicar a população humana quatro vezes e a riqueza económica por 40 vezes. A crise de saúde pública que está a paralisar o mundo, e a tirar a vida a milhares de pessoas, é apenas uma parte menor do preço que a continuação dessa "normalidade" distópica implicaria.

O QUE PROPÕE O PRINCÍPIO DA FRAGILIDADE?
A crítica ecologista ou ambientalista da modernidade tem sido mais hábil na análise parcelar do que na proposta de uma cosmovisão capaz de se opor à distopia da dominação. Por exemplo, o próprio conceito de "desenvolvimento sustentável" - que visa sobretudo descrever e caracterizar um processo político, económico e social de transformação e mudança - constitui uma fórmula algo contraditória. Por um lado, através do conceito de "desenvolvimento", partilha do impulso dinâmico, de progresso ilimitado, dessa matriz de desmesura tecnológica que pretende criticar e superar. Contudo, através da "sustentabilidade", este conceito abre -se para aquilo que me parece essencial: para sobreviver, em condições de dignidade, a humanidade deve reassumir com humildade o seu lugar no interior do "Sistema-Terra", o nome que as novas Ciências da Terra dão ao clássico conceito de Natureza. Isso implica uma verdadeira "conversão ecológica", no sentido franciscano (de S. Francisco e daquele que se encontra patente na Laudato si do Papa Francisco). É isso que designo por "princípio da fragilidade": a consciência positiva da vulnerabilidade da condição humana, não como algo a ultrapassar, mas como aceitação da nossa pertença a um todo maior, a uma solidariedade ontológica com o mundo e todas as suas criaturas, humanas e não-humanas, constituindo uma "comunidade de vida", na expressão de Aldo Leopold (1949). Comunidade que é o derradeiro baluarte protegendo o futuro contra o abismo de destruição para onde o princípio da dominação nos empurra. Nessa medida, o princípio da fragilidade oferece-nos uma "inversão de todos os valores", que nos conduz à coragem da reinvenção da política, da ética e da economia - usando a religação à Terra como estrela polar - lançando-nos na tarefa de resgatar o futuro da desintegração em marcha. Esses novos valores, contêm, em simultâneo, a crítica e a proposta:
A) Pluralismo de fins, recusa de hierarquia vertical. O pluralismo do mundo humano, como diz Hannah Arendt, deriva do facto de apenas existirem homens e não "Homem". Isso é válido para as narrativas e projetos de vida. A horizontalidade do respeito deve substituir a verticalidade da arrogância. O desenho do futuro é entendido como tendo condições para abrigar múltiplas finalidades em coexistência pacifica, desde que os mínimos requisitos fundamentais da sustentabilidade ambiental sejam devidamente levados em conta.
B) Crítica à desmesura da tecnociência. O que está em causa não é uma atitude ludista de absoluta alergia à técnica, mas a recusa de uma visão acritica e acéfala dos riscos da sociedade tecnológica, bem como o mal fundado de uma visão, totalmente febril, da capacidade da Natureza suportar as nossas investidas plásticas, sem perigo nem vacilação.
C) Suspeita face ao desempenho dos irmãos gémeos do Estado e do Mercado. Assim como não há fins que mereçam um destaque privilegiado ao ponto de ser legítimo vislumbrar a possibilidade de eliminação de todos os outros, também não há veículos escatológicos de eleição exclusiva. Dito de outro modo: o pluralismo de fins coabita com o pluralismo de sujeitos históricos, modeladores de futuro.
D) Perceção do futuro como abertura a uma pluralidade de possíveis. O tempo é considerado como tal, numa diferença radical em relação à previsibilidade do espaço. O futuro pode apenas ser aberto, e não vislumbrado na previsibilidade de um horizonte cujos contornos se oferecem como disponíveis. A razão calculadora deve reconhecer os seus limites face às incertezas do tempo como indomável objeto de conhecimento e delicada matéria-prima para a ação. A Política deverá ser entendida como cooperação, mesmo e até como cooperação compulsória. É a resposta inevitável a uma conceção "moderna" de política que esteve prestes a sacrificar a espécie humana num holocausto nuclear (que ainda não foi definitivamente excluído como possibilidade histórica). Mais necessária e obrigatória se torna essa cooperação quando estamos confrontados, como humanidade inteira, com as tarefas gigantescas de uma nova forma de habitar o planeta, devastado pela crise ambiental e climática antropogénica, e ameaçados pelos riscos de guerra e violência decorrentes das desigualdades e injustiças crescentes.
A crise pandémica do Covid-19 abre-nos a janela de tarefas tão urgentes como titânicas. Durante décadas tolerámos que o sonambulismo se substituísse à exigência de escutarmos os sinais de perigo e as ameaças que a euforia da dominação colocou entre nós e o futuro. A margem de erro é agora nula. A escolha é entre as dores de um novo parto da civilização ou a imperdoável aceitação do suicídio da própria humanidade."