Poluição Interior
Por RICARDO GARCIA
Domingo, 18 de Janeiro de 2004
Casas escondem perigos ambientais
O que mais impressionou naquele caso foi o facto de ter morrido uma criança.
Uma vida encurtada ao mínimo, perdida por algo que poderia ter-se evitado.
Quando chegou ao hospital Garcia de Orta, em Almada, o menino já estava
morto, vítima de uma intoxicação por monóxido de carbono causada por um
esquentador. A mãe, em muito mau estado, nem sequer compreendia o que os
médicos lhe diziam. O pai, por sua vez, padecia tanto da intoxicação como da
ironia trágica de ser, ele próprio, montador de aparelhos de gás.
Essa ocorrência, em Junho de 1998, mudou a rotina do hospital. "Aquilo
causou-nos muita impressão e fez-nos estudar o assunto", relembra a médica
Paula Azeredo, responsável pela urgência pediátrica. Através de dados do
Instituto Nacional de Estatística, os médicos concluíram que, entre 1993 e
1997, o monóxido de carbono fora responsável por 70 por cento das mortes por
inalação de gases entre crianças e jovens até aos 19 anos.
Mas esta era apenas a ponta do "iceberg". A inalação de monóxido de carbono
começa por causar sintomas comuns, como dor de cabeça, tonturas, náuseas e
vómitos. "Parece uma gripe ou uma intoxicação alimentar", diz Paula Azeredo.
Por isso, muitos casos passam despercebidos. Nos cinco anos anteriores a
Junho de 1998, na pediatria do Garcia de Orta havia registo de apenas 14
intoxicações. Mas quando o hospital começou a prestar mais atenção a este
tipo de situações, que se despistam com um simples teste do balão, a
verdadeira dimensão do problema tomou forma. Desde aquela data, o número de
casos identificados saltou para mais de uma centena, cinco dos quais foram
fatais para crianças.
O que estes dados revelam é que qualquer pessoa, especialmente uma criança,
está sujeita a tantos ou mais riscos de natureza ambiental dentro de casa do
que fora. No entanto, só muito lentamente, através de pistas dispersas, é
que se vai tomando nota da realidade nacional nesta matéria.
A prevalência da asma, por exemplo, está a aumentar no país, sobretudo nas
regiões de Lisboa e Porto (ver texto nestas páginas). Uma das explicações
possíveis para isso está no facto de as pessoas passarem cada vez mais tempo
dentro de casa, onde a exposição à poluição e aos alergénios é maior. "Isto
muito provavelmente tem a ver com hábitos interiores", avalia José Rosado
Pinto, director do Serviço de Imunoalergologia do Hospital D.Estefânia, em
Lisboa.
Uma estimativa bastante citada diz que os europeus passam 90 por cento do
tempo em ambientes fechados. Quem acredita que Portugal, beneficiado pelo
clima, tem uma situação diferente, está enganado. Em Ferreira do Alentejo,
em plena calma alentejana, mais de metade das crianças até aos 14 anos
passam pelo menos 17 horas por dia dentro de casa, segundo os resultados
nacionais do inquérito "Habitação e Saúde", realizado pela Organização
Mundial de Saúde em oito países europeus.
Outro inquérito, realizado no âmbito do ISAAC, um estudo mundial sobre asma
e alergias na infância, revela que 94 por cento das crianças com 13/14 anos
que vivem em Lisboa vêem pelo menos uma hora de televisão por dia, 58 por
cento assistem no mínimo a três horas de TV e 23 por cento - quase uma em
cada quatro - passam mais de cinco horas imóveis diante do ecrã.
Com tanto tempo dentro de casa, qualquer pessoa fica mais susceptível aos
riscos próprios do ambiente interior. E a lista de potenciais perigos é
longa. Aparelhos de gás, lareiras e braseiras lançam poluentes no ar - a
começar pelo monóxido de carbono, que pode matar ou deixar sequelas para
sempre. Móveis, carpetes, solventes e tintas também contribuem, com a
emissão de compostos orgânicos voláteis tóxicos. Animais domésticos são
fontes de alergénios. No topo da lista está o fumo do tabaco, que combina um
pouco de tudo o que há de mal nos poluentes de interior.
Os fungos, que proliferam com a falta de ventilação, também têm efeitos
nefastos. Da mesma forma, os produtos de uso corrente numa casa representam
um risco significativo. E, neste aspecto, o crescente número de chamadas
para o Centro de Informação Antivenenos, do Instituto Nacional de Emergência
Médica, é um sintoma de que a realidade dos tóxicos dentro das habitações é
bem maior do que se imagina (ver texto nestas páginas).
Nada disto é virtual. Pelo contrário, são perigos concretos, que aumentam a
possibilidade de acidentes, de intoxicações, de males respiratórios, de
cancro. Preocupada, a Organização Mundial de Saúde chegou a aprovar, em
2000, uma declaração dos "Direitos ao Ar Interior Saudável".
Curiosamente, o problema da poluição interna tem-se tornado mais contundente
com a melhoria da qualidade das habitações. Há três ou quatro décadas, o ar
entrava e saía mais facilmente das casas, pelas frinchas das janelas, por
baixo das portas, pelas grandes chaminés das cozinhas. Passava-se frio, mas
havia mais ventilação.
Hoje, uma casa "boa" tem caixilhos estanques, que não deixam passar nada,
mas nem sempre dispõe de ligações alternativas com a atmosfera exterior.
"Melhoraram-se os componentes, mas não se melhoraram os mecanismos de
admissão do ar", afirma João Carlos Viegas, chefe do Núcleo de Componentes e
Instalações, do Laboratório Nacional de Engenharia Civil. E quando a
permeabiliade do ar é reduzida, acrescenta, isso pode trazer problemas em
termos do que se respira no interior.
Abrir as janelas é sempre uma boa forma de ventilação. Mas não basta, mesmo
porque, em determinadas alturas, colide com as necessidades de conforto e de
poupança de energia. Para João Carlos Viegas, a solução tem de ser concebida
de raiz, através de projectos próprios para as novas habitações. "A
ventilação tem de ser pensada por quem entende do assunto. Não pode ser
improvisada", avisa.
Para já, no entanto, ninguém é obrigado a fazer tais projectos. Da mesma
forma, não há qualquer legislação para a qualidade do ar interior. Tudo o
que existe, em termos de poluição atmosférica, refere-se aos espaços
abertos. Nesse campo, conseguiram-se importantes vitórias. Nos países
desenvolvidos, o ar que se respira na rua é hoje incomparavelmente mais
limpo do que há apenas algumas décadas. Nos anos 50, morria-se, e muito, com
o coquetel de poluentes presente nos nevoeiros que envolviam grandes
cidades, como Londres ou Los Angeles.
Em termos de legislação, algumas novidades poderão ser introduzidas, em
Portugal, com a revisão do Regulamento das Características do Comportamento
Térmico dos Edifícios, que está em curso. Ao mesmo tempo, o Governo tem há
um ano na gaveta uma proposta de criação de um Regime da Qualidade do Ar
Interior, que se destina, porém, apenas a edifícios não-residenciais, com ar
climatizado.
Mesmo que haja avanços legais neste domínio, o que se passa no interior das
quatro paredes de uma habitação continuará, por natureza, impossível de ser
fiscalizado. Quando se trata da poluição exterior, é fácil apontar o dedo ao
Estado ou a uma fábrica. Mas dentro de casa a responsabilidade fica nas mãos
do próprio cidadão.