quarta-feira, 31 de agosto de 2022

O que é a “desistência silenciosa”, a mais recente tendência no mundo do trabalho alimentada pelas redes sociais

No original, em inglês, é o "quiet quitting", o que tem levado os vários artigos já publicados online sobre o tema a esclarecerem que não, não se trata de simplesmente bater com a porta do emprego silenciosamente



O contrato especifica que o horário de trabalho é das 9h00 às 18h00? Então às 18h00, desliga-se o computador. Tarefas atribuídas? Sim, mas essas e mais nenhuma e só até àquela hora. Estes podem ser, resumidamente, os princípios do “quiet quitting”, que começou a ganhar tração na Internet depois de um utilizador, que agora responde por @zaidleppelin, ter publicado um vídeo no TikTok em que explicava que não se trata de uma demissão propriamente dita, mas uma demissão da ideia de ir mais além no trabalho.”Ainda cumpres os teus deveres mas já não subscreves a mentalidade de que o trabalho tem de ser a tua vida. Não é”, ouve-se.

Basicamente, trata-se de não executar tarefas para as quais não se recebe compensação financeira, ou, como resume o The Wall Street Journal, não fazer mais do que o necessário para manter o emprego.

No rescaldo pandémico, muitos começaram a dar outra importância ao bem-estar e à saúde mental, o que pode explicar esta tendência emergente nas gerações mais jovens, dispostas a dizer “não” ao burnout e a mudar o statu quo.

Do passa-a-palavra ao debate aceso na internet e na Imprensa internacional foi um ápice. O desprendimento emocional face ao trabalho tem agora um nome e um número crescente de adeptos, para quem não faz sentido vestir a camisola da organização para lá do estritamente necessário, com sacrifício de tempo e saúde e sem ganhos que o justifiquem.

Os resultados do relatório “State of the Global Workplace”, divulgado pela Gallup, sobre o local de trabalho e o bem-estar, parecem confirmar a tendência: o grau de envolvimento dos trabalhadores norte-americanos desceu para 32% no primeiro trimestre deste ano (era de 36% em 2020 e de 34% em 2021) e a percentagem de “não envolvidos” – que definem limites profissionais e cumprem os mínimos – aumentou para 17% (era de 14% em 2020 e de 16% em 2021). O coordenador do estudo, Jim Harter, afirmou ao The Wall Street Journal que mais de metade dos inquiridos deste grupo tinha idades iguais ou inferiores a 33 anos e a maioria cultivava a “desistência silenciosa”.

A causa pode estar na falta de entusiasmo e propósito, nas aspirações não atendidas pelos empregadores ou no facto de muitos terem percebido que trabalhar para aquecer não compensa, após verem familiares e amigos dispensados durante a pandemia, apesar dos seus esforços e da sua lealdade. As mensagens de Kahn no TikTok – “desfrutar a vida também é produtivo” – acabam por ser um abre-olhos para uma imensa minoria, gerando ondas de choque no meio corporativo.

“Tang ping”: a versão asiática (e prévia) do fenómeno

Curiosamente, esta postura face ao trabalho já estava a dar que falar desde o ano passado, na China, conhecida pela cultura materialista, de trabalho árduo, jornadas longas e salários baixos. Cansados da “corrida de ratos” em que as suas vidas estavam a tornar-se – e em protesto contra os valores que estavam na sua base – milhares de jovens chineses iniciaram uma forma de resistência insólita, passando a conduzir-se no registo “tang ping” (deitar-se ao comprido, ou, em língua inglesa, “lying flat”). Como a expressão sugere, a meta é não fazer nada, ou, se quisermos, atirar a toalha ao chão, virando costas aos ideais da cultura vigente: o carro, a casa, os filhos, o emprego e as horas extra (poupando-se ao lamento angustiante, tão bem retratado pela banda Talking Heads, na canção Once in a Lifetime, “Como é que eu cheguei aqui?”).

Radical? Talvez, ou nem por isso, se olharmos para este fenómeno como o contraponto da prosperidade económica e que não contempla, na perspetiva das gerações mais jovens, o que seriam os mínimos de bem-estar para se ter uma vida além da tal corrida laboral desenfreada. Não por acaso, o movimento nasceu num centro tecnológico em Shenzhen, no sudeste da China, onde impera a cultura “996” (trabalhar das 9h às 21h, seis dias por semana, num total de 72 horas, sem que seja garantido qualquer pagamento extra).

O “tang ping” tornou-se viral em abril de 2021 e o impacto foi tal que, em outubro, o presidente Xi Jinping emitiu um aviso aos jovens, num jornal do Partido Comunista Chinês. “Uma vida feliz alcança-se pela luta e a prosperidade depende do trabalho duro e da sabedoria”, assegurou, alertando para a necessidade de, entre outros, “formar um ambiente de desenvolvimento onde todos participem e evitar a ‘involução’ e o ‘deitar-se ao comprido’.”

Talvez não tenha sido suficiente para quebrar a resistência que, como seria expectável, se foi expandindo no mundo globalizado – da Austrália aos Estados Unidos e Europa – com cada vez mais jovens adultos a porem o dedo na ferida e a revoltarem-se contra a “asiatização” (precariedade) laboral e o desperdício de tempo de vida, que é só uma, em atividades não reconhecidas nem pagas.

“Já vais embora?”

“Hoje, nenhum jovem tem constrangimentos em desligar o computador e sair à hora”, assegura Vânia Borges, diretora de recursos humanos da Adecco. “As pessoas não estão a desistir do trabalho, só deixaram de pô-lo em primeiro lugar, para se focarem no que é importante para elas.” Mesmo que prolonguem o tempo de trabalho numa situação pontual, “não ficam até mais tarde no emprego por sistema, para evitar comentários ou parecer bem”.

A prática do presentismo, “ainda enraizada entre nós e que não beneficia ninguém”, é malvista noutros países europeus, onde as leis têm vindo a contemplar, entre outros, o direito à desconexão no meio corporativo. Em Portugal, as alterações ao Código do Trabalho aprovadas no ano passado penalizam empregadores que contactem os funcionários em período de descanso, e as mensagens de correio eletrónico “indevidas” trazem uma advertência, elucidando que o envio foi feito em horário inconveniente para o emissor e não requer resposta imediata.

Quando as aspirações não são atendidas pelos empregadores, instala-se o desprendimento emocional face ao trabalho – para quê vestir a camisola?

“As pessoas não são máquinas”, observa António Moura Queirós, responsável de consultoria organizacional da empresa Alento. “Trabalhar sempre acima do grau em que é suposto, excedendo expectativas, passa uma mensagem errada ao empregador, porque depois não se consegue manter esse ritmo e há o risco de burnout”, esclarece. A alternativa seria fazer ajustes, mas “há muita falta de assertividade para pedir um programa de outplacement e fazer uma transição sustentável de carreira, por exemplo”.

O consultor adianta que o quiet quitting se assemelha à quebra do contrato psicológico (expectativas e promessas tácitas entre as partes), e encara-o como um mecanismo de sobrevivência em climas organizacionais não saudáveis: “Lideranças sem transparência, que monitorizam os trabalhadores, não confiam na sua autonomia e capacidade produtiva tendem a perder talentos e a ter colaboradores não comprometidos.”

Em Portugal, “temos um tecido empresarial pouco amadurecido, sem programas de acolhimento claros, mapeamento de competências, sistemas de incentivos e perspetivas de progressão”. Porém, notam-se sinais de mudança: “As empresas começam a investir na gestão de pessoas, mais pela necessidade de atrair candidatos do que por terem um laivo de consciência instantâneo.”

Sem valores, nada feito

Hugo Bernardes, fundador e sócio-gerente da The Key Talent, entende que “a nossa cultura empresarial ainda não encara o envolvimento e a valorização do propósito de vida como um problema imediato”. O que pensar, então, do desabafo comum “Há muita gente que não quer trabalhar”? O psicólogo sublinha que “são as pessoas que escolhem as organizações e não o contrário”. E vê a escassez de colaboradores em certas áreas como um reflexo dos salários baixos: “Como diz uma famosa citação, se pagar em amendoins, terá macacos.”

As políticas de teletrabalho trouxeram novos desafios, na aculturação e no recrutamento: “A primeira coisa que pergunta quem concluiu o curso remotamente é qual a política de trabalho; se não for flexível, nem consideram a oportunidade.” O paradigma tem de mudar: “As organizações nem sempre são o que dizem ser; ou se alinham com os valores das pessoas e definem a sua proposta de valor ou nada feito.”

As novas gerações, influenciadas pela cultura Erasmus, “olham para os bens na perspetiva do uso e não da propriedade, querem ter experiências e tempo; o trabalho é uma componente da vida, nem sempre a principal”, afirma Luís Miguel Ribeiro, presidente da  Associação Empresarial de Portugal, que aposta em medidas para cativar colaboradores, como a oferta de seguros de saúde, o trabalho híbrido – a pensar na redução de custos de deslocação e no aumento das taxas de juro – e a criação de espaços para refeições e convívio.

Sobre a questão dos horários, Luís Miguel Ribeiro afirma tratar-se de um mito, até porque “ficar mais tempo no local de trabalho implica gastos extras, até de energia, e, caso aconteça, talvez seja preciso fazer ajustes”. No final de contas, “o bom senso e a razoabilidade resolvem grande parte dos desequilíbrios”.

Murray Boockchin: “Este Planeta Merece um Destino Melhor…”


Neste livro tentei abalar em termos teóricos o mundo, como a seu modo tentaram no seu tempo os Digger, os Leveller, os Ranter. Intentei sacudi-lo com força e tentei analisar os traços mais significativos da sua evolução. Os meus esforços terão sido bem sucedidos se consegui demonstrar que a maldição da dominação impregnou quase todo o empreendimento humano depois do declínio da primeira sociedade orgânica. Quase nenhuma realização, no campo institucional, técnico, científico, ideológico, artístico, a própria racionalidade, se salvou desta praga. Distintamente da tendência, muito em moda hoje, de procurar a origem desta na luta do selvagem contra a natureza, encontrei-a eu no esforço sinistro da elite emergente em reduzir à escravatura os seres humanos. Sublinhei o papel potencialmente libertador da arte e da imaginação ao dar expressão ao que é autenticamente humano, utópico e livre na natureza humana.

Ao contrário de Marx e Freud, que identificaram “civilização” e “progresso” com auto-controle repressivo, defendi que a antropologia e a história dão uma imagem da humanidade em tudo adversa à de Hobbes. A mentalidade do sacrifício chegou com o conflito social e com a repressão que acompanham o aparecimento da hierarquia, não com a razão e a técnica. Os baixos-relevos egípcios e mesopotâmicos revelam um mundo no qual os seres humanos eram constrangidos a negarem não apenas os seus desejos e os seus impulsos mais humanos como ainda o mais elementar sentido da personalidade. Eva, a serpente e o fruto da árvore do conhecimento não foram a causa da dominação mas as suas vítimas. A sociedade, entendida como obra de laços maternos e logo de interdependência humana, está aí para nos recordar que o paraíso terrestre foi em muitos aspectos uma realidade concreta e que o verdadeiro “pecado original” corresponde à ideia gnóstica de “auto-transgressão”.

Não creio que se possa regressar ao Éden original, onde teve lugar esta violação. A história dá-nos uma esperança de solução para os problemas da hierarquia e da dominação. O conhecimento, a gnosis, quer dizer, conhecer e transcender o nosso primeiro acto de auto-transgressão, é o primeiro passo na terapia duma patologia pessoal de natureza repressiva. O pensamento sem a acção, a teoria sem a prática, significariam, porém, abdicar de qualquer responsabilidade social.

Viu-se no nosso tempo a dominação cobrir um tal âmbito colectivo que doravante parece estar fora do controle humano. Os milhares de biliões de dólares gastos, depois da segunda guerra mundial, pelos vários Estados em meios de destruição e de controle – aquele armamento aterrador que figura em qualquer “orçamento de defesa” – são a expressão recente duma secular ansiedade de dominação que tomou por ora proporções demenciais. No confronto com esta monumental mobilização de matérias-primas, dinheiro, inteligência e trabalho humano, com fins exclusivamente destrutivos, os resultados obtidos em qualquer outro campo de acção empalidecem e quase se tornam irrelevantes. A arte, a ciência, a medicina, a literatura, a música ou a filantropia aparecem como meras migalhas caídas duma mesa sobre a qual, em sucessivos e sangrentos banquetes, se concentra a atenção dum sistema cuja fome de dominação não parece conhecer limite. É impossível não desconfiar dos actos de “generosidade” dum tal sistema, já que por detrás dos seus desígnios aparentemente meritórios – a tecnologia, a cibernética, os programas espaciais, o desenvolvimento agrícola, as inovações energéticas – se escondem motivações destrutivas e de sujeição da humanidade, através da violência, do medo e da ameaça.

Este livro tentou dar um panorama da dominação a partir das suas origens numa oculta pré-história da hierarquia, que precedeu de muito a estratificação das classes económicas. A hierarquia esconde-se não só na pré-história da humanidade como ainda no mais profundo da nossa psique. Por esse motivo toda a riqueza da palavra liberdade parece ter sido traída no seio dos processos de socialização e no mais íntimo das nossas experiências. Esta traição vem ao de cima na forma como tratamos as crianças e as mulheres, nas relações interpessoais, na conduta física, nos pensamentos íntimos, na vida quotidiana e até no modo inconsciente com que organizamos a percepção da realidade. É uma traição que não se cumpre só nas instituições políticas e económicas mas no quarto, na cozinha, na escola, nos lugares de divertimento e nos centros de educação moral como as igrejas ou os círculos de terapia psíquica. A hierarquia e a dominação chegam até a presidir a movimentos de emancipação, como é o caso do marxismo nas suas formas mais vulgarizadas e convencionais, nas quais a organização autónoma das “massas” é vista com desconfiança e frequentemente denunciada como “desvio anárquico”.

A hierarquia desforra-se da nossa pretensão de termos superado a “animalidade”, atingindo a “liberdade” e a “individualidade”. Nos instrumentos que usamos para salvar vidas humanas, para criarmos belos objectos, que tornam mais aprazível o mundo que nos rodeia, há sempre qualquer coisa de desafinado que faz com que mesmo as nossas acções mais criativas acabem por ser percepcionadas como “triunfos”, tornando a “obra-prima” correlata à dominação. A grandeza da tradição dadaísta, a partir do gnosticismo ofita até à sua moderna expressão surrealista, é ter possibilitado, com a exaltação do direito à insubordinação, à imaginação, ao jogo, à fantasia, à inovação, à iconoclastia, ao prazer e à criatividade do não consciente, a ascensão e a consciência de tudo aquilo que a hierarquia nos ocultou. Fê-lo muito mais implacavelmente e lealmente do que os mais sofisticados jogos teóricos no campo hermenêutico, estruturalista e semiótico, tão em voga nas universidades da sociedade ocidental contemporânea.

Um mundo assim contaminado pela hierarquia, organizando-se do comando à obediência, exprime o seu espírito autoritário no modo como fomos habituados a ver-nos: como objectos a manobrar, coisas a usar. A nossa concepção de realidade, partindo desta imagem de nós próprios, alargou-se à imagem que temos da natureza “exterior”, assim se revelando que fomos encarando de forma cada vez mais mineral e inorgânica quer a nossa natureza quer a “exterior”. Simplificámos de forma tão perigosa a natureza, a sociedade e a personalidade, que comprometemos seriamente a integridade das formas complexas de vida, a riqueza das formas sociais e o ideal duma personalidade poliédrica.

Num tempo em que o mecanicismo materialista tem como concorrente um espiritualismo não menos mecânico, sublinhei a necessidade de prestar atenção à diversidade, visando alimentar uma noção de totalidade como princípio unificante duma ecologia da liberdade. Um tal acento é muito diverso daquilo que se acentua como “unitariedade”. Ao opor-me às tentativas correntes de dissolver a diversidade em denominadores comuns, materiais ou espirituais, exaltei a riqueza da variedade no desenvolvimento natural, social e pessoal. Propus uma interpretação, algo hegeliana, em que a história dum fenómeno – trate-se de subjectividade, de ciência ou de técnica – define esse fenómeno. Em cada um destes âmbitos, encontramos sempre vários graus e aspectos de compreensão, de intuição e de engenho, que devem ser sempre requeridos, caso se queira tomar a realidade nas suas várias graduações e aspectos. Ao invés, o pensamento ocidental procurou compreender a experiência e agir na realidade por meio dum único modo de subjectividade, de ciência e de técnica. Tendemos a fundar as nossas noções de realidade sobre bases reciprocamente exclusivas: económica num caso, técnica noutro, cultural noutro ainda. Destarte, linhas evolutivas fundamentais foram classificadas, da perspectiva dum limitado nível de desenvolvimento da evolução natural ou humana, como “basilares” ou “contingentes”, “estruturais” ou “supra-estruturais”.

Tentei evidenciar que cada uma destas “linhas” ou de cada uma destas “super-estruturas” tinha a sua autenticidade e um direito histórico à sua identidade, sem dúvida interdependente com outras linhas evolutivas mas rica duma integridade só dela. O problema singular que mais me preocupou foi a interacção entre a evolução da dominação e a evolução da liberdade. Por liberdade não entendo só a diferença dos diferentes, mas também o alargamento das nossas noções de subjectividade, técnica, ciência e ética, com o reconhecimento da história delas e da capacidade de penetração que delas deriva a respeito dos vários estádios de desenvolvimento. Tentei mostrar não só como estes aspectos da liberdade formam um mosaico cada vez mais rico e completo, que apenas uma sensibilidade ecológica pode abalroar, mas também como esses aspectos interagem entre si, sem perderem, na multiforme variedade de tudo, a sua unidade. Não há uma “base” económica que reja a cultura, como não há uma “base” cultural que reja a economia. Na realidade, os próprios termos “base” e “supra-história” são estranhos à perspectiva que permeia este livro. Redutores e simplistas, estas palavras tendem a reflectir visões ingénuas duma realidade cuja riqueza desafia qualquer interpretação esquemática e estática.

Se a história pré-capitalista mostra alguma coisa é o facto dramático dos homens e das mulheres terem feito sacrifícios invulgares, por vezes até o da própria vida, pela crença na virtude, na justiça e na liberdade – crença que não se explicam apenas por interesses materiais e de estatuto social. A extraordinária história dos judeus, uma história de perseguições quase ininterruptas durante cerca de dois mil anos, a dos irlandeses no último século, e a dos movimentos populares revolucionários, da Reforma até à Comuna de Paris, estão aí a testemunhar a força dos ideais religiosos, nacionais ou sociais, capazes de empurrarem centenas de milhões de pessoas para actos de incrível heroísmo. Dizer que na “base” esses homens e essas mulheres foram empurrados por “factores económicos” de que não tinham consciência, quer dizer, manobrados pela dialéctica “económica” da história, significa presumir que estes factores eram de facto dominantes, quando na verdade ainda está sequer por provar que, em alguns casos, eles tenham sequer existido. Ainda quando esses factores pareçam evidentes, a sua importância nos actos humanos é tudo menos óbvia. Quando John Ball ou Gerrard Winstanley descrevem a avidez da classe dominante do seu tempo, sente-se que a sua crítica é menos guiada por interesses materiais do que por ideais de justiça e de liberdade.

A aversão à injustiça fervia no coração dos oprimidos não tanto por causa duma condição social particularmente pesada mas por via dum flagrante contraste entre as regras morais relativas à justiça e a sua transgressão no dia-a-dia. A história do cristianismo está impregnada desta contradição, que explica o papel catalisador que ele tantas vezes representou na história humana, gerando movimentos milenaristas revolucionários. Só quando o capitalismo contaminou a história com a ideia de “escassez”, fazendo dum mesquinho espírito de competição o motor de qualquer avanço social, é que grande parte destes ideais de virtude, de justiça e de liberdade degeneraram em grosseiros interesses materiais. Até os primeiros movimentos a favor duma redistribuição aparecem menos como grandes movimentos de saque e mais como esforços de reabilitação dum modo de vida revoluto, uma ordem social tradicional em que os hábitos de partilha e de não acumulação eram as normas prevalecentes. Muitas vezes estes movimentos destruíram não só os registos legais que legitimavam a autoridade e a propriedade do escol como ainda os palácios, as herdades, as mobílias e até os celeiros que pareciam encarnar o poder.

A revolução francesa, como notou Hannah Arendt (On Revolution, Viking Press, New York, 1965, pp. 36-52), assinala uma inversão das finalidades na mudança social: da aspiração ética passa-se a uma consciência da “questão social” expressa em termos de necessidades materiais. Na realidade esta alteração de perspectiva só parece ter chegado mais tarde, porventura já no nosso século. Marx exultou com este novo “realismo” ou “materialismo economicista”, mas o resultado é que, espartilhados entre a “fetichização das necessidades” e o desejo de significado ético e comunitário, acabámos por nos tornar produtos esquizofrénicos dum mundo condenado à imobilidade da sensação de impotência pessoal e social. Inventámos uma mística das “leis históricas” e do “socialismo científico” que serve mais, como construção, para compensar os nossos frustrados impulsos comunitários e a nossa malograda necessidade de sentido ético do que para explicar o motivo pelo qual comunidade e ética estão tão assentes no real e tão longe como fins.

Se não há um único aspecto da realidade, seja económico ou outro, que por generalização possa explicar a evolução social, se não existem leis sociais que orientem a nossa aproximação mental aos fenómenos, em que base e com que coordenadas podemos então interpretar os comportamentos sociais? Em meu entender o quadro de maior significado em que decorre a aventura humana está na distinção entre autoritário e libertário. Não quero com isto dizer que estes termos exprimam um sentido teleológico da história, nem tão pouco que estão isentos de ambiguidade. Não somos por certo nós que afirmaremos ou negaremos que exista na história humana um ponto de chegada, que possa corresponder ao “absoluto” hegeliano, ao “comunismo” marxista… ou então à extinção definitiva. É pura figura de estilo dizer que a “verdadeira história” da humanidade só começará no momento em que a “questão social” ficar resolvida. Por outro lado a crença iluminista no progresso tecnológico é o sistema menos fiável de que dispomos. Hoje, no mais tecnicizado dos mundos, em que a própria ética foi acoplada ao qualificativo “instrumental”, estamos dispostos a reconhecer que até os nossos projectos mais cativantes, não obstante os atributos que ostentam, “conviviais”, “apropriados” ou outros, possam ser empregues para criar estratégias “alternativas” à violência.

Nunca é de mais sublinhar que as palavras “libertário” e “autoritário” não se referem só a formas institucionais, técnicas e científicas antagónicas, mas sobretudo a sensibilidades e valores, em suma a epistemologias opostas. A definição que dou do termo “libertário” aparece modelada pela definição que dou de ecossistema: unidade na diversidade, espontaneidade e relações de complementaridade, em que está ausente qualquer forma de hierarquia e dominação. Com o termo “autoritário” refiro-me à hierarquia e à subordinação nas suas várias formas sociais: gerontocracia, patriarcado, relações de classe, elites de vários tipos e por fim o Estado, incluídas as suas várias formas socialmente mais parasitárias: o capitalismo de Estado. Mas se não incluirmos aí também as formas contrárias de sensibilidade, ciência, técnica e ética e as contrárias formas de razão aí implícitas, as palavras “libertário” e “autoritário” reduzem-se a termos meramente institucionais. Devem-se pois explicitar ao máximo aquelas implicações, e de igual modo as do arco de qualquer outra experiência, caso se queira que o seu recíproco antagonismo tenha um sentido dinâmico e transformador.

Reconheça-se à razão, na tensão que a disputa entre o autoritário e o libertário, o direito a uma racionalidade libertária. Do ponto de vista filosófico insistimos talvez até de mais que uma racionalidade libertária deve fundar-se em cânones de verdade e de coerência, mas também de intuição e de contradição, que invalidam por inteiro as pretensões de verdade do pensamento formal e analítico. Dado que intuição e contradição podem servir fins autoritários, como se vê na filosofia fascista e no materialismo dialéctico estalinista, e que ao invés a razão analítica teve momentos que serviu a liberdade de pensamento, não temos, além dos nossos critérios éticos, nenhum guia seguro e exclusivo, que garanta frutos indiscutíveis de emancipação ao nosso pensar. As figuras de Buda e de Cristo tanto foram usadas com propósitos de autoritarismo ou de liberdade. O misticismo e o espiritualismo radicais tanto se mostraram anti-naturais e anti-humanos como ecológicos e milenaristas. Aquilo que é decisivo no ajuizar dos critérios da razão, ou para ser mais preciso no modelar duma nova aproximação à subjectividade, é a forma como é ou não é impulsionado um modelo ético biologicamente variado, baseado na fecundidade da vida e na qualidade da complementaridade, resultado dum mosaico de experiências sempre mais ricas e acima duma concepção piramidal e hierarquizada da experiência. Nem sequer é preciso renunciar ao Organum de Aristóteles, que durante tantos séculos serviu de base aos princípios lógicos do pensamento ocidental, ou à teoria dos sistemas, com o seu conceito de causalidade circular. Devemos apenas modelar a razão, linear ou circular que seja, sobre uma ética pessoal e socialmente emancipadora. A razão, cuja demolição por Horkheimer e Adorno, suscitou tanto pessimismo entre os colegas deles, pode ser devolvida à ética libertária, uma ética aberta à riqueza da sensibilidade humana, enquanto encarnação da faculdade mesma de sentir a todos os níveis da evolução da orgânica social.

Há uma base sobre a qual é possível edificar esta ética libertária, uma área que dá uma direcção e um significado que não dependem nem dos caprichos da opinião e do gosto nem da fria eficácia instrumental. À parte os lugares-comuns sobre o povo, a raça ou as “inevitáveis leis dialécticas”, parece existir na natureza uma espécie de direcção latente, uma evolução da auto-organização, que dá lugar à subjectividade e cujo termo final parece ser a auto-reflexão característica dos seres humanos. Semelhante visão pode constituir um preconceito antropormófico, prestando-se a um relativismo arbitrário, muito parecido à razão subjectiva, ou instrumentalismo, criticada por Horkheimer. Todavia, até a pretensão filosófica dum princípio sem pressupostos é um pressuposto da mente. Ainda não se concluiu que a antiga crença de que há valores intrínsecos na evolução natural é mais discutível do que a imagem russeliana da vida e da consciência humana como puros produtos do acaso.

Será fantasia avançar a hipótese que o nosso ser seja só por si uma epistemologia e uma ontologia, quer dizer, uma filosofia do organismo capaz de responder às acusações de antropomorfismo? A forma não é menos essencial à natureza do movimento e à finalidade da função. Qualquer coisa que se escolha por natural implica como função seja a forma seja o movimento. Invocar o acaso puro como deus ex machina dum desenvolvimento estupendamente organizado, que se presta a uma demonstração sintética matemática, é usar o acidental como túmulo da explicação. Argumentando com perspicácia a favor duma aproximação teleológica, Hans Jonas perguntou-se se uma análise estritamente psico-química da estrutura do olho e do seu estímulo tinha sentido e se não era correlata ao acto de ver. Diz Hans Jonas (The phenomenon of life, Delta Books, Nova Iorque, 1966: p. 90; sublinhados meus): Sempre se encontrará a intencionalidade do organismo enquanto tal e a sua ânsia de vida: presente já em cada tendência vegetativa estes atributos ganham a primeira forma de consciência nos reflexos indistintos, na reactiva excitabilidade, dos organismos inferiores, consciência que se avoluma nos impulsos, nos esforços e na ânsia da vida animal, atingindo a máxima clareza na sensibilidade, na vontade e no pensar humanos. Reflexos, impulsos, consciência… todos são aspectos essenciais do lado teleológico da “matéria” (…). Em cada caso, a estrutura e o comportamento teleológicos dos organismos não configuram simplesmente um modo alternativo de os descrever: são, e prova-o a consciência orgânica de cada um deles, a manifestação exterior da natureza íntima da substância. O que carreia que não exista organismo sem teleologia, que não exista teleologia sem essa natureza íntima e que só a vida possa conhecer a vida.

Poder-se-á acrescentar que só se conhece a vida como resultado da vida. Esta não pode nunca, pela sua natureza mesma, ser dissociada da sua capacidade potencial de conhecer. Poder-se-iam juntar muitas outras sequências às considerações de Jonas sobre teleologia. Pode-se conceber por exemplo a teleologia como actualização duma potencialidade, mais precisamente como o resultado final da tendência imanente para a auto-realização, uma tensão que deixa espaço à casualidade e à incerteza. Neste sentido, a teleologia expressa a auto-organização dum fenómeno para ser aquilo que é, sem certeza à partida que assim será. O nosso conceito de teleologia não necessita de nascer em linha recta de nenhuma “férrea necessidade”, de nenhum auto-desenvolvimento linear e preciso, que “inevitavelmente” assegure a realização final dum fenómeno a partir do seu ponto de partida. Não obstante um fenómeno não poder auto-constituir-se por acaso, a casualidade pode impedir a auto-realização. O seu “telos” apresenta-se assim como consequência duma tensão vitoriosa e não como uma necessidade inevitável.

O mais cativante, porém, que está hoje acontecendo é o facto de ser a própria natureza a escrever a filosofia e a ética natural, não os lógicos, os positivistas, os sociobiologistas, os místicos ou os herdeiros do cientismo de Galileu. É cada vez mais óbvio que não estamos sozinhos no universo, nem mesmo no vazio do espaço. Graças a uma revolução muito recente na astrofísica, talvez só equiparável às descobertas de Copérnico e Kepler, o entendimento do cosmos exige um volta-face especulativo da mente e uma aproximação mais qualitativa aos fenómenos naturais. Torna-se dia a dia mais plausível que o universo inteiro seja o berço da vida e não apenas o nosso planeta ou planetas de condições idênticas. O “big-bang”, a grande explosão, cujos ecos distantes, atravessando mais de quinze mil milhões de anos, ainda hoje são perceptíveis pelos instrumentos dos astrofísicos, pode ser a prova, mais que incidente casual, de uma forma de “respiração” cósmica, cujas expansões e contracções se estendem por um tempo infinito. Se assim é, e situamo-nos no plano das meras conjecturas, estamos diante de processos cósmicos, mais do que ante um episódio singular, na formação do universo. Se estes processos exprimem uma forma sem fim de história universal, nós, que estamos irrevogavelmente fechados na era cósmica que nos é própria, não estaremos nunca em condições sérias de interpretar a realidade e o significado deles. Não é porém despropositado perguntar se é dum vasto e contínuo desenvolvimento do universo que se trata ou se dum género de respiração rítmica universal.

Tudo isto se passa no campo das conjecturas, dizíamos, conquanto a formação de todos os elementos do hidrogénio e do hélio, a sua combinação em pequenas moléculas e depois a sua auto-formação em grandes, e por fim a organização destas nos componentes da vida e da mente, seguem uma sequência que desafia a imagem russeliana duma humanidade como faúlha acidental num vácuo privado de sentido. Certos passos desta sequência põem fortemente em dúvida tais concepções em que a palavra “acaso” se torna um cauteloso substituto duma substancial inevitabilidade. Um universo disseminado por um pó composto de hidrogénio, carbono, azoto e oxigénio pareceria inevitavelmente destinado à formação de moléculas orgânicas. Os radio-astrónomos encontraram no espaço inter-estelar cianogénio, óxido de carbono, ácido cianídrico, formaldeído, ácido fórmico, álcool metílico, acetal e formato de metilo. A imagem clássica do espaço como vácuo está, em suma, ultrapassada e dá lugar à imagem dum espaço como lugar de incessante actividade química e genética, a favor duma surpreendente sequência de compostos orgânicos cada vez mais complexos.

Daqui até à auto-organização de moléculas que constituam formas rudimentares de vida o passo é curto. A análise dos meteoritos com pequenas inclusões carbonáceas evidenciou a existência de hidrocarbonetos aromáticos de cadeia longa, como ácidos gordos, aminoácidos e porfirinas, isto é, compostos de que é feita a clorofila. Num conjunto de experiências de laboratório, iniciadas pela conhecida “spark.gap” de Miller Urey, produziram-se aminoácidos simples fazendo passar descargas eléctricas através dum recipiente que continha gás presumivelmente idêntico, enquanto combinação, à atmosfera terrestre primitiva. Modificando o gás a partir de teorias sobre a atmosfera originária, outros investigadores conseguiram obter aminoácidos complexos, precursores do ADN.

Sempre de modo hipotético, mas com um impressionante número de provas, é agora possível imaginar como os microrganismos anaeróbios puderam desenvolver membranas simples e como, num crescendo de complexidade, emergiram formas distintas de vida capazes de processos metabólicos altamente desenvolvidos. Outras hipóteses, nas conjecturas sobre a formação das estruturas genéticas, revelam num modo ainda mais impressionante a gradativa continuidade entre inorgânico e orgânico. Tais conjecturas conduzem-nos à característica central da vida mesma: a capacidade que tem um complexo mosaico de macro moléculas orgânicas de se reproduzir e, o que é mais, de o fazer com mutações suficientemente significativas para permitir a evolução. Já em 1944, Erwin Schrodinger tinha fornecido uma definição da reprodução e da evolução orgânica. No livro What is life? Mind and matter (Cambridge University Press, Nova Iorque, 1944: 5) este ilustre físico observava que “a parte essencial da célula viva – o cromossoma – podia ser definido como um cristal aperiódico”. Este na verdade não se limita a crescer por adição, como um periódico, mas modifica-se de modo significativo, dando lugar a formas evolutivas novas, mutações que iniciam e desenvolvem dados hereditários.

Graham Cairns-Smith avançou uma outra hipótese, uma das muitas que hoje são avançadas, que pode ajudar a esclarecer a natureza dos primitivos processos reprodutivos. O ADN é demasiado instável quimicamente, sublinha Cairns-Smith, para poder ter sobrevivido às radiações e às altas temperaturas a que estava exposta na origem a superfície terrestre. Com uma analogia, Cairns-Smith equipara o ADN a um “nastro magnético: é muito eficiente se provido dum ambiente protector indicado, de matérias-primas adequadas e dum complexo sistema de registo”. Estes atavios, sustém ele, podem-se até encontrar no mundo inorgânico (Genes Made of Clay, “The new scientist”, 24 de Outubro de 1974, p. 276): Em conjunto com numerosas outras considerações, isto leva a pensar num processo de cristalização como mecanismo de reprodução, um qualquer defeito nos cristais torna-se o modelo de formação dos novos modelos. Certas argilas de mica parecem-me oferecer cruciais e promissoras possibilidades.

A hipótese de Cairns-Smith sugere no mínimo que a vida, por vias próprias e seguindo a sua própria evolução genética, não se retraiu com os fenómenos do mundo inorgânico. Não quero com isto dizer que a biologia possa ser reduzida à física, tanto como a sociedade não pode ser reduzida à biologia. Aquilo que Cairns-Smith sugere é que, se certos cristais de argila podem ser os precursores das sucessivas e das mais avançadas formas de material hereditário orgânico, a natureza pode ser unificada por algumas tendências comuns. Tais tendências partilhariam uma idêntica origem na realidade do universo, ainda que funcionando de forma diferente e em diversos níveis de auto-organização.

Reside aqui, do meu ponto de vista, o aspecto essencial: a substância e a sua propriedade são inseparáveis da vida. A concepção bergsoniana da biosfera como factor da redução da entropia, num universo que se presume avançar para a perda de energia e para a desordem crescente, parece atribuir à vida uma razão cósmica para existir. Caso as formas de vida tenham esta função, isso não sugere de todo que a vida tenha sido projectada do exterior por um demiurgo sobrenatural. Sugere antes que a “matéria”, ou substância, tem propriedades auto-organizativas, não menos válidas que a massa e o movimento que a física newtoniana lhe atribui.

Ao modo dos atributos tradicionais da “matéria”, não faltam dados para tornar plausíveis estas novas propriedades. No mínimo a ciência deve ser aquilo que na realidade a natureza é; e a vida na natureza, para usar a terminologia bergsoniana, é uma força que age em sentido contrário à segunda lei da termodinâmica, isto é, como factor de redução entrópica. A auto-organização da substância em formas cada vez mais complexas – e do mesmo modo da forma em correlação com a função e da função com a auto-organização – implica uma incessante actividade para chegar à estabilidade. Pode-se pois supor que a estabilidade, assim como a complexidade, seja um “objectivo” da substância, que a complexidade, e não apenas a inércia, favoreça a estabilidade e que, enfim, a complexidade seja a característica fundamental da evolução orgânica e duma interpretação ecológica das inter-relações bióticas. Todos estas noções são modos de compreender a natureza, não divagações místicas. São elementos probatórios e são-no muito mais do que os preconceitos teóricos que ainda hoje se opõem à ideia de que o universo tenha um significado, um significado moral, atrever-me-ei a dizer.

Parece claro que não nos podemos mais contentar com uma matéria “morta” e passiva que fortuitamente se junta em substância viva. O universo dá testemunho duma substância que está em constante tensão e se desenvolve, e não apenas se movimenta, uma substância cujo atributo dinâmico e criativo é a sua incessante capacidade auto-organizativa em formas sempre mais complexas. A fecundidade natural deriva antes de mais do crescimento, não da deslocação no espaço. Não podemos retirar às formas a sua situação central neste processo de crescimento e de desenvolvimento, nem podemos inferiorizar a função da forma que lhe é correlata. Aquele universo ordenado que torna a ciência um projecto possível e que dá sentido ao uso duma concisa linguagem lógico-matemática supõe esta correlação de forma e função. Nesta perspectiva, a matemática serve não apenas como “língua” da ciência mas também como seu logos. Este logos é sobretudo um projecto possível, já que toma em mãos um motivo que é inerente à natureza, “objecto” da indagação científica.

Uma vez superado o degrau do comportamento meramente instrumental nos embates da “linguagem” das ciências, podemos encontrar outros atributos para aquela substância que chamamos vida. Concebida como uma substância que infinitamente se conserva e se desenvolve, metabolismo incessante, a vida mostra também uma outra característica: a simbiose. Dados recentes confirmam a hipótese do naturalismo cooperante de Pedro Kropotkine não é só aplicável às relações dentro duma mesma espécie e entre espécies, mas ainda dentro das formas celulares complexas e entre elas. Há mais duma década observava já William Trager (Symbiosis, Van Nostrand Reinhold Co., Nova Iorque, 1970: VII): O conflito existente na natureza entre organismos diversos foi largamente divulgado e popularizado pelas expressões “luta pela vida” e “sobrevivência do mais forte”. Poucos se dão conta, porém, que a cooperação entre organismos diferentes – a simbiose – é igualmente importante e que “o mais forte” pode ser aquele que mais ajuda o outro a sobreviver.

Consciente ou não, esta definição do “mais forte” não é só uma mera conjectura científica dum ilustre biólogo; é também um juízo ético idêntico ao que Kropotkine extraía do seu trabalho de naturalista e do seu ideal de anarquista. Trager sublinha que a integração “quase perfeita” dos “microrganismos simbióticos na economia do hospedeiro (…) levou à hipótese de que certos organismos intracelulares pudessem ter sido na origem microrganismos independentes.” Na verdade os cloroplastas, que desempenham a fotossíntese nas plantas de células eucarióticas, são estruturas definidas que se replicam por divisão, têm um ADN característico, semelhante ao das bactérias cocoformes, sintetizam as suas próprias proteínas e estão envolvidas por uma dupla membrana.

O mesmo se pode dizer das mitocôndrias, “centrais eléctricas” das células eucarióticas. As primeiras investigações neste campo remontam à década de 60 do século XX e foram desenvolvidas com muito entusiasmo por Lynn Margulis (Symbiosis in cell evolution, W. H. Freeman and Co., San Francisco, 1981) em numerosos artigos e livros sobre a evolução celular. Como se percebe a célula eucariótica é a unidade morfológica elementar de todas as formas complexas de vida vegetal e animal. Também os fungos apresentam esta estrutura celular provida de núcleo. As células eucarióticas são aeróbias e incluem várias subclasses claramente definidas. Ao invés, as células procarióticas não têm núcleo, são anaeróbias, menos especializadas e, segundo Margulis, são os antecedentes evolutivos das eucarióticas. As procarióticas são a única forma de vida que podia sobreviver e prosperar na atmosfera terrestre primitiva, onde apenas existia uma quantidade mínima de oxigénio.

Margulis conjecturou e largamente demonstrou que as células eucarióticas consistem numa adaptação simbiótica funcional de procarióticas tornados interdependentes umas com as outras. Os flagelados eucarióticos tornaram-se espiras anaeróbias; as mitocôndrias fizeram-se bactérias capazes de respiração e de fermentação e os cloroplastídeos deram lugar às algas verde azuis recentemente classificadas como cianobactérias. Esta teoria, amplamente aceite hoje entre os biólogos, retém que os antepassados fagócitos das eucarióticas tinham absorvido, sem os digerir, espiras, protomitocôndrias (que Margulis sugere possam ter invadido os seus hospedeiros) e, no caso das células da fotossíntese, cianobactérias e clorobactérias de forma arredondada. As diversas formas aeróbias de vida teriam assim tido origem num processo simbiótico que integrou uma variedade de microrganismos naquele que pode ser definido como um organismo colónia: a célula eucariótica. O mutualismo cooperante, não predatório, aparece assim como o princípio guia para a evolução das formas da vida aeróbia altamente complexa que hoje conhecemos.

A perspectiva de que a vida e todos os seus atributos estão latentes na substância enquanto tal e de que a evolução biológica esteja profundamente radicada na simbiose e no mutualismo indica como é importante redireccionar a nossa noção de “matéria” como substância activa. Observava Manfred Eigen (Molecular self organization and the early stages of evolution, in Quartely review of biophysis, vol. IV, n.º 2/3, p. 202) que a auto-organização molecular sugere que a evolução “se apresenta como evento inevitável dada a presença duma certa matéria com específicas propriedades auto-catalíticas e dum fluxo limitado de energia livre, isto é, de energia solar, necessária para compensar a produção fixa de entropia.” Com efeito esta actividade auto-organizativa vai além da emergência e da evolução da vida e diz respeito àqueles factores aparentemente inorgânicos que produziram e mantêm “um ambiente bioticamente favorável ao desenvolvimento de formas de vida cada vez mais complexas”. Como sublinha Margulis, sintetizando a hipótese Gaia, elaborada por ela e por James E. Lovelock, não é mais sustentável que a vida haja sido constrangida a adaptar-se a um ambiente independente, geológica e meteorologicamente determinado. Este dualismo entre mundo vivente e não vivente – baseado em mutações casuais e pontuais das formas de vida, que por sua vez determinam quais as espécies que se salvam e as condenadas – aparece substituído pela noção mais estimulante que a vida, como diz Margulis, “produz grande parte do seu ambiente”. E ainda: “certas propriedades da atmosfera, da terra e da hidrosfera são controladas para e pela biosfera.”

Comparando planetas sem vida como Marte ou Vénus com a Terra, Margulis nota que a alta concentração de oxigénio na nossa atmosfera é anómala quando confrontada com o anidrido carbónico dos outros planetas. Demais “a concentração de oxigénio na atmosfera terrestre permanece constante, não obstante a presença de azoto, metano, hidrogénio e outros reagentes potenciais”. Na realidade a vida tem um papel activo na manutenção das moléculas de oxigénio livre na atmosfera. O mesmo se pode dizer para a alcalinidade e do nível moderado de temperatura da superfície terrestre. Diz Margulis (op. cit., pp.348-49): As anomalias da atmosfera terrestre são outra coisa que casualidade. As temperaturas das regiões tropicais e das temperadas divergem dos valores que teríamos por interpolação entre os valores correspondentes de Marte e Vénus e os desvios que têm lugar na maior parte dos organismos. O oxigénio mantém-se em cerca de vinte por cento, a temperatura média dos estratos inferiores da atmosfera é de cerca de 22 graus centígrados e o pH apenas acima de 8. Estas anomalias a escala planetária conservaram-se por longo tempo. A estranha composição química da atmosfera terrestre manteve-se por milhões de anos, apesar do tempo de permanência dos gases reagentes se medirem apenas em meses ou anos. Margulis conclui assim: É altamente improvável que o acaso possa explicar o facto da temperatura, o pH e a concentração de elementos nutritivos hajam sido por grande espaço de tempo os adequados à vida. Ainda mais improvável, se pensarmos que os principais perturbadores dos gases atmosféricos são os organismos, antes de mais os micróbios. Ao invés, parece mais provável o investimento de energia, por parte dos viventes, numa actividade de conservação destas condições.

Em suma, até a Síntese Moderna, para usar a terminologia empregue por Julian Huxley para definir o modelo neo-darwinista de evolução orgânica introduzido nos anos 40, foi posta em discussão pela sua perspectiva limitada e talvez demasiado mecânica. A imagem dum ritmo evolutivo lento, saído da interacção de pequenas variações seleccionadas pela sua adequação ao ambiente, não se afigura sustentável, como parecia ser, a partir das descobertas fósseis disponíveis. A evolução aparece hoje mais esporádica, muitas vezes intervalada por longos períodos de estagnação. Espécies altamente especializadas tendem a modificar-se ou a desaparecer por causa dos reduzidos nichos ecológicos em que podem sobreviver, enquanto espécies menos especializadas se transformam mais lentamente e desaparecem com menos frequência, graças aos ambientes mais variados em que conseguem sobreviver. Esta hipótese, dita “hipótese de efeito”, adiantada por Elisabeth Vrba (citada por Robert Lewin, “Evolutionary theory under fire”, Science, vol. 210, 1980, p. 885), sugere que a evolução seja mais uma tendência imanente e não tanto o produto de forças selectivas externas. As mutações acasalam mais um mosaico voluntário do que pequenas e casuais modificações na estrutura e nas funções das formas de vida. Como alguém observou, enquanto a selecção das espécies atribui a força evolutiva às condições do ambiente, a “hipótese de efeito” endereça essa forças a parâmetros internos que determinam os níveis de especialização e de extinção.

A ideia de pequenas e graduais mutações casuais, uma teoria que concorda com a concepção vitoriana de transformações evolutivas estritamente fortuitas, pode ser posta em causa apenas por razões de base genética. Não só um gene mas um cromossoma, em mutáveis combinações entre si, podem ser modificados quimicamente e mecanicamente. As transformações genéticas podem ir de “simples” mutações pontuais a novas sistematizações de cromossomas muitos mais consistentes. Demais parece evidente, sobretudo no seguimento de resultados experimentais, serem possíveis trocas de mutações morfológicas geneticamente determinadas. Pequenas modificações genéticas podem dar lugar a transformações morfológicas, relevantes ou irrelevantes, e o mesmo vale para as grandes mutações genéticas.

A observação de Trager de que a espécie “mais adequada” pode ainda ser “aquela que mais ajuda uma outra viver” é uma fórmula excelente para refazer o quadro da evolução natural, vulgarmente pintado como drama insensato de sangrenta competição visando a sobrevivência. Existe uma rica literatura, que, remontando ao fim do século XIX, sublinha o papel desempenhado pela cooperação intra e entre específica na capacidade de sobrevivência das formas de vida no planeta. O famoso Apoio mútuo de Kropotkine sintetizou o conhecimento então disponível e juntou a palavra mutualismo ao vocabulário biológico. Os primeiros capítulos desse livro resumem trabalhos contemporâneos de Kropotkine, as suas pesquisas na Ásia oriental e ainda uma montanha de dados novos sobre insectos, crustáceos, pássaros, as associações para caça dos “mamíferos carnívoros”, as sociedades de roedores, e outras sequências idênticas. O material é em grande parte intra-específico, mesmo que os biólogos mutualistas de há um século não tivessem ainda evidenciado os sistemas de apoio específico que nós sabemos hoje existirem numa quantidade muito maior do que Kropotkine podia imaginar. Buchner escreveu em 1953 um volume inteiramente dedicado à endo-simbiose dos animais com microrganismos vegetais; Henry, por sua fez, no meado da década de 60 actualizou o estudo desta questão nos dois volumes de Symbiosis. As provas que este último apresenta sobre esse modo particular de mutualismo que é a simbiose inter-específica são, dizendo pouco, massivas. Ainda mais do que Apoio mútuo de Kropotkine, o trabalho de Henry documenta as relações mutualistas a partir da relação inter-específica entre rhizobium e legumes, passando pelas associações vegetais, pelo comportamento simbiótico entre animais, para chegar ao grande mecanismo homeostático de escala planetária ao nível das relações bioquímicas.

A adaptação raramente tem um significado biológico como pura sobrevivência e adequação ao meio das espécies. Se ficar por este nível de superfície, torna-se apenas uma empresa de adaptação individual que não consegue explicar a necessidade dos sistemas vitais de apoio que todas as espécies têm, seja por sistema autotrófico ou heterotrófico. A teoria evolutiva tradicional tende a abstrair uma espécie do seu ecossistema, isolando-a e considerando a sua sobrevivência de modo muito abstracto. Por exemplo, a interacção de mútuo apoio entre os organismos de fotossíntese e os herbívoros, longe de ser a forma mais simples de acção predatória ou de heterotrofia, é ao invés indispensável até para a fertilidade do solo, graças aos dejectos animais, à disseminação das sementes, à reciclagem dos cadáveres num ecossistema que se enriquece a cada momento. Mesmo os grandes carnívoros, predadores dos herbívoros, têm uma função vital, de controle demográfico selectivo, eliminando os animais doentes ou velhos, para os quais a vida estaria destinada a ser sobretudo sofrimento.

Paradoxalmente se desvalorizamos o significado do verdadeiro sofrimento e da crueldade reduzindo-o a dor e a acção predatória, do mesmo modo desvalorizamos o significado da hierarquia e da dominação roubando-lhes o sentido social e reduzindo-as a relações transitórias entre indivíduos mais ou menos violentos no seio duma específica comunidade gregária animal. O medo, a dor e a morte que um matilha de lobos dá a uma velha rena doente dão testemunho não da crueldade da natureza mas antes dum modo de morrer adequado à renovação orgânica e à estabilidade ecológica. O sofrimento e a crueldade pertencem ao mundo da angústia pessoal, da dor inutilmente infligida, da degradação moral de quem atormenta a vítima. Estas noções não são aplicáveis à eliminação dum organismo que já não pode funcionar a um nível que torna a vida tolerável. É perverso associar qualquer dor a sofrimento, qualquer acção predatória com crueldade. Sofrer a angústia da fome, os traumas psicológicos, a insegurança, o abandono, a solidão, a morte na guerra, as doenças incuráveis, nada disto pode ser comparado com a breve dor duma morte quase insciente dum acto predatório. As aflições da natureza são raramente tão cruéis como os sofrimentos sistemáticos e organizados infligidos pela sociedade humana aos seres vivos, animais ou homens, de perfeita saúde, sofrimento que só a mente humana pode conceber.

Nem a dor, nem a crueldade, nem a agressão, nem a competição explicam de forma satisfatória o aparecimento e o desenvolvimento da vida. Para uma melhor explicação devíamos tomar em consideração o mutualismo e um conceito de “adaptação” que reforce os sistemas de mútuo apoio e que responsabilize o mais adaptado. Se estamos dispostos a reconhecer a natureza auto-organizativa da vida, o papel decisivo do mutualismo e a sua dinâmica evolutiva impõem-nos a redefinição de “adaptação” em termos de ecossistema. E se estamos dispostos a ver a vida como um fenómeno que pode modelar e conservar aquele mesmo “ambiente” que se considera como fonte selectiva da sua evolução, uma pergunta crucial se impõe: faz sentido continuar a falar de “selecção natural” como força motriz da evolução biológica? Não precisaremos antes de falar em “interacção natural” para darmos conta de forma plena do papel da vida no criar e no orientar as forças que explicam a sua evolução? A biologia contemporânea dá-nos um quadro de interdependências muito mais importante na modelação das formas de vida do que tudo aquilo que um Darwin, um Huxley ou os autores da Síntese Moderna poderiam ter previsto. A vida é necessária não apenas em termos de auto-conservação mas até por causa da sua auto-formação. “Gaia” e a subjectividade são mais que efeitos da vida: são os seus atributos integrais. A grandeza duma autêntica sensibilidade ecológica, bem diferente do “ambientalismo” superficial hoje dominante, é que ela nos dá a possibilidade de generalizar de modo radical as inter-relações mutualistas, fazendo da variedade em que assenta o fundamento da estabilidade. A sensibilidade ecológica dá-nos uma perspectiva coerente que explica a realidade no sentido pleno do termo, dando-lhe uma explicitação ética.

Desde a longínqua idade helénica até ao primeiro Renascimento a “natureza” foi vista sobretudo como bússola de orientação ética, graças à qual o pensamento humano encontra o seu sentido e a sua coerência. A natureza não humana não era externa à natureza humana e à sociedade. Ao invés, a mente era apenas uma parcela dum logos cósmico que fornecia critérios objectivos para os conceitos pessoais e sociais de bem e de mal, justo e injusto, belo e feio, amor e ódio e, em suma, para todo um conjunto de valores, graças aos quais era possível caminhar em direcção da virtude e duma existência feliz. As palavras dike e andike – justiça e injustiça – compunham a cosmologia dos filósofos gregos da natureza. Sobraram até hoje traços desses valores em numerosa terminologia da moderna linguagem das ciências da natureza, por exemplo em palavras como “atracção” ou “repulsa”.

O erro da cosmologia antiga não reside na sua orientação ética mas na sua aproximação dualista à natureza. Por causa da maior importância atribuída à especulação sobre a experimentação, a antiga cosmologia cometeu o seu maior erro ao tentar ligar uma natureza fecunda auto-organizada com uma força vital alheia ao mundo natural. A dike de Parménides é, como o élan vital de Bergson, um substituto das propriedades auto-organizantes da natureza, não é uma força interna à natureza, uma força que explique a ordem do mundo. Até nas cosmologias monísticas que procuram juntar eticamente a humanidade e a natureza existe um dualismo latente, um deus ex machina que corrige os desníveis, seja num universo desequilibrado, seja numa sociedade insensata. A verdade tem uma coroa invisível, é uma espécie de verdade de Deus ou do Espírito, já que do mesmo modo que não se confia no desenvolvimento espontâneo da natureza também se espera que o Estado, como herança da “civilização”, funcione.

Estes arcaísmos, com as suas vagas teologias e as suas teleologias rigidamente elaboradas, foram justamente avaliados como armadilhas socialmente reaccionárias. Contaminaram as obras de Aristóteles e de Hegel, como magnetizaram as mentes escolásticas medievais. Mas os erros da antiga filosofia da natureza não residem tanto na tentativa de colher uma ética da natureza mas antes no espírito de dominação que desde o princípio a envenenaram, com a imposição dum “arbítrio” sobrenatural, quase sempre autoritário, que avaliava e corrigia os desequilíbrios ou injustiças que tinham lugar na natureza. Por isto os deuses antigos estavam sempre presentes, por muito racionais que estas primeiras cosmologias pudessem querer ser. Mereciam eles, os deuses, ser exorcismados para que se pudesse construir um contínuo mais significativo e democrático entre natureza e humanidade. Tragicamente, o pensamento do Renascimento tardio não foi mais democrático do que o pensamento anterior; nem Galileu na ciência, nem Descartes na filosofia conseguiram de modo satisfatório esta operação cirúrgica. Eles e os seus herdeiros separaram a natureza da mente, recriando outras divindades, sob a forma de preconceitos científicos e epistemológicos, não menos infectados pela dominação do que a tradição anterior que haviam demolido.

Encontramo-nos hoje ante a possibilidade da natureza – não como dike, justitia, Deus, Espírito ou mesmo élan vital – mostrar eticamente os seus próprios termos. O mutualismo é um bem em si, em virtude da sua função de estímulo à evolução da variedade natural. Não temos necessidade de nenhuma dike nem de nenhum cânone de “objectividade científica” para afirmar a esperança natural e social da vida e do seu papel. Do mesmo modo, a liberdade é um bem em si: a sua reivindicação funda-se naquela que Hans Jonas chamou com finura a “íntima natureza” das formas de vida, a sua “identidade orgânica”, a “aventura da forma”. O esforço visível de auto-identificação que qualquer ser vivo, no decurso da sua continuidade metabólica, para se conservar, põe em prática revela, até nos mais rudimentares organismos, um sentido de identidade e de actividade selectiva que Jonas apropriadamente viu como provas duma “liberdade embrionária”.

Enfim, a crescente complexidade e variedade que, através do curso da evolução, transforma as partículas subatómicas naquelas formas conscientes e auto-reflexivas que chamamos seres humanas, não pode senão levar-nos a reflectir sobre a existência dum telos, entendido este em sentido largo, e sobre uma subjectividade latente na substância que por fim dá lugar à mente e à inteligência. Na reactividade da substância, na sensibilidade dos microrganismos menos desenvolvidos, na formação dos nervos, dos gânglios, da espinal medula, no desenvolvimento estratificado do cérebro, percebe-se uma evolução da mente tão irresistivelmente coerente que a tentação de a definir, ao modo de Manfred Eigen, como “inevitável” é grande. É difícil acreditar que a casualidade pura possa explicar a capacidade que as formas de vida têm para responder neurologicamente aos estímulos, de desenvolver sistemas nervosos altamente organizados, de prever, ainda que de forma confusa, os resultados do seu comportamento e por fim de conceptualizar de forma clara e simbólica esta antecipação. Uma verdadeira história da mente deveria começar com os atributos da substância, talvez logo nos obscuros esforços dos cristais mais simples para se perpetuarem, na evolução do ADN de fontes químicas ignoradas até ao momento em que manifesta a seu modo aquele princípio de replicação já presente no mundo inorgânico, e na diferenciação de moléculas orgânicas vivas ou não vivas como resultado daquelas características intrínsecas de auto-organização que definimos como propriedade da vida.

O estudo da natureza – deixando de lado todos os preconceitos das epistemologias antigas – mostra uma modelação autónoma da evolução, uma “semente”, por assim dizer, implicitamente ética. O mutualismo, a liberdade e a subjectividade não são valores exclusivamente humanos; estão presentes, ao menos de forma embrionária, nos mais amplos processos cósmicos e orgânicos, que não necessitam de ser movidos por nenhuma divindade aristotélica e não precisam de ser revivificados por nenhum espírito hegeliano. Se a ecologia social conseguir perspectivar de forma coerentemente unitiva o mutualismo, a liberdade e a subjectividade como aspectos duma sociedade cooperativa, livre de dominação e orientada pela reflexão e pela razão, conseguirá então remover as taras que envenenaram desde o início a ética naturalista e dar uma voz ética comum à natureza e à humanidade. Não teremos mais necessidade do dualismo cartesiano ou do mais recente dualismo neo-kantiano que deixa muda a natureza e isola a mente do vasto mundo que a rodeia. Desgastar a comunidade, paralisar a espontaneidade, que, no coração mesmo da realidade auto-organizada, se move em direcção a uma crescente complexidade e racionalidade, limitar a liberdade, tudo isto significa negar a “semente” da natureza, negar a nossa hereditariedade nos processos evolutivos, negar a nossa função no mundo da vida. Se não formos bem sucedidos na criação duma sociedade ecológica e na articulação duma ética ecológica, ficará em jogo, não entrando sequer em linha de conta com as péssimas consequências para o ambiente, nada menos do que a nossa legitimidade ética.

O mutualismo, a auto-organização, a liberdade e a subjectividade, sustentados pelos princípios ecológicos de unidade na diversidade, de espontaneidade e de relações não hierárquicas, são assim fins em si mesmos. À parte a responsabilidade ecológica que estes fins delegam na nossa espécie enquanto voz auto-reflexiva da natureza, eles definem-nos literalmente. A natureza não existe para nosso uso, ela limita-se a legitimar a nossa existência ecológica e a nossa unidade. Como a noção de ser, estes princípios de ecologia social não têm necessidade de explicações, apenas de verificações. São elementos duma ontologia ética, não regras dum jogo que possam ser mudadas para adequar exigências pessoais.

Uma sociedade que nega o núcleo essencial desta ontologia levanta o problema da sua realidade mesma como entidade significativa e racional. A “civilização” deixou-nos em herança uma concepção de alteridade como “polarização” e “desafio” e da essência orgânica, visando a identificação pessoal, como “guerra” permanente. Tais concepções arriscam-se a minar por inteiro a legitimidade ecológica da humanidade e a realidade da sociedade como dimensão potencialmente catalisadora do mundo que nos rodeia. Bombardeados por falsas percepções duma natureza em constante oposição à humanidade, redefinimos de tal modo a nossa essência humana que a guerra passou a ser o preço da paz, o controle o preço da consciência, a dominação o preço da liberdade, o antagonismo o preço da reconciliação. Num tal contexto auto-destrutivo, estamos a construir um Valhalla que por certo se tornará uma mina para as labaredas devoradoras de Ragnarok.

Não obstante, dos conceitos de alteridade e de essência da vida, pode tirar-se um sistema filosófico e social completamente distinto. Se tivermos uma ampla visão ecológica da natureza e concebermos um mundo benigno que a vida plasmou no curso da evolução, podemos então formular uma ética da complementaridade que se alimenta da diversidade em lugar duma ética que tutela a essência individual por meio duma alteridade ameaçadora e invasora. Na verdade a essência da vida pode ser vista como expressão de equilíbrio mais do que como mera resistência à entropia e ao fim de qualquer actividade. A própria entropia pode ser vista como uma das características dum mais vasto metabolismo cósmico, de que a vida é só a dimensão anabólica mais visível. Um tal metabolismo geral pode ser visto como resultante da integração, da comunidade e do apoio mútuo, sem que por isso se diminua a identidade individual e a espontaneidade singular.

Destarte duas alternativas estão neste momento frente a frente. Podemos tentar apaziguar o espírito guerreiro de Odin, pacificando-o a ele e à sua corte, abrindo o Valhalla ao vento da reflexão e da ponderação. Tentaremos então remendar os esfarrapados pactos que outrora sustinham precariamente em conjunto o mundo e passar com eles a melhores e mais benévolas situações. Podemos até esperar que Odin se convença a arrumar a lança, a guardar a armadura e a prestar ouvidos às doces vozes que aconselham o diálogo e a compreensão. Em alternativa os nossos esforços podem dar lugar a uma reviravolta radical: arruinar Odin, de cuja senilidade testemunha uma sociedade abortada. Abandonaremos então os mitos contratuais que “harmonizam” um mundo intrinsecamente dividido, esses mitos mantidos de pé pela épica nórdica com o exílio e as cadeias. O nosso desafio será então criar um novo mundo e uma nova sensibilidade, a partir duma base de reflexão pessoal e duma ética de que somos herdeiros enquanto resultado do incessante movimento evolutivo em direcção à consciência. Temos a possibilidade de nos legitimar como expressão acabada da mente no mundo da natureza, como racionalidade que favorece a diversidade natural e integra os processos naturais com sucesso, uma certeza e uma direcção que são porém incompletos na natureza não humana.

A “civilização” tal como a conhecemos hoje é mais muda do aquela natureza em nome da qual ela, a civilização, pretende falar e mais cega do que aquelas forças elementares que pretende controlar. Esta “civilização” vive mergulhada no ódio ao mundo que a rodeia e no ódio por si. As suas cidades estão feridas, esventradas, as terras degradadas, a água e o ar envenenados; a sua mesquinha cobiça é uma acusação diária à sua imoralidade odiosa. Um mundo assim empobrecido é talvez irrecuperável, ao menos no quadro das suas actuais estruturas institucionais e éticas. Se o fogo de Ragnarok purificou o mundo nórdico, o apocalipse nuclear que ameaça engolir o planeta poderá deixá-lo irremediavelmente inútil para a vida, cadáver testemunhando um fracasso cósmico. Este planeta merece um destino melhor do que aquele que parece esperá-lo no futuro – já que a sua história, incluída a humana, se não mais houvesse, foi rica de promessas, de esperanças, de criatividade.

MURRAY BOOKCHIN

[tradução de A. Cândido Franco]

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Documentário- David Bowie and the Story of Ziggy Stardust


Na sua autobiografia, Morrissey reclamou que hoje é fácil desconsiderar o impacto artístico-comportamental de David Bowie. Androginia e declarações bombásticas acerca de homo/bissexualidade são lugares-comuns em partes do hemisfério norte, mas quando o Camaleão começou a quebrar esses tabus no início dos anos 70, sua rebeldia escandalizou a Inglaterra. Imagine que para capa de The Man Who Sold the World, o seu álbum de 1970, o artista pousou com cabelão comprido – até aí nada demais no universo rock – e vestido, deitado num divã, num cenário super-Pré-Rafaelita. No mundo (aparentemente) macho do Deep Purple e Led Zeppelin isso era um ultraje.

Mas ainda não era quase nada comparado ao que Bowie aprontaria para o álbum seguinte, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972). De cabelos curtos e vermelhos e com visual inédito no planeta Terra, o multimídia inventou personagem que o catapultaria ao estrelato e seria o primeiro de uma série de trabalhos e personas que o constituiriam num dos artistas mais influentes do século XX.

O excitante documentário David Bowie & the Story of Ziggy Stardust (2012) radiografa a concepção, execução e os desdobramentos desse feito sociocultural. Muitos reclamam que hoje os artistas são como produtos já em seu estágio final quando chegam ao consumidor, sem tempo pra testar ideias e maturar. Bowie levou 10 anos absorvendo elementos - que passam pelo rock dos anos 50, teatro de vanguarda, mímica, ficção-científica, cenário underground gay e tanto mais – utilizados e ressignificados sob forma de tentativa e erro até explodir como um dos vulcões mais criativos e incendiários dos anos 1970.

O programa da BBC entrevistou músicos da banda Spiders from Mars, inventada para o projeto, e artistas como Elton John, Marc Almond e um dos Kemp do Spandau Ballet para atestarem o impacto do álbum. Incrível como Iggy Pop não apareça no documentário. Afinal, ele influenciou muito na viragem de Bowie.

Aprendemos sobre o penteado, as roupas, as canções, suas aparições na TV e sobre o lado menos bonito da histeria Ziggy Stardust, que iniciou o processo de esquizofrenia cocainada do Camaleão. Para quem se atém à idealização romantizada de que basta ter talento, David Bowie & the Story of Ziggy Stardust traz injeção de realidade ao explicitar o papel preponderante que um empresário endinheirado teve na ascensão de Bowie, especialmente quanto à conquista do cobiçado e difícil mercado norte-americano. Inegável a genialidade de David Bowie, mas sem esse investimento financeiro talvez tivesse permanecido subterrâneo ou não poderia ter dado vazão a tantas ideias.

Tomara que a BBC dedique documentários a outros álbuns do Camaleão, afinal, ele passou os anos 70 preparando o terreno para o punk, para a maioria dos artistas oitentistas, para o Britpop e até pra Lady Gaga, não se enganem. A gente lê um Nordic Noir e lá está uma personagem ouvindo Ziggy Stardust o tempo todo, enfim, Bowie é referência e sempre tendência.

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O "gelo zombie" da Gronelândia está imparável. E a subida do nível do mar pode ser mais do dobro do estimado

As notícias sobre os efeitos das alterações climáticas são cada vez mais pessimistas e esta segunda-feira foi divulgado um estudo que traça um retrato ainda mais apocalítico. O derretimento de "gelo zombie" dos icebergues da Gronelândia vai provocar uma subida de pelo menos 27 centímetros do nível da água do mar, mesmo que os restantes fatores da atual crise climática, como o uso de combustíveis fósseis, cessem de imediato

O relatório salienta que, apesar de inevitável, este fenómeno poderá ainda ser exacerbado pelas continuadas emissões carbónicas, o derretimento de outras camadas de gelo e o aquecimento oceânico. As consequências serão globais, e particularmente nefastas para os biliões de habitantes em zonas e países costeiros - incluindo Portugal.

Os resultados do estudo ultrapassam as últimas previsões do Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas da ONU, que no ano passado estimava uma subida do nível das águas entre os 6 e os 13 centímetros até ao ano 2100. Os 27 centímetros agora calculados, mais do que o dobro do pior cenário, correspondem a 3,3% de todo o volume de gelo da Gronelândia - ou seja, a 120 triliões de toneladas de gelo.

O "gelo zombie" - e a Gronelândia que "morre à fome"

Mas, afinal, o que é gelo "zombie"? Tal como o nome faz adivinhar, trata-se de "gelo morto" que continua anexado a camadas de gelo mais espessas, apesar de já não se alimentar delas. Estes glaciares, por sua vez, recebem menos neve para se reabastecer - e as alterações climáticas ocupam-se do resto, condenando o gelo "zombie" ao desaparecimento.

"É gelo morto. Vai simplesmente derreter e desaparecer da camada de gelo", explica William Colgan, glaciologista e coautor do estudo, citado pela agência noticiosa Associated Press e The Guardian. "Este gelo já foi consignado ao oceano, independentemente do cenário climático que adotemos agora."

Com os grandes glaciares a receber cada vez menos gelo e o "gelo zombie" a desaparecer a um ritmo cada vez mais acelerado, o saldo final é claramente desequilibrado. "Penso que morrer à fome seria uma boa frase" para a situação dos níveis de gelo na Gronelândia, acrescenta Colgan.

O glaciologista Richard Alley, apesar de não ter participado no estudo, explica o fenómeno com uma analogia simples: a perda de massa de gelo, quando exposta a temperaturas crescentemente elevadas, é como "um cubo de gelo colocado numa chávena quente de chá".

Os investigadores mostram-se incertos quanto ao período de tempo necessário ao derretimento total do "gelo zombie", mas indicam o final do século como a hipótese mais provável - ou, num cenário mais otimista, até 2150. Mas alertam: não podemos depositar todas as esperanças em cenários otimistas. Os derretimentos glaciares ocorridos em 2012 e 2019 pareceram invulgares de tão dramáticos, mas até os anos que interpretamos como "normais" seriam considerados "extremos" há apenas 50 anos.

"É assim que as alterações climáticas funcionam", conclui William Colgan. "O que ontem era a exceção, hoje torna-se a norma."

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Qatar, o Mundial da Vergonha

No próximo dia 21 de Novembro, às quatro da tarde em ponto, hora local, um esférico denominado Al Rihla ("A Jornada"), fabricado pela marca Adidas, com uma cobertura de poliuretano texturizado e 20 gomos, será colocado no centro de um grande rectângulo de relva. Em seu redor, um estádio com 60 mil lugares sentados, projectado pela firma alemã AS+P, querendo "AS" dizer Albert Speer, o filho do arquitecto de Hitler. A empresa holandesa que forneceu os relvados dos últimos três Mundiais de Futebol recusou-se a colaborar neste torneio após ter sabido que só na construção dos estádios já pereceram mais de 6750 trabalhadores, todos oriundos da Índia, do Bangladesh, do Nepal e do Sri Lanka. Nenhum cidadão do Qatar, país anfitrião, morreu na edificação das infraestruturas que irão receber o Mundial da Vergonha.

Para os jornalistas e turistas que lá forem, para os que ficarem colados aos écrans a ver as fintas e os passes dos craques, talvez fosse útil saber um pouco mais sobre o que é o Qatar, pelo que se recomenda a leitura de um livro-reportagem acabado de sair, assinado por John McManus, um antropólogo social e escritor, que tem passado a última década no Médio Oriente e na Turquia (vive em Ancara), tendo já publicado, aliás, um outro livro sobre a paixão futeboleira turca e suas fúrias. Este de que agora falo tem o título pouco inspirado de Inside Qatar - Hidden Stories From One of the Richest Nations on Earth (Icon Books, 2022) e, ao contrário do que se possa julgar, não é um relato preconceituoso e impiedoso dos muitos males que afligem o emirado, antes uma digressão pelas fundas incoerências de um país recente, que só viu a independência em 1971 e, desde então, anda em busca de um caminho entre os biliões do petróleo, grandiosas ambições de modernidade e pesados arcaísmos islâmicos.

Um relatório da ONU, já de 2020, descreve o Qatar como "quase uma sociedade de castas baseada na nacionalidade", o que em parte, mas só em parte, se compreende, pois os cataris representam uma ínfima minoria no seu próprio país, sendo cerca de 313 mil cidadãos, numa população total de cerca de três milhões, essencialmente composta por imigrantes vindos da Índia (24% da população), do Nepal (16%), das Filipinas (11%), do Bangladesh (5%), do Paquistão (4%) e do Sri Lanka (2%). Com tantos trabalhadores migrantes, a esmagadora maioria dos quais na construção civil (44% da força laboral do país trabalha nas obras), não admira que 72% da população seja masculina. Mulheres estrangeiras, no Qatar, só as empregadas domésticas vindas das Filipinas e de África, especialmente do Quénia.

Sendo óbvio que os opulentos privilégios de que gozam os cataris não poderiam estender-se à restante população (por ex., os nativos não pagam impostos e dois terços da população não trabalha, nem tem sequer ocupação), o que espanta e confrange é a brutal disparidade entre nacionais e não-nacionais, mesmo os vindos do Ocidente para empregos sofisticados e bem pagos. Atroz ironia: na Europa e na América, onde hoje tanto se combatem as injustiças do racismo, não houve ainda um movimento em larga escala para boicotar um Mundial de Futebol realizado num dos países mais racistas do mundo, onde, segundo as estatísticas oficiais, 43% dos cataris casam com membros da sua própria família, geralmente primos em primeiro grau, o que tem provocado sérios problemas de consanguinidade, que o director do Centro de Genética Médica de Doha reconhece, mas desvaloriza em nome da preservação da "pureza de sangue do país". Goebbels não diria melhor.

À semelhança da independência, também a riqueza é recente - mas imensa. Sem aptidão agrícola ou vocação industrial, a economia do Qatar baseava-se historicamente na apanha de pérolas em alto-mar, mas acabou por se afundar com o crash bolsista de 1929 e com a descoberta, pelos japoneses, de métodos de cultivo artificial de pérolas (facto que bem poderia servir de lição para a actualidade e para os riscos da monocultura do petróleo e do gás). Em meados dos anos 1940, a população reduzira-se a umas 16 mil almas e o xeque Abdullah Al Thani foi ao ponto de ter de fazer um empréstimo hipotecário sobre o seu palácio. Entretanto, em 1939, geólogos da Anglo-Persian Oil Company descobriram frondosas jazidas de petróleo e, dez anos depois, começaram as exportações do ouro negro. É ele a causa de o Qatar ser um dos países mais ricos do mundo: de 2002 a 2014, foi o mais rico; desde então, está em terceiro lugar, atrás do Luxemburgo e de Singapura. Dinheiro a jorros, mas que beneficia quase em exclusivo 11% da população residente, os cataris de raça. Dinheiro que tem permitido compras multimilionárias pelo mundo fora: além do Harrod"s, estima-se que o Estado do Qatar tenha mais propriedades em Londres do que a rainha Isabel II, para não falar dos investimentos em marcas de luxo como a Valentino ou a Tiffany, entre tantas outras.

© Vìtor Higgs / DN

Dominado desde o século XIX pela Dinastia Al Thani, e governado desde 2013 pelo emir Tamim bin Hamad Al Thani, um autocrata que, segundo se diz, é ainda mais conservador do que o seu pai, o Qatar é mais liberal do que outras nações de Golfo, com destaque para a Arábia Saudita (por exemplo, as cataris podem conduzir automóveis, ainda que tenham várias limitações para obter a carta; a pena de morte não é aplicada desde 2003; as mulheres são encorajadas a estudar e 2/3 dos licenciados são do sexo feminino). O país gosta, aliás, de transmitir uma imagem de modernidade e abertura ao mundo, com a Qatar Airways e a Al-Jazeera (bem menos independente do que parece), e, importa dizê-lo, muitas das práticas que mantém são elementares medidas de autodefesa de uma população ultraminoritária na sua própria terra, a qual tem, ademais, uma relação nada fácil com os seus poderosos vizinhos. Em 2017, o Qatar foi alvo de um grave bloqueio por parte de diversos países muçulmanos (Arábia Saudita, Iémen, Bahrain, Egipto, Emirados Árabes Unidos, Maldivas, Líbia) e ficou sem acesso a alimentos e a matérias-primas, alegadamente por causa das suas relações incestuosas com a Irmandade Islâmica e com o Daesh.

Até às reformas constitucionais dos anos 90, que deram ao emir o poder de designar o seu filho como sucessor, a chefia do Estado não obedecia ao princípio da primogenitura, o que dava azo a um sem-fim de conflitos e de intrigas palacianas e o país é bem menos estável do que parece, tendo assistido, nos últimos 70 anos, a duas abdicações, em 1949 e 1960, e a dois golpes de Estado, em 1972 e 1995, o último dos quais levou um filho a depor o próprio pai. A ambiguidade estratégica tem sido chave de sobrevivência: o Qatar tanto alberga a maior base dos EUA no Golfo Pérsico, Al-Udeid, com mais de 11 mil soldados estacionados, como mantém relações cordiais com o Irão e namora e favorece o extremismo islâmico (a principal mesquita de Doha é, de resto, dedicada ao fundador do ultraconservador Movimento Wahhabista).

Além da opressão sobre o povo e da ausência de democracia e de respeito pelos Direitos Humanos, traços comuns às monarquias do Golfo, o principal e mais vil pecado do Qatar, a sua singularidade repulsiva, é o modo como trata os trabalhadores estrangeiros. É certo que, também nesse plano, não se destaca muito das barbáries praticadas naquelas paragens, bastando lembrar que, no Líbano, em 2018, a etíope Lensa Lelisa se atirou da janela da casa dos patrões (por sinal, donos de uma das marcas mais fashion do país, a Eleanore Couture) por não suportar mais os espancamentos diários com cabos eléctricos, entre outras torturas; ou que, no Kuwait, o cadáver desmembrado da filipina Jonna Demafelis, de 29 anos, foi encontrado na arca congeladora do casal que servia; ou o caso de Tuti Tursilawatti, uma empregada doméstica indonésia de 34 anos, executada na Arábia Saudita por ter morto o patrão quando este a tentou violar, ao fim de um ano de sevícias sexuais.

E não, não são casos isolados, mas sim a ponta de um icebergue miserável. Das cerca de 176 mil empregadas domésticas que trabalham no Qatar, 83% tiveram os seus passaportes confiscados mal chegaram ao país, segundo um relatório de 2020 da Amnistia Internacional. E só conseguem entrar se tiverem o patrocínio de um empregador, segundo o sistema da kafala, ficando inteiramente nas mãos dos seus senhores e amos, sem dinheiro para obter o visto e comprar passagem de regresso a casa, sem possibilidade de mudar de emprego ou de patrão, um inferno na terra. Na esmagadora maioria dos casos, os migrantes, logo à chegada, são confrontados com um contrato novo, com salários mais baixos e piores condições do que aquele que haviam assinado antes de partirem. Sindicatos não existem e os contratos laborais têm todos prazos curtos de um, dois anos, mesmo para quem trabalhe para a mesma empresa ou patrão há dez, 20 anos, ou mais.

A kafala é o cancro maior do Qatar: a existência de um patrono, que, segundo a lei islâmica, constituía uma forma de os mais fortes protegerem os mais fracos (por ex., quando estes assinavam contratos ou iam a tribunal), converteu-se, muito por culpa do colonizador britânico, num sistema de paternalismo esclavagista, com os empregadores a apoderarem-se dos vistos de entrada, dos passaportes e das autorizações de trabalho e residência dos pobres migrantes. Não admira, assim, que, para milhares deles, a jornada de trabalho comece às 4.30 da manhã, com interrupção à hora do calor (por vezes, nem isso), e só termine pelas sete ou oito da noite.

Um inquérito de 2018 concluiu que os operários das obras do Mundial trabalhavam dez horas por dia, seis dias por semana, em condições deploráveis, sendo frequentes jornadas de trabalho de 12 a 14 horas e até casos de escravos que trabalharam 148 dias consecutivos sem uma única folga. Com a aproximação do torneio e a aceleração da obra, a situação agravou-se. Contudo, e dadas as atenções internacionais e as inspecções mais regulares, os trabalhadores do Mundial são até dos mais protegidos - simplesmente, correspondem a 4% da força laboral do país; os restantes 96% continuam à mercê de um sistema iníquo em que até os relatórios oficiais do país reconhecem que milhares de desgraçados são obrigados a trabalhar em condições de "stress de calor", a temperaturas acima dos 40ºC, com humidade horrível, com um em cada três trabalhadores a sofrer de hipertermia.

Um artigo publicado em 2019 na revista Cardiology estabeleceu uma correlação inequívoca entre o calor extremo e a morte de 500 operários nepaleses. O problema agrava-se pelo facto de o Qatar não realizar autópsias, sendo todas as mortes atribuídas a "causas naturais" ou "doenças cardiovasculares", o que, tendo em conta a idade jovem da maioria dos migrantes, é coisa mirabolante. Para efeitos estatísticos, aliás, o Registo Nacional de Traumas só contabiliza as mortes que têm lugar após a chegada ao hospital, ou seja, deixa de fora o imenso universo dos acidentes letais ocorridos nos locais de trabalho. Apesar de tudo isto, é consensual entre as ONG e os observadores externos que os abusos mais graves e os piores maus-tratos não são perpetrados pelos cataris, mas pelos migrantes sobre outros migrantes, até seus compatriotas, sendo frequente a descoberta de horríveis redes de exploração e de tráfico humano nos países de origem da Ásia e de África.

Mesmo ao fim de décadas a viver e a trabalhar no país, é praticamente impossível obter a cidadania; é necessário falar árabe, residir no Qatar há 25 anos e a lei determina que, por ano, só podem ser concedidas 50 naturalizações. De igual modo, e ao contrário do que se passa no Dubai, por exemplo, é quase impossível a um estrangeiro comprar propriedades ou enviar os filhos para escolas de qualidade, excepto ocidentais privilegiados, sendo também estranho que num país com tantos asiáticos não exista um só templo budista ou hindu (há uma minúscula zona cristã que os cataris não podem frequentar).

Até por isso, o que se passa com o futebol é particularmente abjecto. O Qatar não tem tradições na modalidade e o seu primeiro clube só foi criado em 1950; desde então, foram fundados outros - o Al-Rayyam, o Al-Arabi, o Al-Saad - que servem para arredondar as contas de jogadores ou técnicos em fim de carreira, como Pep Guardiola, Gabriel Batistuta ou Xavi Hernández, mas que, apesar dos investimentos milionários, não levam os cataris aos estádios. Mesmo com bilhetes a preços caricatos - cerca de 3 euros nas bancadas, 14 euros num lugar VIP - nunca mais de mil pessoas assistem a um jogo ao vivo, preferindo fazê-lo no conforto de casa, algo que, obviamente, será uma tormenta no pós-Mundial: que destino irão ter tantos estádios, tão sumptuosos e volumosos?

De resto, por causa do clima e não só, são poucos os cataris que praticam futebol e diz-se que este é, isso sim, um brinquedo caro do xeque Jassim bin Hamad Al Thani, filho do antigo emir, que governou o país de 1995 a 2013. O xeque Jassim, ao que parece, tem até um gigantesco estádio de futebol em sua casa e foi um dos principais promotores do actual Mundial, no qual o Qatar investiu a única coisa que tem: dinheiro. Através da Qatar Airways, foram patrocinados grandes clubes europeus, como o AC Roma ou o Bayern de Munique, ao mesmo tempo que se construía um hospital de ponta de Medicina Desportiva, a que já acorreram diversas estrelas, e se lançava um canal internacional de desporto, o beIN Sports, e a multimilionária Academia Aspire, que recruta talentos da bola ao abrigo de um programa designado Football Dreams, orçado em muitos milhões de dólares, que já escrutinou mais de 3,5 milhões de jovens pelo mundo fora, dos quais anualmente são selecionados uns 20, no máximo, a quem são oferecidas condições estratosféricas e o maior prémio de todos - a cidadania do Qatar.

Se o país é xenófobo e racista, avesso a naturalizar estrangeiros, mesmo os que nele trabalham há décadas, no domínio desportivo passa-se o inverso, com concessões escandalosas e rapidíssimas de nacionalidade: em 1999, a equipa de lançamento de peso do Qatar foi desqualificada dos Jogos Árabes por se ter descoberto que nela participavam quatro atletas búlgaros; em 2003, o queniano Stephen Cherono, supostamente a troco de avultada maquia e de uma pensão vitalícia, tornou-se nacional catari com o nome Saif Saaeed Shaheen; em 2004, para fúria da FIFA, o Qatar tentou naturalizar, numa semana, três futebolistas brasileiros, Ailton, Dédé e Leandro.

Graças aos biliões injectados na Academia Aspire, o Qatar conseguiu conquistar a Taça Asiática de 2019, um feito extraordinário num país que, dois anos antes, estava na 102ª posição no ranking mundial, atrás da Serra Leoa e das Ilhas Faroé. Resta acrescentar que se tratou de um triunfo forjado na base da fraude, mesmo que autorizada pelos complacentes critérios da FIFA: dos 23 jogadores da selecção, 17 eram naturalizados, muitas vezes às pressas e, pior ainda, segundo regras e procedimentos jamais aplicáveis aos que vivem e trabalham no país há décadas. Argumentar que em todas as selecções desportivas do mundo há casos como este só obscurece o essencial: o abominável racismo selectivo do país anfitrião do próximo Mundial. Racismo que se estende ao desporto: cerca de metade da população do país tem origem no sul da Ásia, pelo que o críquete é, de longe, a modalidade mais popular e praticada. Ora, enquanto o fundo soberano do Qatar já gastou, desde que comprou o Paris St. Germain, em 2011, muitos biliões com o futebol, incluindo a compra-recorde do brasileiro Neymar por 262 milhões de dólares, a Associação de Críquete do Qatar recebe anualmente um subsídio que não chega aos 200 mil dólares.

Ou seja, o futebol é usado como instrumento de dominação da minoria catari sobre a legião de migrantes que sofrem e mourejam no deserto, sob calores escaldantes. Os que se erguem, e bem, contra o racismo da Europa e da América deveriam também, no mínimo, olhar para outras paragens do mundo, mil vezes piores e mais bárbaras. E saber, por exemplo, que 15% das hospitalizações de migrantes no Qatar derivam de tentativas de suicídio; e que, num país com serviços médicos gratuitos e de alto nível, 90% dos migrantes nunca chegam a receber o seu cartão de saúde das mãos dos patrões.

Depois, houve a tremenda corrupção que deu a vitória ao Qatar na corrida à organização do torneio, não deixando de ser irónico que, num ano em que o mundo sofreu uma vaga de calor sem precedentes (e a Europa a maior seca de 500 anos), causada pelo aquecimento global e pelos combustíveis fósseis, nos preparemos para assistir alegremente ao Mundial do Petróleo - e do Gás. O Qatar, convém lembrá-lo, tem a maior reserva de gás natural do mundo, situada no mar setentrional do país, estimada em 900 triliões de metros cúbicos (e é também um dos maiores emissores de gases com efeito de estufa do planeta, com um cadastro ambiental miserável). Quando agora se fala da dependência europeia do gás e do petróleo russos (a propósito, quando conheceremos o plano de contingência e de poupança energética do governo português? E porque não existe uma campanha nacional de poupança da água?), deve recordar-se que, em 2021, um quarto de todo o gás importado pela Grã-Bretanha veio do Qatar. Se a isso juntarmos as vultuosíssimas compras de armamento à América e ao Reino Unido, os biliões ganhos pelos gabinetes que projectaram e pelas empresas que construíram os novos e faraónicos estádios, orçados em 10 mil milhões de dólares (!), não custa concluir que era óbvio que o Qatar iria ser o anfitrião deste Mundial vergonhoso, que faz lembrar o da Argentina de 1978, que branqueou e legitimou a cruel ditadura de Videla. Pequeno grande detalhe: desde há décadas, e para polir a imagem, o Qatar gasta biliões nas maiores empresas de lóbi de Londres e Nova Iorque - Hill+Knowlton Strategies, Portland Communications, Blue Rubicon, Grey, Brown Lloyd James - e contratou a peso de ouro diversos "embaixadores" da sua candidatura - Samuel Eto"o, Xavi Hernándes, David Beckham.

Tudo isto é bem o espelho daquilo em que o futebol se tornou nas últimas décadas: uma actividade viciada, viciosa e viciante que de desportiva pouco tem. Todos os anos, com a cumplicidade dos paizinhos, sedentos de terem um Ronaldo em casa que os converta em milionários, milhares de jovens são atraídos por uma carreira na bola, seduzidos por promessas de clubes que os usam como escravos descartáveis. São ínfimas, quase nulas, as probabilidades de um jovem praticante nas "academias" vir a jogar nos escalões seniores dos clubes grandes: menos de 0,012%. Repete-se: menos de 0,012%. À conta dessa miragem, milhares de moços, talvez milhões, perdem dez anos de vida, largam os estudos, comprometem o futuro, o deles e o dos seus países, que na quimera da esfera desbaratam gerações de miúdos, com efeitos não despiciendos na produtividade e nas qualificações da mão-de-obra de uma nação inteira. Se a isso juntarmos outros males - corrupção generalizada de dirigentes, árbitros e jogadores; promiscuidade com políticos, autarcas, interesses imobiliários, negócios escuros; promoção de uma cultura boçal e alarve, machista, sexista e racista, assente na violência física e verbal, com sucessão de "casos" e "escândalos", muitos dos quais do foro criminal, sobretudo os desencadeados pelas horripilantes "claques"; transferências com valores pornográficos; ocupação tirânica do espaço público, com vários canais e jornais e horas infindas de "comentários", em detrimento de outras actividades intelectual e espiritualmente mais enriquecedoras - percebemos que aquilo que hoje se passa no mundo do futebol poderá ser muita coisa, mas desporto não é certamente. No próximo mês de Novembro, enganar-se-á quem julgar estar a assistir a um jogo de futebol na TV: no rectângulo, disputa-se a bola, mas o que aí verdadeiramente se joga são negócios fabulosos de petróleo e armamento, conjuras geopolíticas, fundamentalismos religiosos, a opressão de mulheres e de migrantes, o absoluto desprezo pelos direitos fundamentais e pela dignidade humana. É este o belo espectáculo que estamos prestes a aplaudir.

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