quarta-feira, 29 de março de 2023

Miguel Hernández: O último recanto


O último e o primeiro:
recanto para o sol maior,
sepultura desta vida
onde não cabem os teus olhos.

Era ali que me queria estender
para me desapaixonar.

Quero-o pela oliveira,
persigo-o pela rua,
some-se pelos recantos
onde se somem as árvores.

Afunda-se e torna-se mais funda
a intensidade do meu sangue.

As oliveiras moribundas
florescem por todo o ar
e os rapazes permanecem
próximos e agonizantes.

Carne do meu movimento,
ossos de ritmos mortais:
morro por respirar
sobre os vossos gestos.

Coração que, entre duas pedras
ansiosas por esmagar-te,
te afogas de tanto querer
como um mar entre dois mares.
De tanto querer afogo-me,
e já não é possível afogar-te.

Um beijo que vem girando
desde o princípio do mundo
a minha boca pelos teus lábios.
Beijo que se impele para o futuro,
Boca como um duplo astro
que entre os astros pulsa
por tantos beijos interrompidos
por tantas bocas fechadas
sem um beijo solitário.

Que fiz eu para que pusessem
à minha vida tanto cárcere?

O teu cabelo onde o negro
sofreu as idades
do negro mais seguro
e mais emocionante:
o teu cabelo negro de séculos
que percorro até regressar
ao primeiro negro
dos teus olhos e dos teus ancestrais,
ao recanto de cabelo denso
onde te acendeste como um relâmpago.

Como um recanto solitário
ali o homem brota e arde.

O recanto do teu ventre,
o beco da tua carne:
o beco sem saída
onde uma tarde agonizei.

A pólvora e o amor
marcham sobre as cidades
deslumbrando, remexendo
a povoação do sangue.

A laranjeira tem o sabor da vida
e a oliveira o do tempo.
E apanhada no seu clamor
debate-se a minha paixão.

O primeiro e o último:
recanto onde algum cadáver
sente o arrulhar do mundo
dos amados canais.

Sesta que encheu de treva
o sol nas humidades.

Era ali que me queria estender
para me desapaixonar.

Depois do amor, a terra.
Depois da terra, ninguém.

Biografia: Wiki

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