1 - A criança não se contenta com imaginar teoricamente. Acha isso muito pouco. Do imaginar ao realizar, quase não deixa espaço. O dito e feito, o imaginado e realizado, assumem, nela, o efeito de uma irresistível pressão. Quer ver logo tudo concretizado. Quer seja ela própria, ou em colaboração com outras crianças, a executora dos planos sonhadores. Se imaginou aspectos da vida selvagem - e a televisão hoje lhe dá abundantes sugestões -, logo os quer viver com outras crianças. E se, acaso, fantasia alguma máquina, alguma casa, algum artefacto, logo reclama martelo, madeira, pregos, tesouras, facas, argila, areia, e ó mãos para que vos quero! Como disse Stanley Hall, padre mestre nas coisas da psicologia infantil, nunca a mão esteve mais perto do cérebro do que nessas idades.
O manualizar, o fazer concretamente, o transitar da imaginação à prática é uma das mais patentes dimensões espirituais da criança.
2 - A criança é uma forma abreviada da evolução da humanidade. O homem, antes de ser homo sapiens, foi homo faber, homo manualis. Antes de teorizar, comprovou-se em fazer (1). Assim o homem nos seus primórdios, e assim também a criança nos dias de agora. O sábio dizia: dêem-me um ponto de apoio, e eu levantarei o mundo. A criança é como dissesse: dêem-me possibilidades e oportunidades de eu fazer, pelas minhas próprias mãos, com ferramentas mais ou menos improvisadas, este mundo e o outro, e eu serei feliz, não saberei o que é um momento de tédio, não darei pela passagem do tempo. A inteligência da criança não se processa no mundo do abstracto, mas no mundo do concreto. Para vir a dar, com eficiência, o salto ao mundo, puramente intelectivo, precisa do trampolim dos trabalhos manuais.
(1) - Saber é fazer, no que respeita a trabalhos manuais. E estes não se fazem por correspondência. E preciso sujar as mãos, em flagrante exercício. Já Herculano dava prioridade ao ensino técnico sobre o meramente literário. E que o primeiro era o do aprender fazendo, ao passo que o segundo era o dos flatus vocis, o do palavreado, constituído por cheques sem cobertura no banco da experiência.
Cruz Malpique - Em louvor dos Trabalhos Manuais. Labor, Revista do Ensino Liceal, N.º 301, Aveiro, Abril de 1972.
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