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Há anos que Paulo Magalhães, jurista e investigador na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, anda a desenvolver a única forma que acredita que pode fazer frente a um problema tão global como o das alterações climáticas: tal como o seu prédio não funcionaria sem condomínio, sem um governo comum a todo o sistema terrestre a economia e a natureza vão sempre andar desencontradas. Hoje a ideia faz caminho na Casa Comum da Humanidade, fundada em 2016 com o objectivo, a longo prazo, de criar condições para que haja um órgão de governo ambiental com sede nas Nações Unidas.
Paulo Magalhães preside a este organismo internacional com sede no Porto que reúne, em permanência, cerca de 20 investigadores das ciências da Terra. O também membro do conselho geral da Zero é um dos oradores do evento Cidade +, que decorre este fim-de-semana nos jardins do Palácio de Cristal, no Porto (7 de Julho de 2018).
Na origem da Casa Comum da Humanidade está a ideia de que o planeta tem que ter um condomínio, que cuide do comum. Como é que isto se aplica ao sistema terrestre?
Nos seus 4,5 mil milhões de anos, a Terra já teve estados do sistema terrestre muito diferentes – com composições da atmosfera, acumulações de energia e termodinâmicas diferentes –, mas só nos últimos 11,5 mil anos é que se criou esta estabilidade climática que permite a vida. Ora, este sistema terrestre é também fruto da própria evolução da vida, porque há determinados gases que só depois de serem transformados quimicamente por seres vivos é que se produzem. Se destruímos a vida – as florestas, os ecossistemas – vamos criar inevitavelmente atmosferas diferentes.
O que propomos é que se reconheça este estado favorável do sistema terrestre, este trabalho da natureza que é intangível e que nenhum conceito jurídico actualmente existente consegue representar.
A moldura jurídica actual não é suficiente?
As ciências jurídicas ficaram presas num conceito que parou no tempo, que é a soberania ao território. Eu posso dizer “tu não entras nas minhas águas” ou “até aqui não podes pescar”, mas não posso dizer que não adiro às alterações climáticas nem que a composição bioquímica da água do meu oceano é diferente da do teu.
A nossa casa não é o planeta em si, não são os 510 milhões de quilómetros quadrados, mas as condições favoráveis à vida que aconteceram no holoceno nos últimos 11,5 mil anos. A ciência já definiu os limites dessa estrutura bioquímica [investigadores do Stockholm Resilience Centre definiram nove limites para a concentração de CO2 e de aerossóis na atmosfera, fluxos de nitrogénio e fósforo na biosfera e oceanos, perdas de azoto estratosférico e de biodiversidade, poluição química, acidificação dos oceanos e ciclo hídrico]. Nada disto se mede em hectares.
E nesta questão o direito não precisa de fazer nada que já não tenha feito antes. Para o trabalho intelectual ser reconhecido teve que se criar um objecto jurídico novo, a ideia. Separar a posse do livro da ideia. Agora, tal como trabalho intangível intelectual, o trabalho da natureza tem que ser reconhecido.
Isso é também uma questão económica.
Sim. Toda a gente sabe que a floresta vale muito, mas na economia só vale o valor da madeira ou do papel. Um ecossistema tem o valor da infra-estrutura mais o valor dos serviços que presta. A economia actual só olha para o valor da infra-estrutura. O que mais valor tem para as próximas gerações vale zero para a economia.
Basta dar o exemplo da Noruega: eles têm a maior frota de carros eléctricos do mundo, mas são dos maiores exportadores de petróleo. A regra do jogo é esta, os países têm obrigações com o PIB e se não a seguirmos nós é que somos os otários.
Por isso ou fazemos este upgrade do sistema económico e jurídico tendo em conta a informação que temos da ciência ou não vamos a lado nenhum – como os últimos 30 anos de negociações para mitigação das emissões nos mostraram.
Há uma empresa suíça, por exemplo, que tem tecnologia para absorver CO2 através de turbinas. Cada hélice retira uma tonelada de CO2 por dia. E o custo de cada tonelada é 100 dólares. Com isto uma empresa pode anular as suas emissões e criar produtos neutros em carbono. Mas o sistema como hoje existe não compensa o investimento nestas turbinas. Este trabalho é fundamental porque suporta a vida, mas vale zero na economia.
A proposta é que o governo deste condomínio seja feito com sede na ONU. Como se faz uma governação global que não passe por cima dos Estados?
Há um desfasamento total entre o funcionamento do sistema terrestre e os fluxos da economia. Para isto ser harmonizado o direito tem que intervir no sentido organizador, não sancionatório. Precisamos de algo que permita esta sobreposição de soberania e de património comum que existe dentro e fora dos espaços soberanos. Isto é o condomínio.
Claro que também tenho conflitos no meu condomínio, mas imaginem que ele não existia. Estaria tudo a cair e tudo à pancada. É essa a situação na natureza. É preciso um conceito novo, que permita novas soluções.
Se reconhecermos que o sistema terrestre existe, tudo o que cada um faz – positivo ou negativo – tem que ser contabilizado para o manter dentro dos limites de segurança.
Seguindo um princípio de poluidor-pagador?
Poluidor-pagador e prestador-recebedor, à escala global.
Na prática, tem que haver um administrador do condomínio que faz a avaliação e gestão permanente de cada um dos limites do sistema – o que já gastamos este ano, o que podemos gastar mais, onde é urgente compensar – e que define o seu valor.
Esta entidade vai ter em conta os resultados de cada país e estabelecer metas todos os anos. E se se quer alterar o comportamento de um grupo tem que haver compensações.
Isto pode fazer com que, por exemplo, o Brasil e o Peru não tenham que gerir praticamente sozinhos uma floresta que presta bens comuns?
Sim, a infra-estrutura da Amazónia é deles, mas os serviços que ela presta são comuns. Tem que existir um sistema de compensação – e não de mercado –, em que todos têm acesso ao bem, independentemente de conseguirem pagar, mas, porque o bem é escasso, tem que representar uma retribuição a quem o mantém.
Sem estas condições ninguém vai mudar a sua atitude. Se eu perceber que os outros têm as florestas e vão receber porque todos dependemos delas, vou olhar para os meus recursos e ver o que posso fazer para beneficiar o comum: onde posso ser mais eficiente, reabilitar as minhas reservas naturais, por exemplo.
Neste contexto, Portugal estaria a receber ou pagar?
A pegada [ecológica portuguesa] não é a melhor, mas também não é a pior. O país tem uma área relativamente pequena, teria que investir muito em eficiência energética e na redução das emissões de carbono. Mas tem uma área de oceanos bastante grande, que ia contar como um amortecedor da nossa pegada. Mas é preciso fazer cálculos. Isso é o que está por definir: o peso que, por exemplo, a área do oceano tem neste cálculo.
Então já estão definidos os limites, mas falta uma métrica e uma forma de valoração daquilo que a natureza nos dá.
Sim, aí há trabalho a fazer. A valoração há-de surgir de uma convenção internacional. A grande questão é que não pode valer zero, tem que valer o suficiente para mudar a economia. Pelo menos os verdadeiros custos de produção – os custos das externalidades negativas – têm que ser incorporados na economia.
Numa altura em que os Estados Unidos abandonaram o Acordo de Paris e, como noutros momentos, há uma retórica proteccionista, como se faz para vingar esta ideia?
É difícil. Mas o estado actual é também resultado do insucesso das políticas anteriores.
[O acordo de] Paris é muito importante e para se chegar a uma gestão global é preciso dar estes pequenos passos. Mas tem que se perceber que se tem que mudar a regra do jogo. Sem isso, ainda que algo mitigados, temos sempre os mesmos resultados.
A pressão dos factos é que vai ditar a possibilidade de mudar. Os processos humanos de mudança demoram sempre 50, 100 anos. Este processo tem 30 anos sem resultados dignos de serem mencionados como um sucesso.
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