quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Yuval Noah Harari - Reflexões sobre a crise sanitária, covid-19 e pandemia


Yuval Noah Harari é dos historiadores contemporâneos mais conceituados e mais lidos. Nascido em Israel, é lá professor, na Universidade Hebraica de Jerusalém. No entanto, e para além do seu currículo académico, a sua reputação começou a desenhar-se desde os inícios da década de 2010, quando escreveu “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade” (2011). A esse, seguiu-se “Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã” (2015) e “21 Lições para o Século XXI” (2018). É um estudo acessível a qualquer leitor, abordando temas de capital importância, como a felicidade, a inteligência, a consciência, o livre arbítrio, atravessando desde a fase de surgimento do homo sapiens (homem sábio) – que classifica como a revolução cognitiva – até à atualidade e ao futuro. O desenvolvimento da linguagem, das sociedades e da ciência encaminham o ser humano para um progresso desenfreado. Contudo, são várias as perguntas e os desafios deixados em aberto pelo historiador na sua bibliografia, especialmente com a ascensão da tecnologia, que, pelo menos, equaciona o cenário de ultrapassar o próprio homo sapiens.

O percurso de Harari

Yuval Noah Harari nasceu a 24 de fevereiro de 1976, em Kiryat Ata, em Haifa, Israel. Cresceu numa família laica, judaica, mas não-praticante, com origens libanesas e da própria Europa do Leste. A sua especialização académica foi feita na Universidade Hebraica de Jerusalém, entre 1993 e 1998, em História Medieval e História Militar, completando o seu doutoramento em 2002, em Oxford, e fazendo estudos pós-doutorais até 2005. Harari casou-se no Canadá, entretanto, com o seu agente pessoal, Itzik Yahav, que conheceu no ano em que fez o doutoramento. O casal vive num moshav, que não é mais do que uma pequena cooperativa agrícola organizada em pequenos terrenos individuais. A sua fama bibliográfica levou-o já a Davos, na Suíça, onde discursou por duas ocasiões no Fórum Económico Mundial, para lá de outros galardões e de recordes de vendas.

Em Oxford, tornou-se um profundo adepto da meditação Vipassana, um ramo do Budismo que sentiu as influências do Ocidente, após sua divulgação. É dele que partem as origem do agora conhecido mindfulness. O conceito de vipassana refere-se a uma visão especial, introspetiva, que parte das práticas meditativas assentes na tranquilidade da mente (samatha), na libertação e no desapego da própria mente em relação ao mundo que a rodeia. Esta vipassana deve esclarecer as três amarras da existência, que não são mais do que ilusórias: a impermanência (anicca), a insatisfação (dukkha) e o não-ser, a não-essência (anatta). Só isso permite que se possa despertar para um caminho mais livre e para a primeira das quatro etapas da iluminação: do sotapanna, que se liberta da visão identitária, dos ritos e rituais e das dúvidas, chega-se à sakadagamin (atenuação do desejo sexual e da má vontade), seguindo-se um reforço desta com a anagami e concluindo com a arahant (o estado máximo de iluminação, no qual se alcança o estado pleno meditativo e uma elevação espiritual).

Harari vem fazendo, desde o ano de 2000, duas horas diárias de meditação – a qual considera um bom método de investigação -, para além de fazer um retiro anual, ausente da vida social, resguardado no silêncio sem redes sociais ou literatura. De igual modo, assume-se como vegan e não tem nenhum smartphone. Voltando para aquilo que é o seu trabalho, a sua bibliografia é numerosa e muito técnica, em especial os diferentes artigos e livros que redigiu antes no ano de 2010. São obras que estudam temas associados à História Militar da Idade Média e da Idade Moderna, procurando fazer um percurso cronológico sobre a evolução dos métodos e das ferramentas da guerra, um fenómeno persistente durante o último século. Porém, e desde esse ano de 2010, a sua visão passou a ser bem mais ampla, procurando um estudo mais generalizado sobre a evolução da humanidade até ao presente.

O foco, assim, direcionou-se para o homo sapiens, na tentativa de entender a sua condição presente e futura. A direção da história e a relação do próprio homo sapiens com os restantes seres vivos, numa perspetiva biológica, foram tónicas que direcionaram o seu estudo daí em diante. A preocupação com o progresso tecnológico e com os avanços da inteligência artificial levantaram alertas para Harari, atenções que se direcionam para esse futuro político, social, económico, um desafio que considera preponderante para o futuro da humanidade. O desafio já se coloca atualmente, nesta economia de dados, em que os governos e as corporações conhecem cada vez melhor o indivíduo, e, quanto mais o conhecerem, maior possibilidade para manipulá-lo e ao seu livre-arbítrio começa a existir. Esse livre-arbítrio já é problematizado pelo historiador, já que cada decisão feita depende de condições sociais e biológicas, para lá das pessoais: são do foro genético, bioquímico, familiar, cultural, anatómico. Em suma, todos eles não são escolha de quem as vivencia. É crítico, de igual modo, da indústria alimentar, especialmente da de origem animal, que lhe suscita questões éticas. Embora reconhecedor do progresso até à atualidade, procura não fechar os olhos ao rumo do futuro, necessário para que se possa melhorar aquilo que continua mal.

Os livros que revelaram Harari ao mundo



Em 2011, chega às bancas israelitas o livro “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade”, inicialmente editado somente em hebraico. Foi baseado em vinte aulas que deu a uma turma de História Mundial, inspirado na obra do biólogo norte-americano Jared Diamond, de seu título “Armas, Germes e Aço – Os Destinos das Sociedades Humanas”. Aqui, a grande tese deste Prémio Pulitzer orbita sobre a ideia da superioridade das civilizações europeias e asiáticas ser originada no peso da geografia em relação às sociedades e às culturas, o que as valorizava. Três anos depois, foi editado em inglês e, daí, traduzido para mais de quarenta idiomas diferentes. É um livro aprofundado sobre a história humana, percorrendo o tempo que dista da Pré-História até às transformações tecnológicas da atualidade. Não se trata de um livro que se propõe a revelar descobertas feitas no seu percurso investigativo, mas sim a fazer uma viagem pela evolução do ser humano. Desde as primeiras espécies arcaicas humanas da Idade da Pedra, vai-se à boleia das ciências naturais, nomeadamente da biologia e da antropologia evolucionárias e da psicologia, procurando perceber como é que a atividade humana viu limitada a sua conduta e a sua atividade, para além de perceber como evoluíram esses limites.

A biologia recebe o grande protagonismo desta narrativa histórica, assim como o próprio papel da ciência nos quatro grandes momentos em que estrutura a história do homo sapiens: a Revolução Cognitiva, por volta de 70 mil anos a.C., em que desenvolveu a imaginação; a Revolução Agrícola, por volta de 10 mil anos a.C.; a unificação da humanidade, em várias fases da Antiguidade Clássica, numa altura em que as organizações políticas se tornaram orientadas para um grande império global; e, por fim, a Revolução Científica, já no século XVI, com o surgimento da ciência objetiva. Para Harari, o domínio da espécie humana do mundo só se tornou realidade por ser o único flexível o suficiente para cooperar em grandes grupos.

A sua capacidade única de acreditar em coisas produto da sua imaginação, em conceitos que, embora, no presente reais, começaram de forma abstrata e imaginária (leia-se o dinheiro, as nações, os direitos humanos e a própria crença religiosa), permitiu que as primeiras formas de sociedade se fossem formando. Porém, isso levantou a emergência da discriminação a vários níveis, desde racial, sexual ou política, fechando o espaço a uma sociedade idílica, totalmente igualitária e equitativa. Todos os grandes sistemas de cooperação humana, desde as religiões e as estruturas políticas, económicas, comerciais e legais, têm a sua origem, assim, na capacidade cognitiva do homo sapiens para a ficção. O dinheiro foi criando um papel de um autêntico sistema de confiança mútua entre indivíduos e grupos de indivíduos, com um peso significativo com as pseudo-religiões que se foram formando a partir deste: os grandes sistemas económicos, para além dos políticos.

Sobre a Revolução Agrícola, o israelita menciona que, apesar de ter contribuído para a reprodução de novas espécies biológicas, desde animais a outras fontes de alimentação, e para o aumento significativo da população, conduziu a um deteriorar das condições de vida dos seres humanos, tornando a sua alimentação bem mais unidimensional. Quanto à unificação da humanidade, Harari percebe que o homo sapiens se tornou cada vez mais disposto a uma interdependência política e económica, assente em impérios que têm repercussões na atualidade, quando se olha para uma espécie de império global que é a globalização. Na sua base, indica o dinheiro, as religiões universais e esses primeiros impérios como os grandes condutores deste processo global.

No que toca à Revolução Científica, considera que se tratou de um momento que permitiu a crescente convergência das culturas humanas, sustentado no instinto inovador do pensamento europeu. Aqui, porém, as grandes elites sociais tornaram-se conscientes da sua ignorância, conduzindo a uma necessidade de abrir portas a um imperialismo desenfreado, destinado a fazer valer a sua supremacia moral e cultural. Todavia, e apesar de todas estas condicionantes, o historiador acredita que a felicidade não está mais presente na atualidade que nesse período. Em muito contribui o peso da tecnologia moderna, que considera comportar riscos para o futuro da espécie humana, tendo em conta o seu sentido direcionado para a engenharia genética e para as formas de vida não-orgânicas, para além da própria ideia de mortalidade. Os seres humanos são, agora, capazes de criar outras espécies: são, assim, os novos deuses.

Já em 2015, e após uma fama que não foi consensual (a comunidade científica foi muito crítica da obra, tendo em conta a pouca substância histórica e metodológica associada a este trabalha), chega “Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã”. Aqui, o objetivo de Harari é olhar para a frente, para o futuro, explorando algumas premissas que havia deixado por escrito no seu livro anterior. Para o historiador, a humanidade, no futuro, tentará alcançar a felicidade a imortalidade, beneficiando dos seus poderes quase divinos. Os sistemas políticos e sociais são, cada vez mais, sistemas de processamento de dados, originando um conceito a que chamou de “dataísmo”. Este dataísmo declara o Universo como composto por uma série de fluxos de dados e o valor de cada fenómeno ou de cada entidade é definido pela sua contribuição para o processamento desses dados. A espécie humana é, assim, cada vez mais, toda ela, um sistema de processamento de dados, sendo cada um um chip. O objetivo de um dataísmo é o de maximizar o fluxo de dados numa conexão cada vez maior com meios tecnológicos e audiovisuais.



Harari prevê que a conclusão lógica de todo este processo desenfreado será um em que os seres humanos darão algoritmos às instâncias de poder para tomarem as decisões mais importantes da sua vida por eles, desde a nível profissional, como até pessoal e íntimo. O suicídio do programador e “hacktivista” Aaron Swartz é visto como a primeira martirização deste processo. Ele que foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento do RSS (um fluxo de informação na web que permite aos utilizadores aceder a atualizações de um conjunto de websites de forma sintetizada e estandardizada) e da Creative Commons (uma organização sem fins lucrativos vocacionada para um maior acesso livre a uma série de trabalhos criativos e a poder partilhá-los, para além de usá-los para diferentes fins). Era, assim, alguém que procurava a liberalização da informação para o público, usando as suas capacidades informáticas com um sentido sempre social e científico.

Assim, o enfoque desta obra direciona-se para o sentido da experiência humana individual com as novas competências adquiridas durante a sua existência, no decurso da evolução da espécie. Harari faz o estado da arte da humanidade e, com ela, procura prever o futuro. O livro em si estrutura-se, então, em três partes: a conquista do mundo por parte do homo sapiens, em que estuda a relação entre os seres humanos e os animais e os fundamentos da dominação humana em relação ao animal. A segunda refere-se à atribuição de significado(s) ao mundo por parte do homo sapiens, desde a revolução da linguagem, datada de há 70 mil anos atrás, em que os humanos se tornaram, cada vez mais, parte de uma realidade intersubjetiva; ligada pelas regiões, pelos países e suas fronteiras, pelo dinheiro e pela religião. Isto abriu portas a que se pudesse constituir uma cooperação em larga escala, maleável o suficiente para envolver diferentes seres humanos. A crença nas construções intersubjetivas que só existem na mente humana são reforçadas por uma fé que é coletiva, atribuindo valores e significados às suas ações e aos seus pensamentos, conquistando, com isso, várias proezas.

Para Harari, o humanismo é uma forma de religião que, ao invés de louvar um Deus, louva a humanidade. A prioridade de todo o mundo passa a ser a espécie humana e a satisfação dos seus desejos como seres dominantes. Neste plano, os valores éticos e morais partem de dentro para fora, do individual para o geral, ao invés do oposto, e a sede pela imortalidade e pelo poder é cada vez mais crescente na visada obtenção da felicidade. Por fim, assiste-se à perda de controlo do homo sapiens, perante o desenvolvimento tecnológico que coloca em risco a capacidade dos seres humanos de atribuir significados à sua vida. É aqui que Harari sugere a possibilidade de existir a substituição da espécie humana pelo homo deus, munido da vida eterna e de capacidades divinas que lhe permitam ser uma espécie de super-homem. Sugere, de igual modo, os seres humanos na forma de algoritmos, que deixam, gradualmente, de ser a espécie dominante.


O último dos três grandes livros que projetaram Harari para o conhecimento geral foi “21 Lições para o Século 21”, publicado em 2018. Trata-se de uma coleção de vários ensaios soltos, uns publicados em revistas científicas, outros publicados em revistas para o público geral e outros inéditos. Para o presente e para o futuro, procura enumerar e apresentar aquelas que são as grandes problemáticas da atualidade: na tecnologia, a desilusão, o trabalho, a liberdade, a igualdade; na política, a comunidade, a civilização, o nacionalismo, a religião e a imigração; no desespero e na esperança, o terrorismo, a guerra, a humildade, Deus e o secularismo; na verdade, a ignorância, a justiça, a pós-verdade e a ficção científica; na resiliência, a educação, o sentido e a meditação. Cada lição é um ensaio científico, organizado nessas cinco partes, e ambiciona ver até onde se chegou e até onde se tenciona ou se prevê ir.

As ambiguidades de cada tema leva as suas vantagens e desvantagens, que culminam na sua grande questão, a que interroga sobre como viver numa fase em que as histórias antigas, aquelas que condicionavam as vivências dos seres humanos, se transformaram. Das luzes da religião, o núcleo do mundo passou para outras esferas centrais, como as leis e o dinheiro, na forma de mitos coletivos. São os responsáveis pela edificação dessas sociedades complexas e burocráticas de grandes proporções, que extrapolam das limitações biológicas humanas. Perante a queda da religião e da própria noção de Estado-nação neste planeta cada vez mais globalizado, a pergunta continua sem resposta.

O desafio tecnológico assume proporções amplas com a crise do liberalismo económico, sem antever o surgimento de algo melhor, que se consiga ajustar aos desafios científicos, nomeadamente dos limites (ou falta deles) do desenvolvimento da inteligência artificial e da biotecnologia. O desafio político é desferido com centralidade nos nacionalismos, que são incapazes de fazer frente à toada do desenvolvimento tecnológico a que se assiste. O rumo que se perspetiva é o de uma abertura de vias mais numerosas e mais desafogadas, que permitam fomentar a cooperação global. Perante estes desafios, existem ainda mais discórdias que consensos sobre como respondê-los, embora apele à serenidade e à moderação nas crenças e nas perspetivas futuras, sustentando-se no laicismo.

O valor de verdade daquilo que é a informação veiculada é algo que também problematiza a realidade, tendo em conta o denso volume de desinformação criada. Para tal, Harari propõe uma resposta assente na abdicação de valores que possam enviesar aquilo que motiva cada um a procurar informar-se e fazê-lo a partir de fontes fiáveis e credíveis. É importante de forma a que se possa distinguir a ficção da realidade, sendo o único caminho capaz de elucidar o rumo de vida uma plena e de uma sociedade capaz de enfrentar as adversidades existenciais que se levantam. Para tal, volta a socorrer-se da meditação como uma proposta plausível para poder tornar a visão sobre a realidade mais plena e esclarecida, para poder distinguir aquilo que é produto da mente em relação àquilo que, efetivamente, é real.

Yuval Noah Harari é um dos historiadores mais conhecidos da atualidade, principalmente desde 2011 para cá. Os seus três livros debruçados sobre a espécie humana marcaram o seu percurso, até então quase anónimo para lá da comunidade académica de Israel. No entanto, as suas principais obras não foram acolhidos de forma totalmente positiva por parte desta, assim como da comunidade académica dispersa um pouco por toda a parte. O seu discurso leve, por vezes superficial, foi criticado, assim como a carência de grande suporte científico e até de ser um tanto ou quanto especulativo. Porém, também parte da crítica foi positiva, apoiando a forma lúcida e credível como detetou as grandes problemáticas presentes e futuras, ao denunciar as potencialidades nefastas da tecnologia. Porém, e aos olhos do presente, Harari é um destacado comunicador da história, fazendo das suas visões retrospetivas um importante berço introspetivo para o horizonte do futuro, que questiona o papel que todos nós, sem exceção, assumimos e assumiremos.

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