Manifestantes de extrema-direita em Bruxelas, Bélgica, em Março de 2016 |
1. Remédios para uma doença perigosa
Para um democrata, o avanço da extrema-direita será comparável a uma doença que progride, enfraquece e pode ser fatal para o regime político característico dos países da União Europeia: a democracia liberal e de forte cunho social. Uma doença que pode ser diagnosticada e combatida, havendo remédios que, se tomados a tempo e nas doses certas, são eficazes.
Este texto, que é o desenvolvimento da intervenção que fiz na conferência realizada em Lisboa, em 23 de janeiro, pelo projeto Next Left e o Partido Socialista, procura contribuir para identificar tais remédios. Através de três perguntas: onde deve estar o foco da nossa atenção?; que responsabilidades tem a esquerda democrática?; quais devem ser os eixos do combate político e intelectual?
2. O foco da nossa atenção
A meu ver, devemos praticar um duplo foco.
Por um lado, concentrar o combate na extrema-direita, não só por uma razão tática — é ela que cresce por toda a Europa — mas também e sobretudo por uma razão de fundo. É que é falso o argumento da suposta equivalência política ou moral entre os dois extremos. Quem coloca em crise o sistema democrático no seu conjunto e a cultura humanista que lhe subjaz é a extrema-direita. É ela que glorifica a violência, perfilha a xenofobia, a homofobia, o ultranacionalismo; é ela que contesta as regras eleitorais quando o resultado não serve, que é radicalmente contra a razão e o pluralismo.
Por outro lado, não devemos ignorar que o populismo, que é um dos principais ingredientes do extremismo de direita, não está confinado a ele, antes se dissemina pelo espectro político; e assume particular relevo no radicalismo de esquerda que também clama contra o “sistema” e advoga métodos profundamente antidemocráticos, da violência urbana às chamadas greves “self-service”. Ora, isso apaga as fronteiras e facilita a circulação entre os dois extremos.
O populismo tem ainda permeado a lógica de comunicação dos média de grande circulação, das redes sociais e até de parte da opinião publicada. E mesmo as forças políticas e sociais democráticas têm tolerado excessivamente o uso de linguagem populista no seu interior.
3. As responsabilidades da esquerda democrática
Não há um ponto de vista de Sírio para refletir e agir sobre o avanço da extrema-direita. Cada um/a falará a partir da sua inclinação doutrinária. A área política em que me situo (no contexto europeu, esquerda democrática, centro-esquerda, social-democracia, socialismo democrático ou trabalhismo) tem responsabilidades próprias, que deve assumir sem qualquer hesitação.
A primeira é demarcar-se clara e constantemente da extrema-direita. Uma demarcação totalmente lógica, já que os valores que esta contraria são os das Luzes, de que a esquerda europeia, democrática e progressista é uma das principais herdeiras. E totalmente necessária, seja porque a esquerda democrática não pode ignorar o facto de ser um dos alvos principais da extrema-direita, seja porque, infelizmente, vemos demasiada tolerância e até cumplicidade da parte do centro-direita, em vários países europeus.
A segunda responsabilidade é denunciar o populismo onde quer e sob que forma exista, no campo político, laboral ou cultural; e recusar todas as estratégias políticas que estigmatizam o diálogo entre as correntes centristas e diluem a esquerda moderada e reformista num amálgama de “insubmissos” que tomam por alvo preferencial as instituições democráticas.
A terceira responsabilidade é combater os líderes e os movimentos extremistas, não o seu eleitorado. Todos sabemos que uma grande parte da sua força provém de perceções e sentimentos populares de medo, desigualdade, desamparo e frustração, os quais não podem ser negados, antes compreendidos. Contestar as respostas erradas e perigosas dos extremistas passa por encontrar, para as perguntas que as pessoas fazem, respostas ponderadas e mobilizadoras. E, por muito que nos custe, uma parte do eleitorado extremista sai ou pode sair das nossas próprias fileiras — e temos de reconquistá-lo.
A quarta responsabilidade é a coerência. A esquerda democrática tem um programa, que vai certamente evoluindo, mas que parte de valores e propostas fundamentais, os quais não podem ser sacrificados aos ventos de ocasião. A institucionalidade democrática, a economia social de mercado, regulada por instituições públicas fortes, o crescimento para e através da redistribuição, a igualdade, inclusão e não-discriminação, a universalidade e sustentabilidade dos sistemas sociais, o ambientalismo, a fiscalidade progressiva, o cosmopolitismo, a paz e a ordem internacional baseada em regras, todos são elementos essenciais do ideário progressista, que não podem ser trocados ao sabor das flutuações da opinião. E o mesmo se diga da base social em que assenta, histórica e contemporaneamente, o centro-esquerda: os trabalhadores de todos os setores de atividade, os pensionistas, os jovens e as jovens famílias de todas as configurações, os novos deserdados da economia digital desregulada, os migrantes e outros grupos vulneráveis, tais são os grupos e interesses que nos justificam, em conjunto certamente com os quadros, os empreendedores ou os intelectuais, mas que não podem ser esquecidos em prol apenas destes últimos.
A quinta e última responsabilidade da esquerda democrática europeia é não se deixar iludir pelas lutas de trincheira em torno das “identidades” (que tanto têm envenenado a atmosfera política nos Estados Unidos ou no Brasil). As lógicas de polarização, exclusão e cancelamento recíproco que animam tais lutas são totalmente estranhas à tradição da esquerda que, desde a grande rutura com o comunismo, nunca alinhou em guerras, fossem elas de classes, “culturais” ou “identitárias”; sempre reconheceu e valorizou as interseções culturais e as identidades múltiplas; e sempre cultivou a integração, o diálogo e o compromisso. Aliás, é bom de ver que a atitude de moderação no debate político e social é o grande alvo de todos os extremismos — exatamente porque representa um dos maiores antídotos contra ele.
4. Os eixos do combate
Onde devemos, então, conduzir o combate contra o avanço da extrema-direita?
Começando mesmo em casa. As forças democráticas devem prestar toda a atenção do mundo à defesa da integridade. Integridade moral, não mostrando nenhuma condescendência com as ofensas à lei e os desvios à ética do serviço público praticados no seu seio, os quais despertam, compreensivelmente, revolta contra o “sistema” das instituições republicanas. E integridade política, assumindo todas as dimensões de uma ação que não pode reduzir-se ao protesto contra tudo e à defesa incondicional do statu quo (e das vantagens que ele conceda a certos nichos do mercado laboral). A ação política implica a responsabilidade de aspirar a governar e de governar em nome do interesse geral, realizando reformas e induzindo mudanças através de políticas públicas consequentes.
Nas instituições democráticas, o eixo principal de combate é mesmo a defesa do Estado de direito e do regime representativo. O que, de um lado, significa a recusa de qualquer forma de justicialismo, entendido como a entrega à justiça da gestão de questões políticas (designadamente, as apreciações de mérito, e não apenas de legalidade, das decisões administrativas). A violação da separação de poderes e a suspensão prática das garantias de processo justo (através, por exemplo, da condenação antecipada nos média), ainda que pareçam à primeira vista virtuosas ou eficazes na luta contra a corrupção, têm como efeito necessário, a curto ou médio prazo, o crescimento do extremismo e o definhamento da democracia.
Do outro lado, trata-se de defender intransigentemente a representação pluralista de todas as correntes políticas com um mínimo de expressão social, tal como determinada pelas eleições; e não hesitar na exigência do cumprimento das regras de debate livre, público e informado, combatendo as lógicas de cancelamento, o discurso de ódio e a desinformação. Respeitadas tais regras, a democracia vive mesmo da confrontação de ideias e de políticas, porque é ela que permite a diferenciação e, assim, quer as escolhas quer os compromissos. Senão, a aparência de que “é tudo farinha do mesmo saco” leva inevitavelmente à ascensão dos extremos.
Por último e muito importante: o eixo do espaço público. Quer dizer: o que compreende não apenas as instituições do Estado e os partidos, mas também os parceiros sociais, as organizações não governamentais, as associações económicas e profissionais, a comunicação social, as plataformas digitais de comunicação e circulação de informação. Aí, o que se pede a todos quantos queiram travar o crescimento da extrema-direita (e o populismo que a alimenta) são três atitudes firmes.
Primeiro, a recusa da degradação da lógica comunicacional. E não há que ter medo de dizer as coisas: a degradação dos termos de debate, substituindo os argumentos pelos insultos, substituindo as trocas de ideias pelos ataques de caráter e substituindo a avaliação das políticas (a qual inclui, obviamente, a avaliação da sua legalidade) pelo desnudamento sem limites da pessoa de cada ator político (e seus familiares e amigos), debilita todos quantos, no campo democrático, lhe sucumbem. Por isso insisto neste aviso às forças civilizadas: a obsessão de inventar a torto e a direito podres uns nos outros alimenta uma corrida para a lama, de que o único beneficiário é quem, aí, se sente totalmente à vontade, isto é, a extrema-direita.
A segunda atitude firme que é indispensável tomar é a defesa sem vacilação dos instrumentos principais de mediação da informação: o jornalismo e a razão científica. A sua independência é condição sine qua non da vitalidade democrática.
E, finalmente, a solução não pode nem deve consistir na contestação geral ou no abandono liminar dos meios de comunicação, sejam eles os meios convencionais, sejam as plataformas e redes digitais. Mas sim em usá-los, procurando favorecer neles um discurso argumentativo. Esse que seja fiel ao lema fundamental do mundo do conhecimento, da liberdade e da democracia, que a Europa foi construindo e que a extrema-direita quer sacudir: o ódio mata, a razão emancipa, o diálogo inclui.
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