sexta-feira, 9 de março de 2007

Cinco notas sobre Mobilidade e as Alterações Climáticas, por Mário J. Alves


As alterações climáticas não deverão ser tratadas como um problema, mas sim como um sintoma. As nossas formas habituais de fazer e viver, estão esgotadas. Alterações climáticas provocarão e impulsionarão necessariamente alterações globais. Soluções tecnológicas baseiam-se na ausência de limites e não nos vão salvar. A civilização terá que preparar alterações profundas no plano ético, ambiental e politico para evitar situações de catástrofe que a comunidade científica prevê como muito prováveis e iminentes.

1- Mesmo que estas previsões se revelem ser o mais espectacular falhanço na história das ciências, o limite dos recursos e as questões éticas obrigam-nos a repensar o futuro e o presente. A forma como nós, membros das sociedades ocidentais, nos comportamos já põe não só em causa o nosso bem-estar, como leva à devastação de áreas do globo mais pobres. É obvio, mas pouco sentido, que muitos dos comportamentos de uma pequena minoria só são possíveis porque, neste momento, uma vasta maioria de pessoas no planeta não têm a possibilidade de se comportar da mesma forma. É agora claro que a continuação dos nossos padrões de consumo, destruirão a possibilidade de bem-estar das gerações futuras.

- No plano ético temos que ponderar o que é bem-estar. O que queremos da vida e como a queremos viver (2). Temos que ter a consciência e a responsabilidade de que estamos a viver para além dos nossos limites e a envenenar o futuro que não nos pertence de forma irreversível.

- No plano ambiental temos que ponderar e respeitar limites. A liberdade não consiste em fazer o que nos apetece. Bem ao contrário, a liberdade consiste na existência de regras, normas, limites e a encontrar em nós a força moral de respeitá-los. Comunicar e participar com os outros que respeitam as mesmas regras ou limites.

- No plano político temos que ampliar a participação e a transparência das decisões. A bem ou a mal, terá que haver uma reinvenção do que consideramos político - passará a pertencer a todos. A ética e os limites ambientais terão que ser a base de visões participadas de futuro.

Na prática:

- Seja optimista, pense e observe que os melhores prazeres da vida não implicam consumo e são gratuitos.

- Cuide do planeta, da cidade e da rua com mais cuidado que a sua própria casa. Porque é de todos.

- Consuma sem sentimentos de culpa, mas com a consciência plena das consequências que todos os pequenos actos têm nos outros e na natureza. Tenha diálogos internos sobre ética a olhar a imensidão do mar.

- Feche os olhos e imagine como gostaria que fosse a sua rua, o seu bairro e a sua cidade. Partilhe e melhore a sua visão com os amigos e o mundo. Comunique. Converse sobre os dilemas éticos da sua visão.

- Perceba que exercer a liberdade perante limites físicos e morais é perfeitamente possível e desejável. Comprar todos os móveis e electrodomésticos que deseje e apetece poderá ser a melhor forma de transformar a sua casa num inferno. Comer tudo o que lhe apetece, poderá ser a forma mais rápida para chegar a uma vida miserável de doença e eventualmente a uma morte prematura e dolorosa.

- Participe sempre no limite das suas possibilidades. Escreva cartas. Vá a reuniões da sua freguesia. Faça perguntas. Aprenda a escrever. Como? Porquê? Quando? Exija respostas. Inscreva-se numa ONG ou num partido político. Pinte a manta.

- Escolha uma causa útil e não largue. Amplie a sua voz. Abrace as tecnologias. Seja sereno.

- Informe-se o melhor que pode. Exija transparência nas decisões e nos processos. Esteja atento. Seja transparente - a política é de todos.

- Não tenha medo da autoridade nem dos mais fortes.

- Dê o exemplo. Se tiver posições de responsabilidade, mais força terá o seu exemplo.

- Seja positivo.

2. Não há uma solução, fazemos todos parte da solução. A dimensão do problema é de tal forma colossal que não há mezinhas. A alteração comportamental é fundamental com alguma ajuda da tecnologia ao serviço da ética e da política. As alterações comportamentais terão que ser várias, por vezes radicais e da responsabilidade de todos e de cada um. Muitas das soluções terão que ser de natureza fiscal e regulamentar. As soluções tecnológicas terão que respeitar as gerações futuras, propositadamente diversas, descentralizadas e democráticas. Mas existem muitos pacotes diferentes de soluções. O pacote escolhido depende muito da forma como o problema é enquadrado. Como é habitual em problemas complexos, uma solução que pode ser considerada eficaz e desejável de um ponto de vista, poderá ser considerada contraproducente e indesejável noutro ponto de vista. Infelizmente é comum o enquadramento de problemas de forma reducionista e fazermos asneiras com boas intenções. Ao resolver o problema que identificamos podemos estar a criar outros problemas mais graves. Identificar a emissão de carbono para a atmosfera como um problema único é um enquadramento reducionista da mobilidade de pessoas e bens.

Na prática:

- Exija a adopção de medidas que contribuam para a diminuição de padrões de consumo e mais eficiência energética. Mesmo e principalmente aquelas que o afectam a si e aos seus. Na mobilidade significará essencialmente diminuir o uso do carro. Para reduzir o uso do automóvel serão necessário medidas fiscais e regulamentares duras que precisam do apoio eleitoral de quem está informado e sabe as consequências do seu uso desregrado.

- Exija a adopção de comportamentos exemplares por parte de quem deve dar o primeiro exemplo: o poder político. Por exemplo, o uso do comboio em vez do avião em viagens oficiais às regiões do país. A publicação do número de km realizados em viagens oficiais por cada modo de transportes é um exercício de transparência e responsabilidade.

- Exija a integração de soluções baseadas em visões coerentes de futuro. É demasiado frequente cada instituição andar à deriva a resolver os problemas que identifica e usar soluções que melhor os resolvem a curto prazo.

- Entenda que para diminuir as emissões todas as contribuições são importantes e essenciais por mais pequenas que sejam. Não podemos ficar à espera que os cidadãos Americanos ou Chineses mudem de comportamento.

- Perceba bem as consequências das tecnologias propostas. Algumas soluções parecem ajudar a resolver as alterações climáticas, mas envenenam o futuro de outras formas. Outras ainda, intrinsecamente boas, quando aplicadas em isolamento podem inicialmente baixar as emissões, mas finalmente contribuir para o aumento dos padrões de consumo e não podem ser consideradas soluções sérias.

3- As emissões do sector dos transportes são na quase totalidade devido ao uso e abuso do automóvel. Contrariamente às emissões industriais, são emissões dispersas pelo território, estão directamente dependentes de decisões de mobilidade individual e serão mais difícil de controlar. Associamos o uso do automóvel a uma forte aspiração social, a um direito e à livre escolha. Reduzir as distâncias percorridas pelo automóvel levará também mais tempo do que a redução de emissões noutros sectores, porque exigirá também alterações dos usos do solo que levarão décadas a ter consequências. É também o sector onde mais tem crescido os padrões de consumo e emissões - estamos todos a conduzir mais automóveis, mais longe. A aviação, fora do protocolo de Quioto, é o modo de transporte que mais polui por quilómetro e têm crescido muito nas últimas décadas. As emissões de carbono no sector dos transportes em Portugal duplicaram desde 1990. Por outro lado é o sector onde a eficiência energética poderá ter mais efeitos, porque é dos sectores onde há mais desperdícios:

- O automóvel que continuamos a usar é baseado num invento do século XIX, melhorado mas altamente ineficiente - o motor de explosão só usa 15% da energia que emite carbono para a atmosfera para movimentar o veículo, o resto é desperdiçado;

- Este desperdício de 85% de energia é necessário para mover 1 tonelada e meia de lata, para habitualmente transportar uma pessoa de poucas dezenas de quilos;

- Cerca de 30% das viagens em automóvel cobrem distâncias inferiores a 3 km, que podem perfeitamente ser efectuadas por outros modos (bicicleta, a pé ou transportes públicos).

Na prática:

- Saiba e assuma que o uso do automóvel, para além de ser o elemento que mais prejudica a vivência das cidades, é um dos maiores contributos para as alterações climáticas do planeta.

- Tente reduzir o uso do automóvel. Sempre que possível ande mais a pé ou de bicicleta. Para além de reduzir os Gases de Efeito de Estufa, poucas medidas podem ter um efeito tão avassaladoramente positivo em toda a sociedade que a redução do uso do automóvel.

- Exija qualidade e segurança na sua rua, no seu bairro e na sua cidade. Passeios mais largos, mais árvores, mais espaços de estadia, menos automóveis a menos velocidade.

- Para distâncias demasiado longas para andar a pé, ande de transportes públicos. Exija que os Transportes Públicos sejam acessíveis a todos e que possa levar consigo a bicicleta, os patins, o segway.

- Exija mais investimento em Transportes Públicos, bilhética mais simples e justa, assim como uma melhor integração de modos de transporte.

- Exija comportamentos semelhantes e exemplares de quem é eleito, decide e exerce o poder. O uso dos Transportes Públicos, andar a pé ou de bicicleta, por parte da classe política e dirigente, para além de ser um exercício de humildade democrática é a melhor forma de potenciar a alteração de comportamentos a maior escala.

- Exija que a publicidade divulgue os verdadeiros custos de mais um automóvel em circulação:...ao sair da fábrica este carro já produziu 26 toneladas de lixo e 922 milhões de metros cúbicos de ar poluído. Durante a sua vida útil este carro produzirá 44.3 toneladas de dióxido de carbono, 4.8 kg de dióxido de enxofre, 46.8 kg dióxido de azoto, 325 kg monóxido de carbono, 36 kg de hidrocarbonetos. Cada 50 minutos será fabricado um carro que matará alguém, cada 50 segundos será fabricado um carro que ferirá alguém (3). Este carro terá um custo aproximado de 865 euros por mês em seguro, imposto automóvel, gasolina, depreciação (4)...

- Conduza mais devagar e de forma menos brusca. Aumenta a segurança, poupa dinheiro e reduz as emissões de carbono. Exija o mesmo de quem elege.


4- Temos que repensar a forma de intervir, planear, gerir e usar a cidade. Cada vez mais pessoas habitarão megalopolis de dezenas de milhões de habitantes. Mesmo as cidades europeias e portuguesas expandiram de forma pouco sustentável nas últimas décadas. O aumento das velocidades permitidas pela massificação do uso do automóvel, cada vez mais barato, e o aumento dos investimentos em infra-estruturas rodoviárias, levou a que as pessoas procurassem e comprassem mais metros quadrados de residência em zonas menos densas - a suburbanização. Este fenómeno gera dependência do automóvel. Muitas das pessoas que vivem fora da cidade não podem movimentar-se no seu o dia-a-dia sem o uso do carro. Temos que inverter tendências.

Na prática:

- Perceber e assumir que o aparente ganho de tempo a curto prazo pela construção de infra-estruturas rodoviárias é tendencialmente anulado a médio prazo pela realização de mais viagens, com percursos cada vez mais longos. Ao reduzir o tempo de viagem num determinado percurso, várias coisas sucedem ao mesmo tempo - geração de tráfego de pessoas que anteriormente andavam de Transportes Públicos; alterações de residência para zonas mais baratas e mais longe dos destinos habituais; aumento de congestionamento nas zonas centrais: a construção de infra-estruturas rodoviárias contribui sempre para mais emissões de gases de efeito de estufa.

- A redução de capacidades da rodovia, por outro lado, reduz o uso do automóvel e reduz a emissão de gases de efeito de estufa. Ao reduzir o espaço dedicado ao automóvel (por exemplo, através da pedonalização de ruas comerciais, alargamento de passeios, redução do número de lugares de estacionamento, ocupação de espaço pelo Transporte Público, etc.) várias coisas sucedem - existe uma retracção do tráfego automóvel porque as pessoas desistem da viagem; combinam viagens; deslocam-se a pé, de bicicleta ou Transporte Publico; reduz o congestionamento e os locais de residência regressam progressivamente ao centro.

- Temos que planear zonas mais densas e multi-funcionais (bairros onde é possível viver, trabalhar, brincar, passear, etc.). A separação da cidade por zonas mono-funcionais (grandes superfícies comerciais, campus universitários, bairros exclusivamente residenciais, etc.) foi uma das soluções reducionistas do século passado que é um desastre em termos de mobilidade. A situação é ainda mais desastrosa porque estas áreas são construídas geralmente em zonas não servidas por Transporte Público. A densidade de construção e a mistura de usos é a única forma de fomentar o investimento e o uso dos transportes públicos: grande frequência, com clientes ao longo de todo o dia, e consequentemente economicamente viável. Um bairro denso com bons passeios e com poucos automóveis, encoraja a marcha a pé e o uso da bicicleta.

- O espaço público tem que ter qualidade para que o modo de transporte mais importante e acarinhado na cidade tenha uma emissão de gás de efeito de estufa igual a zero: andar a pé. O desenho urbano tem que ser feito a pensar na vida, nas pessoas, nos espaços, nos edifícios e finalmente no automóvel. Nunca o contrário. Ao pensarmos nas pessoas, se pensarmos primeiro nos mais vulneráveis (as crianças, os idosos, os invisuais, etc.) a cidade será melhor para todos andarmos a pé.

- É imprescindível proteger os passeios e melhorar a segurança pedonal. Carros sobre os passeios contribuem indirectamente para as alterações climáticas: muitas pessoas andam de carro porque é desagradável e inseguro andar a pé.

- A gestão e o rigor na fiscalização do estacionamento é a forma mais eficaz de restringir o uso do automóvel nos centros urbanos. Não podemos continuar a construir áreas de serviços e comércio, bem servidas por Transporte Público, com demasiados lugares de estacionamento - nestas circunstâncias, há que estabelecer índices máximos de estacionamento e não exigir mínimos excessivos como é prática corrente em Portugal.

- Os municípios têm que realizar Planos de Transporte e Programas de Mobilidade multimodais, com objectivos claros, baseados em visões politicas participadas e partilhadas.

5- Usar a criatividade para pensar novas formas de mobilidade e usar tecnologias inovadoras mas coerentes com a visão de um futuro desejado. Caminhamos para um mundo altamente tecnológico que terá novos problemas, mas que também permitirá novas formas de os encarar e esboçar soluções. Mas não devemos ser tecno-optimistas - as tecnologias da informação que aparentemente diminuem a mobilidade (teleconferências, Internet, telefone, etc.) acabam sempre por exacerbar a necessidade de viagem, pela potenciação de contactos em rede mais densos. No entanto, a nossa vontade de mudar, associado a um uso inteligente das tecnologias, deverá ter consequências positivas na racionalização da mobilidade.

Na prática:

- Incentivar o aparecimento de serviços de partilha de viaturas (car-sharing) - membros do serviço podem usufruir de uma frota de viaturas que estão distribuídas pela cidade e são pagas pelo seu uso. "Um serviço de aluguer rápido, no bairro, à distancia a pé". Um serviço que já existe em mais de 600 cidades em 18 países (5).

- Organizar em instituições (ministérios, câmaras municipais, universidades, escolas, etc.) Planos de Acessibilidade que, entre outras coisas, incentivem sistemas de boleias (carpooling) - um sistema informático que junta pessoas da mesma instituição com residência próxima para partilharem o carro na viagem, reduzindo os custos e as emissões. Podemos incentivar a partilha do carro, com a implementação de faixas exclusivas para veículos com 3 ou mais pessoas ou através do pagamento de bónus salariais a quem não ocupa 15 m2 de estacionamento à porta do local de trabalho.

- Fomentar o uso de veículos de Transporte Público movidos a combustíveis alternativos: Gás Natural, Biocarborantes, Electricidade e finalmente Hidrogénio Renovável.

- Incentivar o uso de veículos híbridos (por eg. eléctrico-tradicional) ou flex-fuel (por eg. bioetanol-tradicional) de baixas emissões.

- Fazer reviver tecnologias do passado que fazem todo o sentido no futuro das cidades: o eléctrico e o trolley. Retomar, por exemplo, a rede histórica de eléctricos em Lisboa. Adoptar os trolleys em situações de transição (mais económicos e mais flexíveis).

- Retomarmos o uso intenso de um dos mais extraordinários inventos do último milénio: a bicicleta (6).

Seja positivo.
Apague a luz.

Mario J Alves, Março 2007

Notas:

* Texto escrito a pedido da produção do programa da RTP2 Sociedade Civil, para a preparação de uma emissão dedicada às alterações climáticas - um texto não-técnico e com conselhos práticos.

2) Fazer, por exemplo, uma leitura critica do livro do Prof. de bioética Peter Singer, Como Havemos de Viver? A ética numa época de individualismo.

3) Oeko-bilanz eines autolebens. Umwelt-und Prognose, Institut Heidelberg. Landstrasse 118a, D- 69121, Heidelberg, Germany.

4) Valor calculado pelo Automobile Association of Ireland, possivelmente um pouco menor em Portugal

5) Shaheen, Susan A. and Adam P. Cohen (2006) Worldwide Carsharing Growth: An International Comparison. Institute of Transportation Studies, University of California, Davis, Research Report UCD-ITS-RR-06-22

6) Poderemos inundar as nossas cidades de bicicletas partilhadas. Aprender com o exemplo pioneiro de Aveiro com as BUGAS, ou Lyon, ou no verão de 2007 de Paris, que irá disponibilizar 20,600 bicicletas em 1,450 locais - com um espaçamento médio de 230 metros - com utilização gratuita durante a primeira meia hora.

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