Na Igreja Católica, ainda os há à imagem de Cristo. Dos que trazem na alma um instinto de ruptura, uma radicalidade em direção ao que significa ser um homem entre homens, e à luta que o amor impõe em todas as épocas. Hans Küng tinha a coragem das suas convicções, e uma inteligência que apontava claramente o que havia a fazer, sem receio de chocar com os elementos tradicionalistas daquela instituição, desafiando os valores e dogmas mais retrógrados.
Foi um dos que exigiram do Papa Bento XVI que assumisse responsabilidades pelo encobrimento dos casos de pedofilia na Igreja. Era há muito uma das figuras mais incómodas. Crítico da doutrina sobre a infalibilidade papal, viu, em 1979, ser-lhe revogada a licença para ensinar teologia católica. Küng morreu no dia 6 de abril, aos 93 anos, na sua residência em Tübingen, na Alemanha. Em 2013, anos depois de lhe ter sido diagnosticada a doença de Parkinson, vira-se forçado a abandonar a vida pública.
Nascido em Sursee, Suíça, a 19 de março de 1928, foi ordenado sacerdote em 1954. Seis anos mais tarde tornou-se professor titular da Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Tübingen, tendo sido convidado pelo Papa João XXIII a participar do Concílio Vaticano II como especialista. Era um dos mais jovens, ele e o seu colega Joseph Ratzinger, o futuro Bento XVI, e estavam então mais próximos na proposta de um conjunto de reformas que prometiam abalar de forma decisiva as bases em que, até ali, assentava a Igreja Católica.
Além de defender um modelo mais colegial e descentralizado, o suíço punha em causa outros elementos da doutrina católica, como a obrigatoriedade do celibato sacerdotal, a interdição das mulheres no sacerdócio, a contracepção e até a proibição da eutanásia. Realizado entre 1962 e 1965, o concílio abriu uma perspetiva de modernização da Igreja, mas com o passar dos anos muitos dos que viram naquele um momento charneira acabaram por ficar desiludidos com a capacidade da instituição para se esquivar ao confronto.
Depois de a Congregação para a Doutrina da Fé lhe ter revogado a faculdade de ensinar como teólogo católico, Küng não abdicou de se manter fiel aos seus princípios, continuando a dar aulas como professor emérito de teologia ecuménica em Tübingen. Aprofundou o estudo da história das religiões, em particular as religiões Abraâmicas, e foi essa especialidade que acabou por definir a sua ligação ao grande projecto daquela Universidade, o Ethos Mundial, que partiu da sua proposta de encontrar os mínimos denominadores comuns a todas as culturas e religiões, «o contributo destas para a construção de uma base de princípios éticos mundiais que permitissem à humanidade entender-se pacificamente». O teólogo João Duque, pro-reitor da Universidade Católica Portuguesa e professor na Faculdade de Teologia, em Braga, adianta que não sendo uma fase especificamente teológica, talvez seja a fase pela qual ele é mais conhecido do público em geral.
Já o padre e professor de filosofia Anselmo Borges, enquadra Küng entre as vozes dissonantes numa altura em que João Paulo II protagonizava um regresso ao conservadorismo, e afastado da sua missão canónica, restou-lhe prosseguir na docência universitária, numa cátedra de diálogo inter-religioso «que o levou a aprofundar o seu projecto de uma ética global, restaurando o chamado ‘parlamento das religiões mundiais’, muito baseado no princípio segundo o qual não haverá paz entre as nações sem que haja também paz entre as religiões e que esta não é possível sem diálogo». Ao Público, Anselmo Borges referiu ainda que, colocado à margem da Igreja, o teólogo suíço foi um trabalhador incansável, deixando um legado gigantesco, destacando-se a trilogia sobre o Cristianismo, o Judaísmo e o Islão, que foi traduzida para português.
Em grande medida, o perfil de Küng traça-se num contraste decisivo com Ratzinger, tendo os dois sido professores na mesma universidade, e tendo sido o primeiro quem convenceu a instituição a nomear o futuro Papa para lecionar Teologia Dogmática. Quando foi afastado, um dos votos contra Küng terá sido o do seu ex-colega, então cardeal.
Já depois de ter sido eleito Papa, em 2005, Bento XVI tentou uma reaproximação, chamando-o para jantar na sua residência, em Castel Gandolfo.
Apesar de o Vaticano ter garantido que a reunião aconteceu «num clima amistoso», os dois tinham assumido de antemão que não havia forma de superarem o fosso que há muito os separava. Küng chegou a dizer que falar com Ratzinger tinha-se tornado semelhante a falar com um agente do KGB e manteve o seu repúdio à forma como os tradicionalistas bloquearam as reformas firmadas no Concílio Vaticano II, acusando-os de serem «ultra-conservadores e anti-democráticos». Assim, o encontro não foi verdadeiramente uma trégua, mas apenas um sinal de respeito de parte a parte, tendo a conversa contornado as divergências doutrinárias persistentes.
Numa tentativa de estender um ramo de oliveira, Bento XVI dizia ter apreciado «o esforço do Professor Küng em contribuir para um renovado reconhecimento dos valores morais essenciais da humanidade através do diálogo das religiões e no encontro com a razão secular». Mas o sinal de que não houve verdadeira reconciliação, e aquilo que permitiu ao suíço ensaiar a estocada final, foram os casos de pedofilia que a Igreja encobriu ao longo de décadas, tendo Küng atacado o pontífice emérito por se ter afastado, provando, no fundo, que sempre lhe faltou o carácter e a coragem para estar à altura dos desafios com que a Igreja se confrontava.
Assim, em 2013, Küng celebrou a eleição do Papa Francisco como «a melhor escolha possível». Nesse ano em que se afastou da vida pública, o teólogo suíço descreveu ainda o argentino como «um raio de esperança», mostrando-se reconciliado, por fim, com a instituição a que dedicou a sua vida.
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