sexta-feira, 11 de agosto de 2023

O mercúrio dos garimpos está a matar os povos indígenas na Amazónia


Os garimpos ilegais de ouro na Amazónia contaminaram solos, rios e lençóis freáticos com mercúrio. O metal não radioativo, mas extremamente tóxico, está a matar lentamente os povos indígenas e a destruir ecossistemas. Nados-mortos, a proliferação de cancros e outras doenças em comunidades inteiras são os sinais mais claros da contaminação.

Foi nas margens do Rio Tapajós, na Amazónia brasileira, que a indígena Maria Munduruku completou, em maio, nove anos. Na aldeia, crianças como ela jogam bola, sobem em árvores, brincam com animais e correm pela floresta, mas Maria não: ela não anda, não fala e não consegue ganhar peso. Com malformações congénitas e problemas neurológicos, ela não consegue sequer frequentar a escola.

Maria é uma das dezenas de crianças Munduruku com malformações e atrasos no desenvolvimento, além de adultos que relatam tremores, fraqueza e perda de visão. Há vários anos que médicos e lideranças indígenas tentam explicar o problema que faz com que as aldeias habitadas pelo povo Munduruku, no estado do Pará, sejam as que mais solicitam cadeiras de rodas ao Ministério da Saúde do Brasil.

Maria e o seu pai vivem na bacia do Rio Tapajós, de ocupação tradicional do povo Munduruku. Esta é a região do Brasil que mais concentra garimpos ilegais de ouro e onde estão os municípios de Itaituba, Trairão e Jacareacanga, os campeões de garimpagem, de acordo com um relatório da MapBiomas, organização que mapeia ações humanas nos biomas brasileiros.

Apesar de o problema ser conhecido entre indígenas e autoridades públicas, não há na região programas de combate ao garimpo ilegal ou sequer de testagens para verificar a possível contaminação de pessoas por mercúrio. Um dos poucos estudos sobre o tema foi feito em 2020, pela organização não governamental WWF e pela Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), ligada ao Ministério da Saúde do Brasil.

Os resultados foram aterradores: todos os 200 indígenas Munduruku testados, entre adultos e crianças, possuíam mercúrio no organismo - em média 60% deles com níveis acima do considerado seguro pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de 10μg/L. Entre as 57 crianças testadas, nove apresentaram problemas nos testes de neurodesenvolvimento.

Cadeia de Contaminação
Pesquisas confirmaram que parte dos sedimentos vieram de garimpos de ouro ilegais e que viajaram centenas de quilómetros até alcançarem a vila, contaminando peixes, crustáceos, algas e todo o complexo ecossistema da Amazónia. Até as andorinhas azuis, espécie migratória na região, já apresentam mercúrio nas penas, segundo um estudo do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP).

E o problema não se restringe apenas às áreas onde ocorre a atividade garimpeira: o movimento dos enormes rios amazónicos espalha a substância por quilómetros, expondo à contaminação a população urbana da região.

Um estudo recente do Laboratório de Epidemiologia Molecular (LEpiMol), da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), testou a quantidade de mercúrio em 462 pessoas de comunidades ribeirinhas do Rio Tapajós, Rio Amazonas e da área urbana de Santarém. Ao todo, 75,6% estavam com níveis de mercúrio acima do limite considerado seguro.

Aumento da Violência
Pelo seu trabalho de combate ao garimpo e de defesa dos direitos indígenas, Alessandra Munduruku já teve a sua casa invadida e saqueada duas vezes. Em ambas foram roubados cartões de memória e documentos que comprovavam a extração de ouro na região. Hoje, ela só circula pelas cidades da região com segurança particular – afinal, os garimpos ilegais também deixam marcas brutais de violência.

Eles foram responsáveis por 90% das mortes por conflitos no campo brasileiro em 2021, de acordo com um Relatório de Conflitos no Campo de 2021, publicado pela Comissão Pastoral da Terra.

“As pessoas vivem em um ambiente de extrema tensão e sofrem com a presença de armas, drogas, com prostituição e de violência sexual contra mulheres e crianças das comunidades. Essa violência toda também impacta na saúde, nas relações sociais e no desenvolvimento das comunidades”, diz o médico Paulo Basta, da Fiocruz.

Política de combate? Zero
O ouro extraído ilegalmente da Amazónia brasileira é matéria-prima para equipamentos médicos, eletrónicos e jóias, que serão comercializados e até exportados para a Europa e Estados Unidos. Uma investigação do portal jornalístico Repórter Brasil comprovou que computadores e smartphones da Apple e da Microsoft, além de servidores do Google e da Amazon, eram compostos por filamentos de ouro extraídos, em parte, de garimpos ilegais da Amazônia.

E quem acompanha o problema reforça: a situação piorou durante o governo do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL), que esteve no poder entre 2018 e 2022: em 2021 a área garimpada em Terras Indígenas demarcadas aumentou 625% em comparação com 2020, segundo a organização MapBiomas.

Além disso, Bolsonaro articulou uma política de avanço do garimpo e assinou oito decretos que facilitaram a atividade ilegal. O ex-presidente chegou a enviar ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 191 de 2020, que previa legalizar a mineração em terras indígenas. A pauta foi suspensa pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no seu primeiro dia de mandato, mas cabe ao Congresso aboli-la em definitivo.

“No governo Bolsonaro, os donos de garimpos não tinham medo. Eles se articulavam com deputados, senadores, vereadores, e acabavam ganhando muita força. Nós víamos helicópteros chegando e grandes quantidades de combustível sendo transportadas, em plena luz do dia”, conta Alessandra Munduruku. “Com a mudança de governo, eles estão mais discretos, mas continuam explorando ouro em nossas terras.”

Saber mais:
Mercúrio contamina a natureza por tempo indeterminado" – DW – 16/02/2023

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