sábado, 4 de outubro de 2008

A Domesticação da Sociedade, por José Gil


Excelente artigo de José Gil na Visão de 2 de Outubro de 2008, que passo a transcrever.

A DOMESTICAÇÃO DA SOCIEDADE
O que é que se está a passar? Nada. Vivemos entre dois países opostos. Num, existe uma sociedade dinâmica, em franco progresso, em mudança sempre para melhor em todos os domínios, educativos, laboral, económico, administrativo, tecnológico. No outro, o quotidiano parece cada vez mais duro e insuportável, há insegurança, assaltos,degradação da qualidade de vida, corrupção, ameaças de crise financeira. Criou-se uma clivagem entre os dois, ou há um que é real e o outro imaginário? Colocar assim a questão é construir um quadro artificial relativamente ao nosso vivido. É certo que vivemos um pouco esquizofrenicamente, mas naquele nada que separa os dois mundos algo se passa subterraneamente. Acontece, antes de mais, que o português voltou à inércia e à passividade face ás transformações inelutáveis que abalaram a sua existência como destino. A esse estado de espírito acrescentou-se recentemente um processo de interiorização do novo modo de vida a que a modernização o vai condenando. Um grupo social tornou-se emblemático desta conjuntura: o dos professores. A sua situação não mudou. Justificaria ainda a saída à rua de 100 mil pessoas. Mas, precisamente, uma tal manifestação seria hoje impensável. O Governo e o ME ganharam. Os espíritos estão parcialmente domados. Quebrou-se-lhes a espinha, juntando ao desespero anterior um desespero maior. O ambiente das escolas é agora de ansiedade, com a corrida ao cumprimento das centenas de regulamentações que desabam todos os dias do Ministério para os docentes lerem, interpretarem e aplicarem. Uma burocracia inimaginável, que devora as horas dos professores, em aflição constante para conciliar com uma vida privada cada vez mais residual e mesmo com a preparação das lições, em desnorte com as novas normas (tal professor de filosofia a dar aulas de baby sitting em cursos profissionalizantes), tudo isto sob a ameaça da despromoção e do resultado da avaliação que pode terminar no desemprego. COMO FOI ISTO POSSIVEL? Como foi possível passar da contestação à obediência, da revolta à servidão voluntária como lhe chamava La Boétie? Indiquemos um só mecanismo que o Governo utiliza: a ausência total de resposta a todo o tipo de protesto. Cem mil pessoas na rua? Que se manifestem, têm todo o direito. Quanto a nós, continuaremos a enviar-lhe directivas, portarias, regulamentos a cumprir sob pena de…(existe a lei). Ausentando-se da contenda, tornando-se ausente, o poder torna a realidade ausente e pendura o adversário num limbo irreal. Deixando intactos os meios da contestação mas fazendo desaparecer o seu alvo, desinscreve-os do real. É uma técnica de não-inscrição. Ao separar os meios do alvo, faz-se do protesto uma brincadeira de crianças, uma não–acção, uma acção não performativa. Esta reduz-se a um puro discurso contestário, esvaziado do conteúdo real a que reenviava (é o avesso, no plano da acção, do enunciado performativo de Austin: um acto que é um discurso). Resultado: o professor volta à escola, encontra a mesma realidade, mas sofre um embate muito maior. É essa a força da realidade. É essa a realidade única. E é preciso ser realista. Assim começa a interiorização da obediência (e, um dia, do amor à servidão). NO PROCESSO de domesticação da sociedade, a teimosia do primeiro-ministro e da sua ministra da Educação representam muito mais do que simples traços psicológicos. São técnicas terríveis de dominação, de castração e de esmagamento, e de fabricação de subjectividades obedientes. Conviria chamar a este mecanismo tão eficaz, a desactivação da acção. É a não-inscrição elevada ao estatuto sofisticado de uma técnica politica, à maneira de certos processos psicóticos.


Foto: Apresentação/Debate do livro: Portugal Hoje - O Medo de Existir , Évora, Abril, 2005

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