sexta-feira, 28 de maio de 2021

O colapso socioambiental não é um evento, é o processo em curso


"Esse nível desastroso de aquecimento médio global, jamais experimentado por nossa espécie, não é o efeito de fatores adventícios e independentes de nossa vontade, mas está inscrito no modus operandi da economia capitalista globalizada. Se há ainda alguma incerteza sobre o ritmo e a magnitude futura do aquecimento global, isso se deve ao fato de que esse ritmo e essa magnitude ainda dependem substancialmente da capacidade das sociedades contemporâneas de operar uma drástica ruptura civilizacional com seu DNA termo-fóssil, seu paradigma alimentar destrutivo da biosfera e seu sistema político e econômico de tomadas de decisão, concentrado nas mãos de conglomerados corporativos e de burocracias dos Estados-Corporações", escreve Luiz Marques.

Publicado por EcoDebate

Luiz Marques, professor livre-docente do Departamento de História do IFCH/Unicamp, coordenador da coleção Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e que participa com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar Debate & Atualização, em apresentação de artigo [1].
Eis o texto.

Publicado no início deste ano, o texto tenta sistematizar dados e reflexões sobre:

1. Como compreender, conceitualmente, o colapso socioambiental em curso.

2. Esse processo torna-se inequívoco, em especial com a aceleração recente do aquecimento global (+0,2 C entre 2015 e 2019) e com a inevitabilidade de aquecimentos sucessivos, mesmo sem ulteriores emissões de gases de efeito estufa, dado o atual desequilíbrio térmico do planeta.

3. Os horizontes de tempo projetados para aquecimentos médios globais (terrestre e marítimo combinados) de 1,5 grau Celsius e 2 graus Celsius acima do período pré-industrial, e os diferentes impactos decorrentes desses dois níveis de aquecimento, no que se refere às seguintes adversidades, intimamente associadas:

(a) maior recorrência e intensificação de ondas e picos de calor letais;

(b) incêndios e destruição das florestas, com liberação adicional de CO2;

(c) extinção em massa de espécies (80% das espécies terrestres têm seu habitat nas florestas);

(d) colapso da criosfera, com liberação adicional de CO2 e metano do leito marinho no Ártico e do permafrost;

(e) colapso da corrente do Golfo e demais mudanças adversas nas correntes marítimas;

(f) elevação do nível do mar combinada a mais intensos e recorrentes eventos meteorológicos extremos, provocando crescente destruição da infraestrutura (incluídas as usinas nucleares instaladas à beira-mar);

(g) riscos mais elevados para a agricultura e diminuição da produtividade agrícola, com sempre maior insegurança alimentar e hídrica;

(h) mais recorrentes, e possivelmente mais letais, pandemias e demais crises sanitárias.

4. As ameaças crescentes que esses fenômenos representam para a sobrevivência de nossas sociedades e, no limite, para nossa espécie, podem ser melhor entendidas através da mensuração de alguns dos impactos já sofridos no presente, com o aquecimento médio de 1,2 grau Celsius acima do período pré-industrial, atingido em 2019.

A proposta básica do artigo é chamar a atenção para o consenso científico, reiterado mais uma vez em 2018 pelo IPCC, segundo o qual nenhuma sociedade, por mais recursos materiais e tecnológicos que tenha, permanece minimamente funcional num planeta em média “apenas” 1 grau Celsius mais quente do que ele já está hoje (ou seja, 2,2 graus C acima do período pré-industrial).

Nas palavras de Sir Brian Hoskins, Diretor do Grantham Institute for Climate Change (Londres): “Não temos evidência de que um aquecimento de 1,9 grau Celsius é algo com que se possa lidar facilmente, e 2,1 graus Celsius é um desastre”. Esse nível desastroso de aquecimento médio global, jamais experimentado por nossa espécie, não é o efeito de fatores adventícios e independentes de nossa vontade, mas está inscrito no modus operandi da economia capitalista globalizada. Se há ainda alguma incerteza sobre o ritmo e a magnitude futura do aquecimento global, isso se deve ao fato de que esse ritmo e essa magnitude ainda dependem substancialmente da capacidade das sociedades contemporâneas de operar uma drástica ruptura civilizacional com seu DNA termo-fóssil, seu paradigma alimentar destrutivo da biosfera e seu sistema político e econômico de tomadas de decisão, concentrado nas mãos de conglomerados corporativos e de burocracias dos Estados-Corporações.

Posto que um aquecimento desastroso será atingido em algum momento do segundo quarto do século XXI, mais provavelmente nos anos 2030, o tempo dado às sociedades (após 40 anos de tergiversações) para se desviar dos piores cenários da atual trajetória do sistema climático e da aniquilação da biosfera conta-se agora em pouquíssimos anos. Na realidade, 2020 é a data limite para o início da diminuição das emissões de GEE no cenário mais favorável do IPCC (RCP 2,6 W/m2). A pandemia provocou essa diminuição, mas as emissões já estão aumentando novamente na China, com a retomada econômica, e no Brasil, por causa dos incêndios florestais.

A apresentação de uma plataforma política de sobrevivência para o nosso tempo, baseada na ciência, constitui o último item propositivo do artigo.

Cordialmente, Luiz Marques.

Nota:

[1] O artigo foi publicado no número inaugural da revista Rosa e pode ser conferido na íntegra aqui.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos

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