Quem manda neste país - De pouco nos serve escolher um Parlamento e um Governo, se o verdadeiro poder em Portugal não é o democrático
Por João Paulo Batalha
Está a chegar ao fim, graças a Deus, a campanha para uma eleição dispensável, convocada para resolver um caso de venalidade e má conduta ética, que não vai resolver o caso que a provocou. Uma ficção dramatizada e pouco convincente, em que os políticos fingem que vão resolver tudo, e os eleitores já nem fingem que acreditam. É uma campanha pouco entusiasmante porque é uma campanha repetida (estivemos nisto há um ano) e porque o cidadão médio espera muito pouco dos mesmos partidos e das mesmas lideranças.
Temos boas razões para a descrença. Em Portugal, o verdadeiro poder está hoje fora do Estado, acima do Estado. Capturando um poder político fraco, mandam os grandes lóbis. Comem à mesa dos contribuintes, esmifram os consumidores, prosperam intocados, protegidos pela lei e a salvo dos tribunais. O melhor caso de estudo dessa privatização do poder e da soberania democrática desenrola-se à frente dos nossos olhos há cinco anos.
Em 2020, a EDP vendeu à francesa Engie seis barragens na bacia do Douro por 2.200 milhões de euros – concessões que o Estado tinha prorrogado não muito tempo antes, sem concurso, por uma fração desse valor. O negócio foi estruturado de forma a que a operação não pagasse impostos. Os alertas para a engenharia fiscal foram feitos ainda de o negócio se concretizar, pelo Movimento Cultural da Terra de Miranda, uma organização cívica que assumiu um combate desigual por justiça para o Nordeste transmontano, de onde há décadas muita riqueza é extraída, sem contrapartidas justas para as populações locais.
Os avisos foram inúteis. Apesar de prevenido, o Governo da época abriu todas as portas e estendeu à EDP todas as facilidades. O negócio das barragens está sob investigação há anos, e faz parte de um conjunto grande de diferendos que opõem a EDP ao Estado, a maior parte dos quais sem resolução à vista – e vários a trabalhar para a prescrição. Mas o conflito mais revelador tem sido o pagamento do IMI devido pelas concessões das barragens. De novo, tem sido a sociedade civil, através do Movimento Cultural da Terra de Miranda, a liderar este combate, com apoio dos municípios beneficiários do IMI que nunca foi cobrado, e contra a cumplicidade permanente dos Governos e da Autoridade Tributária, sempre do lado da EDP.
A receita foi sempre a mesma: os agentes públicos que deviam zelar pelo interesse comum, no Governo ou na AT, eram os primeiros a expressar dúvidas sobre a legalidade de cobrar o imposto sobre imóveis aos imóveis nos quais a EDP sustenta a sua atividade de produção energética e boa parte dos seus lucros. Invocava-se a complexidade do problema e as intricâncias da lei. A EDP empatava – e empatar é ganhar. Finalmente, em 2023, o então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Nuno Félix, ordenou à Autoridade Tributária que avaliasse as barragens e cobrasse os impostos. Nem assim. A própria AT, sempre expedita com o pequeno contribuinte faltoso, continuou a arrastar os pés.
O novo Governo PSD/CDS tratou da coisa de forma muito portuguesa: nomeou uma comissão para estudar o assunto. A comissão publicou agora o seu relatório, em que sugere uma alteração legislativa para garantir que o IMI seja mesmo cobrado.
Uma derrota para a EDP? Pelo contrário: uma requintada vitória travestida de derrota. Como noticiou ontem o Jornal de Negócios, alterar a lei para mandar cobrar o IMI seria reconhecer que a lei atual não obriga ao seu pagamento – quando obriga! Seria dar cabo dos esforços, desde 2020, para arrecadar o bendito imposto, que qualquer outro cidadão paga sem reclamar, e seria deitar fora o que está por cobrar dos últimos quatro anos (tudo o que não foi pago antes disso já prescreveu). A comissão nomeada pelo Governo propõe, em suma, fazer a vontade à EDP, parecendo que está a derrotá-la. Mesmo perdendo, a EDP ganha.
Pior, alertou de novo o Movimento Cultural da Terra de Miranda, uma alteração legislativa não só limparia todo o IMI de anos anteriores, como daria argumentos para renegociar os contratos de concessão, a pretexto de que os novos encargos fiscais não estavam previstos. Significa isto que, mesmo quando começasse a ser pago, o imposto sobre os imóveis que rendem milhões à energética não seria pago pelo contribuinte EDP, mas por todos os outros contribuintes!
Há cinco anos que o Estado português não consegue cobrar os impostos que são devidos nas barragens. Quando se exige à Autoridade Tributária e a sucessivos Governos que defendam o interesse público, arranjam sempre forma de fazer as vontades ao grande lóbi. A soberania da EDP sobrepõe-se à do Estado, num país onde os concessionários exercem um domínio feudal sobre os servos da gleba. Domingo elegeremos um novo Parlamento e escolheremos um novo Governo. Mas continuaremos a baixar a cabeça a quem verdadeiramente manda neste país.
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