terça-feira, 20 de maio de 2025

Encontros Improváveis: Mia Couto e Domenico Bigordi

Domenico Bigordi ~ "Francesco Sassetti (1421–1490) and His Son Teodoro"

Aprender a sonhar
"Nasci e cresci numa casa onde vivia um poeta. Era o meu pai. Os meus amigos de infância diziam-me: o teu pai é estranho! 
Todos gostavam dele, era fácil gostar de uma pessoa simples, tão gentil, tão atenta aos outros. Mas achavam-no “estranho“. 
Na verdade, eu mesmo assim pensava. Porque ele perdia um tempo infinito olhando as aves brancas a sobrevoar o Chiveve.
O meu pai trazia livros e discos para casa como um contrabandista transporta as mais valiosas mercadorias. Meu pai era garimpeiro de belezas num mundo ocupado por assuntos de tempo e dinheiro.
Nos meus anos de escola primária eu ia ter com ele ao armazém dos Caminhos de Ferro onde trabalhava. A ideia era que ela me controlasse nos deveres da escola. Mas o meu pai tinha outras prioridades. Ele queria sair daquele lugar cinzento e levar-me ao longo das linhas férreas a catar pedrinhas douradas que tombavam dos comboios...
Nenhum dos trabalhos da escola me podia ensinar aquilo que o meu pai me revelava: a possibilidade de ficar encantado com pequenas inutilidades. Parafraseando um poeta brasileiro: os pequenos utensílios.
Era verdade sim: o meu pai era um homem “estranho”. Mas eu dou graças a esta estranheza. Mas dou graças a essa estranheza. Porque foi com ele que aprendemos a estar atentos às coisas que parecem não ter valor. Isso que ele nos ensinava era uma sensibilidade...
Meu pai mostrou-me outro saber, um outro prazer: o da busca pela intimidade dos seres e das coisas. Ela ganhou vida, ganhou encanto. E ganhou uma história pelo simples facto de a termos procurado. O mais triste é o mais órfão neste nosso mundo é aquele que não tem história.
Em nossa casa não vivia apenas um poeta. Vivia a própria poesia. 
E a poesia é outro modo de designar a Vida."

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