terça-feira, 7 de abril de 2020

Imaginar os gestos-barreiras contra o retorno da produção anterior à crise


Certamente, é um pouco inconveniente projetar-se no pós-crise agora que os agentes da saúde estão, como se costuma dizer, “à frente”, agora que milhares de pessoas perdem seus empregos e que muitas famílias sem consolo nem podem enterrar seus mortos. No entanto, é justamente agora que temos que lutar para que a retomada econômica, uma vez que a crise tenha passado, não traga de volta o mesmo antigo regime climático contra o qual tentávamos até este momento, em vão, lutar.

Efetivamente, a crise da saúde está inserida no que não é uma crise - sempre temporária -, mas, sim, uma mutação ecológica duradoura e irreversível. Se temos a oportunidade de “sair” da primeira, não temos sequer uma para “sair” da segunda. As duas situações não estão na mesma escala, mas é muito esclarecedor articular uma com a outra. De qualquer forma, seria uma pena não aproveitar a crise da saúde para descobrir outros meios de entrar na mutação ecológica de uma maneira diferente do que às cegas.

A primeira lição do coronavírus é também a mais impressionante: a prova está dada. De fato, é possível, em algumas semanas, suspender em qualquer lugar e simultaneamente um sistema econômico que até agora nos disseram que era impossível desacelerar ou redirecionar. Contra todos os argumentos dos ecologistas sobre a necessidade de mudar nossos modos de vida, sempre se opuseram os argumentos da força irreversível do “trem do progresso” que nada podia fazer para sair de seus trilhos, “devido”, nos diziam, “à globalização”. No entanto, é precisamente sua condição de globalizado que torna tão frágil este famoso desenvolvimento, capaz não apenas de parar, mas de parar por completo.

De fato, não contamos apenas com as multinacionais, os acordos comerciais, a internet ou os operadores turísticos para globalizar o planeta. Cada entidade desse mesmo planeta possui uma maneira exclusiva de reunir os outros elementos que compõem, em um dado momento, o coletivo. E isso pode ser visto com o CO2 que superaquece a atmosfera global em sua difusão pelo ar, nas aves migratórias que transportam as novas formas de gripe e, também, reaprendemos isso, dolorosamente, com o coronavírus, cuja capacidade para relacionar “todos os humanos” passa pela mediação aparentemente inofensiva de nossos múltiplos escarros. Para o globalizador, globalizador e meio, trata-se de ressocializar milhares de humanos, os micróbios já estavam aí.

Daí esta incrível descoberta: já havia no sistema econômico mundial, escondido de todos, um sinal de alarme em vermelho vivo, com um cabo grosso de aço temperado, que os chefes de Estado, cada um a seu turno, podiam disparar para deter “o trem do progresso” e ouvir ranger os freios. Se a demanda por mudar em 90 graus nosso rumo para aterrissar no solo parecia, ainda em janeiro, uma doce ilusão, tornou-se mais realista. Todo motorista sabe que, para ter a oportunidade de dar um grande giro salvador no volante, sem perder a direção, é preciso ter desacelerado um pouco antes...

Infelizmente, apenas os ambientalistas veem essa pausa repentina no sistema de produção globalizado como uma oportunidade formidável para avançar em seu programa de aterrissagem. Os globalizadores, aqueles que desde meados do século XX inventaram a ideia de escapar das obrigações planetárias, também veem uma oportunidade formidável de romper ainda mais radicalmente os obstáculos que restavam para a sua fuga do mundo. Para eles, a oportunidade de se livrar dos restos mortais do Estado provedor, da rede de segurança dos mais pobres, daqueles que ainda mantêm regulamentos contra a poluição e, mais cinicamente, de retirar do meio todas aquelas pessoas supranumerárias que estorvam no planeta é muito bonita.

Não se deve esquecer, de fato, que devemos sustentar a hipótese de que esses globalizadores estão cientes da mutação ecológica e que todos os seus esforços, durante cinquenta anos, foram para negar a importância da mudança climática, ao mesmo tempo em que escapam de suas consequências, construindo bastiões fortificados de privilégios que devem ser inacessíveis a todos que precisam. Não são ingênuos o suficiente para acreditar no grande sonho modernista da distribuição universal dos “frutos do progresso”, mas o que, sim, é novo é que são francos o suficiente para nem sequer dar essa impressão. São os mesmos que aparecem todos os dias na Fox News e que governam todos os Estados climacéticos do planeta: de Moscou a Brasília, de Nova Deli a Washington, passando por Londres.

O que torna a situação atual tão perigosa não são apenas as mortes que se acumulam, a cada dia que passa, mas a suspensão geral de um sistema econômico que dá, então, àqueles que desejam ir ainda mais longe, em sua fuga do mundo planetário, uma oportunidade maravilhosa para “questioná-lo todo”. É necessário não esquecer que o que torna os globalizadores perigosos é que compreenderam à força que perderam, que a negação da mutação climática não pode durar indefinidamente, que não há oportunidade de conciliar seu “desenvolvimento” com as diversas envolturas do planeta e que teriam que enquadrar a economia. É o que possuem preparado para tentar tudo para extrair, pela última vez, as condições que lhes permitirão durar um pouco mais e poder se proteger, eles e seus filhos. “A pausa do mundo”, esse golpe de freio, essa parada imprevista, lhes oferece uma oportunidade para fugir mais rápido e mais longe do que jamais teriam imaginado. Os revolucionários, de momento, são eles.

E é aqui onde devemos agir. Se a oportunidade aparece para eles, isso se abre para nós também. Se tudo estiver parado, tudo pode ser questionado, modificado, selecionado, classificado, interrompido para o bem ou, ao contrário, acelerado. O momento de fazer o inventário anual é agora. O pedido do senso comum: “Vamos reativar a produção o mais rápido possível”, tem que ser respondido com um grito: “Nem pensemos nisso!”. A última coisa que devemos fazer é retomar, da mesma maneira, tudo o que fazíamos antes.

Por exemplo, outro dia aparecia na televisão um florista holandês com lágrimas nos olhos, forçado a jogar fora toneladas de tulipas prontas que não podiam mais ser enviadas de avião para o mundo inteiro, devido à falta de clientes. Só podemos nos compadecer com ele, é claro, é justo que seja indenizado. Mas, em seguida, a câmera recuava mostrando suas tulipas. Faz com que cresçam sem solo, sob uma luz artificial antes de entregá-las aos aviões de carga do Schiphol, envolvidos em uma chuva de querosene. Então, surge a pergunta: “É útil prolongar esse modo de produzir e vender tais tipos de flores?”.

Uma coisa nos leva a outra. Se começarmos, cada um por nossa conta, a fazer esse tipo de pergunta sobre todos os aspectos do nosso sistema de produção, nos tornaremos efetivos ‘interruptores da globalização’, tão eficazes, os milhões que somos, como o famoso coronavírus nessa maneira tão sua de globalizar o planeta. O que o vírus obtém com a humilde cuspidela de boca em boca - a suspensão da economia mundial -, começaremos a imaginar através de pequenos gestos insignificantes, os nossos também, um após o outro, ou seja, a suspensão do sistema de produção. Ao nos fazer esse tipo de pergunta, cada um de nós se coloca a imaginar ‘gestos-barreiras’ não apenas contra o vírus, mas, acima de tudo, contra cada elemento de um modo de produção do qual não desejamos o retorno.

Não se trata mais de retomar ou modificar um sistema de produção, mas de sair da produção como o princípio único de relação com o mundo. Não se trata de uma revolução, mas de uma dissolução, pixel a pixel. Como demonstra Pierre Charbonnier, após cem anos de socialismo limitado apenas à redistribuição dos benefícios da economia, talvez seja o momento de inventar um socialismo que discuta a produção em si mesma. É que a injustiça não se limita apenas à redistribuição dos frutos do progresso, mas à própria maneira de tornar o planeta frutífero. Isso não quer dizer decrescer ou viver de amor e água fresca, mas aprender a selecionar cada segmento desse sistema supostamente irreversível, colocar em questão cada uma das conexões que se diziam indispensáveis e demonstrar, passo a passo, aquilo que é desejável e o que deixou de ser.

Surge disto a importância capital de usar esse tempo de confinamento imposto para descrever, primeiro cada um por conta própria, depois em grupo, aquilo a que estamos vinculados, aquilo a que estamos prontos para nos libertar, as cadeias que estamos preparados para reconstituir e aquelas que, pelo nosso comportamento, estamos decididos a interromper.

Os globalizadores, por sua parte, parecem ter uma ideia muito precisa do que querem ver renascer, após a retomada: o mesmo, mas pior, indústrias de petróleo e cruzeiros gigantes subsidiados. Está em nossas mãos opor um contrainventário. Se em um mês ou dois, biliões de humanos são capazes, ao som de um apito, tornar seu o slogan “distância social”, de se afastarem para ser mais solidários, de ficarem em casa para não saturarem os hospitais, podemos imaginar o poder transformador desses novos gestos-barreiras revestidos contra a retomada idêntica ou, o que seria pior, contra um novo flagelo daqueles que querem escapar para sempre da atração terrestre.

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