terça-feira, 7 de abril de 2015

Como se vive numa comunidade sustentável [Reportagem e entrevistas]

Há muitos anos, quando uma das minhas irmãs me explicou o melhor caminho para chegar à loja que a Biocoop abrira junto do aeroporto de Figo Maduro, às portas de Lisboa, comentou: "Tem fruta e legumes ótimos, todos os produtos biológicos e pão de cair." Depois, acrescentou: "Mas prepara-te para um ambiente surreal, com toda a gente muito feliz e sorridente. Andas ali a empurrar o carrinho de compras, sem querer dás um encontrão em alguém e 'Não faz mal!', sorriem-te de volta." Nesse sábado, constatei que a sua descrição não podia ser mais exata. Lembro-me de que escolhi uns espinafres de folhas tenras, um pão de espelta bem cozido e fiz-me sócia da cooperativa de consumidores. Não dei encontrões com o carrinho, e, à saída, fiquei a ver uma demonstração com um forno solar.

Oito ou nove anos depois, volto a ter essa sensação estranha de estar no meio de gente feliz. Entramos numa acolhedora casa de xisto recuperada, em plena Paisagem Protegida da Serra do Açor, a uma hora de carro de Coimbra, cumprimentamos alguns dos residentes da comunidade Projeto Vida Desperta (Awakened Life Project, em inglês), e, zás!, lá surgem os sorrisos indiscriminados.

É verdade que está uma rara manhã de sol, a salamandra foi alimentada há pouco e interrompemos uma reunião ao estilo de tempestade de ideias, por causa do documentário EvoLusa: A Alma Portuguesa e o Futuro que o inglês Pete Bampton, 49 anos, e os membros da sua comunidade andam a filmar pelo País.

Mas isso não chega para explicar tanta felicidade, pois não? Tínhamos acabado de pôr um pé na Quinta da Mizarela, em tempos um lugar com meia dúzia de vizinhos, encavalitado numa encosta, de frente para um ribeiro e a uma curta caminhada das cascatas da Fraga da Pena, e já queríamos conhecer O Segredo.

Meditar ao nascer do dia

Antes de ajudar a descodificar aquilo que nos trouxera ali, Pete mostra-nos a propriedade que comprou há seis anos com a mulher, a americana Cynthia. O "monte de xisto e silvas" é hoje meia dúzia de casas com espaço para quartos, escritório, oficina, sala de meditação. Cá fora, há retretes secas ("Banco de Mizarela, connosco o seu depósito fica seguro", lê-se numa delas, em inglês), hortas em socalcos e pastagem boa para dois burros.

O casal de proprietários tem andado a plantar carvalhos e castanhos, tentando evitar a invasão dos pinheiros. Estamos no sítio ideal para meditar, diz Pete, contando que, há muitos anos, um padre chegou a pé de Coimbra e deixou-se ficar até morrer.

A história serve para nos lembrar que a meditação é fundamental neste projeto. Todos os dias, os dez membros da comunidade meditam pelo menos durante duas horas, uma ao nascer do Sol, outra ao anoitecer. "Juntos, encontramos a paz interior e a união", explica Pete, com a sua voz macia, sentado num dos sofás da casa que partilha com a mulher.

O vento faz arrulhar o lume, o inglês tem gestos suaves e nunca desvia os olhos azuis.

Para contar como aqui chegou, alude a experiências passadas em comunidades nos Estados Unidos e em Londres, catorze anos de tirocínio entre o seu "despertar espiritual" num mosteiro budista tailandês e uma breve passagem por Ibiza. A maioria do tempo viveu num grupo liderado pelo americano Andrew Cohen , que agora se chama EnlightenNext , do qual diz ter saído sobretudo por estar ilegal no País. Vários ex-discípulos descrevem o guru como abusivo em termos psicológicos e físicos, e manipulador (incluindo financeiramente). A própria mãe, Luna Tarlo, lamentou, no livro The Mother of God (a mãe de Deus), que o filho se tenha tornado um tirano. Mas Pete nunca cortou laços com o seu mestre; e, há um ano, por ocasião do lançamento da tradução para português de uma das obras de Cohen, recebeu-o efusivamente na Mizarela.


Mudar tudo para mudar alguma coisa

A sua teoria de criação de um novo mundo é, aliás, muito semelhante à da Iluminação Evolucionária proposta por Andrew Cohen: ambas preconizam a transcendência do ego, a bem da evolução da consciência e da união com tudo e todos os que nos rodeiam. "A crise que atravessamos", defende o inglês, "não é financeira nem ecológica; é de consciência.

O individualismo pode acabar connosco." A Mizarela surge como uma espécie de laboratório, um lugar onde se experimenta essa transcendência do ego e onde se ensina a alcançá-la. Além de ir dando palestras pelo País, Pete orienta cursos de evolução da consciência, retiros de meditação (o próximo será na Páscoa) e workshops de permacultura , técnica de agricultura cuja ética assenta em cuidar da terra e das pessoas e na troca justa. E aproveita para lembrar que não é preciso viver numa comunidade para fazer parte do projeto. Ele e a mulher lideram grupos de reflexão de homens e de mulheres; têm perto de sessenta membros.

Quando tomou contacto com esta comunidade através de um dos seus grupos de mulheres, Sara Rocha, 26 anos, mestranda em Serviço Social, já pertencia à associação Coimbra em Transição .

O movimento de transição surgiu na Irlanda mas espalhou-se rapidamente pelo mundo, Portugal incluído. O seu principal objetivo é conseguir que as cidades se tornem sustentáveis: menos dependentes do petróleo e mais ligadas à natureza.

Em Coimbra, Sara sente que também está a ajudar a construir uma nova comunidade urbana e não se imagina a integrar a tempo inteiro um projeto como o Vida Desperta.

"Neste momento da nossa história, temos de viver de uma forma mais mimética da natureza, mas não concordo com a ideia radical de que é preciso mudar tudo para mudar alguma coisa..." Não deixa, no entanto, de se empenhar no documentário EvoLusa.

Tricô na caravana

Alguém já tocara a sineta para o almoço quando regressámos à big house, a casa comum onde os outros nos esperam pacientemente. Duarte Gonçalves preparou pratos à base de frutos e legumes crus e uma salada de plantas colhidas na quinta as mais saborosas são as que têm os nomes mais engraçados: umbigo de Vénus e orelha de toupeira.

Em abril de 2012, o madeirense, de 30 anos, chegou à Mizarela para duas semanas como trabalhador voluntário nas hortas. Saíra da Ribeira Brava quatro anos antes e andava pela Europa a trabalhar em restaurantes e quintas de agricultura biológica. "Fixar-me era a última coisa que pensava fazer", conta. A comunidade tornou-se a sua família e hoje vê a permanência no projeto como uma missão.

"Sinto-me feliz por poder ajudar a que as coisas avancem no País, por dar as minhas mãos para algo maior", diz, com uma certa candura. Uma vez por mês, Duarte sai uns dias da serra do Açor para organizar oficinas de cruzinha, em que ensina a fazer bolos crus e outras delícias, e junta dinheiro para pagar a estada na comunidade.

Quando não chove, encontramos nas hortas Raquel Perdigão, 35 anos, que no final de dezembro trocou um emprego de educadora ambiental no Porto pela perspectiva de passar os próximos quatro anos como voluntária nesta comunidade. A primeira abordagem foi pela permacultura, mas rapidamente se rendeu à teoria da evolução do ego e à ideia de participar na criação de um novo mundo. "É isso que me move", diz, de sorriso aberto, antes de subir a rampa até à caravana onde pernoita. Nos tempos mais próximos, Raquel conta começar a dar aulas de ioga a crianças e bebés.

Miguel é um sério candidato a essas aulas. Com 1 ano e meio, não sabe que foi o principal responsável pela decisão tomada pelos pais de sair do Porto, construir uma casa na serra do Açor e abrir um jardim de infância que segue a pedagogia Waldorf. Ricardo Gonçalves, agora com 36 anos, já andava à procura de um caminho espiritual quando conheceu o projeto de Pete e Cynthia, em 2011. Mas foi preciso ser pai pela primeira vez para "ganhar coragem", diz, e despedir-se do seu trabalho de geneticista. Ele e a mulher, Teresa, decidiram que o filho havia de crescer em comunidade, no meio da natureza e estudando segundo um método alternativo. "Não queremos que seja formatado como nós fomos", justifica Ricardo, em voz baixa para não acordar o filho que adormeceu ao seu colo.

Os três moram fora da Mizarela, mas suficientemente próximo para fazerem parte. E vivem ao lado de um casal de amigos com uma criança porque quiseram pertencer a uma "rede" de gente que pensa e age como eles, que os apoia no caminho escolhido.

Foi pela mesma razão que, em abril de 2012, Cláudia de Jesus, 36 anos, se mudou, com o marido e o filho, de Alfragide para Santa Cruz, na região de Torres Vedras. Aí, esta licenciada em marketing encontrou um grupo de mães como ela, que procuram um modo de vida saudável para si e para a família, mais próximo da natureza.

Encontramo-la com duas outras mães e filhos no parque infantil junto ao jardim de infância do Vimeiro. Agora que Henrique já está quase com 4 anos e a poucos meses de ter um irmão, Cláudia diminuiu a militância na rede de ensino doméstico. Anima-a o projeto de ajudar a dinamizar a criação de uma escola Waldorf ali perto, em Penafirme .

Cheira a scones acabados de fazer pelos meninos quando Susie, 41 anos, que se licenciou em Engenharia em Lisboa mas regressou à Maceira e está a formar-se em pedagogia Waldorf, a põe a par dos últimos avanços. "Há vários pais interessados. Aqui na 'aldeia' é mais fácil passar palavra."

Um músico em Sintra

A morar na Lourinhã há dois anos e meio, Anabela Rebelo está na fila para a nova escola. A também engenheira engravidara de Luca e deixara de trabalhar para cuidar da filha mais velha, Rita, quando se declarou farta de Lisboa, diz ela que "o pior sítio para ser mãe a tempo inteiro". Com o marido, Nuno, arquiteto, ainda experimentou mudar-se para Santo Estêvão (Benavente), mas o facto de ele ter família nesta região decidiu-os. "Aqui, estamos a cinco minutos de todo o lado.

E apoiamo-nos mutuamente", aprendeu Anabela. "Ainda há bocado, ficaram-me com a Rita até ela ir para a aula de música." Não nos surpreendemos quando Anabela conta onde conheceu Nuno: num curso de permacultura. Também não nos espantamos quando a ouvimos dizer que, se um dia concluírem que a Lourinhã já não está "a bombar", poderão mudar-se para uma comunidade. Na manhã desse dia tínhamos entrevistado Pedro Valdjiu, da banda Blasted Mechanism, e as palavras transição, permacultura, Waldorf e comunidade ecoaram junto da igreja com vista para o mar da Ulgueira, perto de Colares.

Não foi por acaso que o músico se mudou para a zona de Sintra, onde acredita existir todo um tecido interessado em viver de uma forma mais harmoniosa. "Quando queres ir numa direção, mesmo que vás à frente, a abrir caminho, é muito importante a sustentação de uma comunidade", lembra.

Tínhamos-lhe lançado a escada para conhecermos a Quinta da Terra Alta que partilha com a mulher, Rita, as duas filhas, Jasmim e Zoe, e dois amigos, uma microcomunidade que na primavera e no verão se alarga durante os workshops de permacultura. Nesta altura do ano seria "demasiado invasivo", argumenta Valdjiu, sugerindo um terreno neutro para a entrevista em que aparece com Doug Crouch , um americano que lhe deu as primeiras bases para lidar com a terra.

Sair da caixa

Sem tiques de estrela, o músico não se irrita quando lhe perguntamos como é que um "menino da Linha" (cresceu em Carcavelos) evoluiu para um ativista do movimento de transição. "A verdade é que fiz um grande esforço para sair da caixa onde a sociedade estava a querer meter-me", diz. "Sentia um constante mal-estar em relação ao que me ro deava, às estruturas pouco amorosas." Quando afirma: "Para que se possa criar um novo modelo para esta sociedade, a mudança tem de vir de dentro, a transição é interior", adivinha-se, com facilidade, que o Projeto Vida Desperta é uma das suas referências.

Valdjiu conta que um dos seus despertares aconteceu quando foi pai pela primeira vez, em 2001. Tinha 27 anos e não quis passar aos filhos os padrões que já não lhe serviam.

Daí a ter ajudado a criar a Escola da Terra , em Almoçageme, e o jardim de infância Pé de Romã , na Várzea de Sintra, foi um ai. Mas a epifania da sua vida só aconteceu sete anos depois, ao conhecer uns "artistas" da permacultura.

Comprou um terreno, rapidamente percebeu que não sabia o que fazer com ele e quis aprender todos os segredos da retenção de água com o austríaco Sepp Holzer, em Tamera , a primeira ecoaldeia portuguesa, fundada, há quase vinte anos, pela teóloga Sabine Lichtenfels e o sociólogo Dieter Duhm, ambos alemães, onde se experimenta um novo modelo de sociedade (por coincidência, no concelho de Odemira, perto do local onde o anarquista António Gonçalves Correia criou a efémera Comuna da Luz, em 1917).

Foi, aliás, em Tamera que Valdjiu e Doug se conheceram. O americano viajara até Portugal com a intenção de trabalhar com portugueses; estivera a dar um curso gratuito de permacultura em Auroville, uma conhecida comunidade fundada na Índia (ver caixa), e ficara "intrigado" com uns voluntários lusofranceses. Desde 2009, Doug vem a Portugal uma ou duas vezes por ano.

Como forasteiro interessado naquilo que aqui se passa, Doug olha a crise como algo de "bom", que está a levar as pessoas a perceberem que têm de adotar um estilo de vida mais de acordo com a natureza. E apresenta soluções: "O Governo português devia encorajar 'trabalhos verdes'. Há dois milhões de hectares abandonados e tanta gente interessada em cultivá-los..."

O exemplo de Auroville

Em 1968, depois de conhecer o mestre Sri Aurobindo, a francesa Mirra Alfassa criou uma comunidade que atraiu, sobretudo, franceses. Hoje, também ali vivem muitos indianos, perto de Pondicherry, no Sul da Índia.
"Não são só europeus frustrados pelo nosso estilo de vida; é francamente mais do que isso", diz José Eduardo Reis, professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, que há três anos, durante uma visita à Índia, passou três semanas em Auroville .
O académico considera-a "uma experiência concreta que enuncia possibilidades futuras". O aspeto mais positivo, salienta, é o facto de os membros transmitirem às comunidades locais o que sabem sobre retenção de água e técnicas de construção.

Numa curva ao pé da Serra

Combináramos ir a Tamera no domingo seguinte.

Mas quando deixamos para trás as casas brancas da Ulgueira e passamos pelo Pé da Serra, vemos um homem, uns molhos de legumes em cima de uma mesa desmontável e um bebé num caixote, e arriscamos que temos ali mais uma hipótese de reportagem.

Desde os dois meses que Samuel acompanha o pai na horta que ele cultiva ali atrás, num terreno meio inclinado. O terreno pertence aos donos da quinta ao lado que também o deixam ter criação num pequeno galinheiro. António Soares nasceu em Marco de Canaveses, tem 51 anos e dois dias por semana trabalha numa padaria na Praia das Maçãs, onde mora com a mulher e o filho. Há três anos estava no Norte, há dois em Lisboa.

Nélia, a mulher, dizia que nunca sairia da zona do Castelo. Mudou de ideias quando engravidou (queria ser mãe num lugar tranquilo e saudável) e António, deliciado com o regresso à terra, confessa: "Se soubesse o que sei hoje, tinha vindo para Sintra há trinta anos!" Em Lisboa, Nélia trabalhava na cozinha do restaurante Buenos Aires e António dava aulas de ioga e ajudava as crianças da escola Verdes Anos a cuidarem da horta biológica.

Conta isto enquanto ata um molho de agriões que hão de dar um belo travo amargo à salada dessa noite. Samuel, sossegado até exigir um biberão, entretém-se com os seus brinquedos. E o pai continua a contar como foi mergulhador da Marinha, cozinhou num restaurante vegetariano, ensinou karaté a miúdos problemáticos e viajou pelo mundo.

Agora, além da horta e da padaria, dá uma ajuda numa quinta e faz artesanato em bambu.

A Sintra, António vê chegar "jovens à deriva " e não estranha que assim seja. "Há palavras que hoje deviam ser banidas do dicionário, como 'emprego' ou 'subsídio de Natal'", ironiza. "Temos de inventar outras formas de viver." Se calhar, põe a hipótese, vamos voltar aos tempos em que quase não havia dinheiro no dia a dia. "Não é impossível", diz. "Ainda há 25 anos, arrendei uma quintinha no Norte por quatro carros de milho."

Criar laços em Tamera

Confiança. Se só pudéssemos escolher uma palavra para definir Tamera seria confiança.

Uma segunda palavra poderia ser água, porque a imagem mais conhecida desta ecoaldeia devolve-nos dois lagos rodeados de verde, longe do arquétipo da paisagem alentejana de um sobreiro num terreno árido. Mas comecemos pela confiança, que serve de base à comunidade idealizada por um grupo de "pioneiros" vindos da Alemanha nos anos 90, que hoje dão conselhos aos 150 residentes do Monte do Cerro, uma propriedade com 164 hectares a minutos da pacata aldeia de Relíquias. Tamera é a única comunidade intencional com dimensão no nosso país, já ensinara a especialista em utopia Fátima Vieira (ver entrevista). Tem um objetivo: criar um modelo para a paz.
ENTREVISTA: 'Nem parece a nossa sociedade!'
Fátima Vieira, especialista em utopias
Do que falamos quando falamos na criação de modelos alternativos de sociedade?
Temos em mente duas formas de atuação: as experiências isoladas, que poderão ser replicadas quando bem sucedidas (no nosso país, Tamera é o exemplo mais significativo); e as experiências integradas, ou seja, criação de espaços marginais dentro das comunidades já existentes.
Existe lugar para isso em Portugal?
Há um ano e meio, fiz um inquérito em que, entre outras coisas, perguntava às pessoas se seriam atraídas pelo desafio de participarem numa comunidade como a de Owenstown , que tem como objetivo contribuir para a construção de uma nova ordem social, baseada numa cultura cooperativa. Fiquei muito surpreendida porque 64% responderam que sim. Pensei: "Nem parece a nossa sociedade!"
A crise poderá ter alguma coisa a ver com essa resposta?
Acredito que sim, que é uma reação séria ao momento difícil que vivemos em Portugal. As pessoas estão mais abertas ao discurso utópico porque se sentem insatisfeitas com a situação social, política e económica.
Fazemos pontaria para ir ao Alentejo em mais um raro dia sem chuva porque queremos ver a Aldeia Solar e a paisagem de retenção aquática idealizada por Sepp Holzer sem andarmos a chapinhar na lama. São dez e meia de um domingo quando entramos num pavilhão revestido a madeira onde se entoa uma canção com reminiscências de África. Tento camuflar-me entre uma centena de alemães (só há seis portugueses residentes) enquanto o José Carlos Carvalho fotografa o final do encontro que acontece todos os domingos de manhã. Isabel Rosa, 45 anos, a ex-publicitária responsável pelo escritório português da comunidade, estende-me uns auscultadores para que possa ouvir a agenda da semana em inglês, mas não consigo prestar atenção. Uma vez mais, há demasiados sorrisos a distrair-me.

Vai ser preciso sentarmo-nos na esplanada junto à livraria-café, com o alemão Martin Winiecki, 22 anos, que dirige a área do ativismo jovem, para percebermos porque somos bem-vindos em Tamera. Embora esta seja a época do ano em que a comunidade está fechada (de setembro a abril não há seminários nem "dias abertos"), é grande a vontade de passar a mensagem. Além da necessidade de financiamento, sobretudo para a investigação na área da energia solar, os seus líderes querem criar mais laços com a sociedade civil portuguesa. Interessa-lhes transformar o Alentejo numa região atrativa para os jovens, apoiando, nomeadamente, uma rede de produtores locais. E estão em contacto com vários grupos e movimentos "porque", lembra Martin, "criar modelos para uma nova sociedade nunca pode acontecer num sítio isolado, numa ilha".

Uma das associações que têm estado em contacto com Tamera é a Academia Cidadã , lançada pelas pessoas que organizaram o Protesto da Geração à Rasca , em 2011. Através do seu Laboratório-Vivo da Sustentabilidade, a associação vai organizar um curso em que cada módulo será dado numa ecoaldeia diferente: em Tamera, por exemplo, ensinar-se-á desenho da paisagem. "As pessoas despertaram para a possibilidade de viverem de forma sustentável", nota João Labrincha, 30 anos, um dos membros mais conhecidos da Academia. "Quando há uns anos se falava em energia solar, por exemplo, havia a perceção de que era coisa de freaks. E agora cada vez mais gente tem painéis solares."

O Sol é de todos
Martin chegou sozinho a Portugal aos 16 anos; desde os 14 que participava em movimentos anticapitalistas. Na Alemanha, a obra de Dieter Duhm, 71 anos, sociólogo e ideólogo do Maio de 68, é muito conhecida.

"A revolução sem emancipação é contrarrevolução" era o seu lema. Ou seja, se não mudarmos o homem interiormente não conseguimos mudar a sociedade. Mais tarde, Dieter reformulou a sua teoria e avançou com a criação de um modelo de pequenas comunidades, baseadas na confiança entre todos os seres, para alcançarem a paz. "Não precisamos de mobilizar milhões de pessoas", nota Martin, de olhos semicerrados por causa do sol. "Um protótipo pode ser replicado e ter impacto no planeta inteiro.

É importante termos o mundo como objetivo porque estamos num beco sem saída." Essencial em Tamera é trabalhar na utopia de que tudo o que existe no planeta ser gratuito para todos a água, a energia, os alimentos. Daí ali serem tão importantes a retenção da água e a investigação no campo da produção de energia solar e de biogás.

Na ausência de Jürgen Kleinwächter, o físico alemão responsável pelos dispositivos mais inovadores, cabe a Barbara Kovats, 56 anos, uma das "pioneiras" do projeto, receber-nos na Aldeia Solar, uma zona que tem uma cozinha solar e uma estufa com um sistema de armazenamento de energia.

A primeira coisa que faz é colocar um pouco de água no fundo de uma panela e demonstrar como um espelho de foco único a aquece em poucos segundos.

Barbara traz ao peito um alfinete de prata com um círculo e três pauzinhos virados para o centro. Simbolizam a unidade em Tamera, explica: "Dois é muito linear, três é aberto." Se queremos fazer um modelo para a paz, primeiro temos de saber como as pessoas conseguem viver juntas, "porque o que acontece em grande escala acontece a dois indivíduos".

Troca de sementes
Nem toda a gente estará preparada para viver em comunidade. Por isso, em Tamera os "candidatos" têm de passar por três anos de cursos e seminários até a sua entrada ser aceite pelos restantes membros. E a estada implica custos, naturalmente. Isabel Rosa, por exemplo, paga-a a trabalhar no escritório português. Tem a sorte de a sua função ser considerada crucial, concluíramos ao ouvir a fundadora Sabine Lichtenfels: "Queremos mostrar que não estamos fechados."

Com a vizinhança dão-se bem. E não é de hoje, dissera-nos nessa tarde o alemão Marcus Dittrich, 29 anos, no final da visita pela propriedade que terminou na zona das hortas, entre couves, apontando o sr. Lourenço como exemplo. Apanhamo-lo com Pancho, um dos pioneiros de Tamera e grande conhecedor de cogumelos, os dois à conversa no pequeno barracão que alberga a burra Bonita.

Lourenço da Costa Pinela nasceu há 74 anos no Monte do Cerro, onde regressa todos os dias para cultivar um pedaço de terra, trocar sementes e conhecimentos. "Tenho aqui tomate, melancia, vagens... O costume", diz, antes de se sentar na sua Zundapp para fazer a viagem de cinco minutos até Relíquias, a aldeia mais próxima. Na memória há de ficar-nos mais um sorriso.

Fonte: Visão

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