terça-feira, 16 de março de 2021

Documentário: Ocupação, SA- legendado em Português


Uma história de traição, roubo e resistência. É assim que a jornalista brasileira Laura Daudén, argumentista e uma das realizadoras do documentário Ocupação S.A, se refere ao Sahara Ocidental.

O território, no Norte da África, é a última colónia africana, segundo o Comité Especial de Descolonização das Nações Unidas. Depois de quase cem anos de dominação espanhola, desde 1976 a luta é contra uma ocupação ilegal protagonizada pelo país vizinho, o Reino de Marrocos.

Gravado no segundo semestre de 2020 e lançado em dezembro, o filme de Daudén e Sebastián Ruiz Cabrera explica em detalhe como as riquezas do Sahara Ocidental têm vindo a ser roubadas, sob o patrocínio de empresas multinacionais – que financiam a ocupação ilegal e beneficiam dela.

Muitas dessas empresas estão sediadas na Espanha, onde vive Daudén. A partir de sua casa, ela concedeu esta entrevista ao Brasil de Fato e ressaltou a relevância do tema.

Traição
A jornalista brasileira afirma que, para compreender a luta dos saaráuis – povo do Sahara Ocidental –, é preciso recordar o papel da Espanha durante e após a colonização.

“Primeiro, essa é uma história de traição, em que uma ex-metrópole entrega a sua colónia para outros dois países [Marrocos e Mauritânia] de maneira absolutamente ilegal e à revelia dos direitos humanos”, lembra.

Quando deixou de ser metrópole, a Espanha comprometeu-se com o processo de auto-determinação dos saaráuis, que se deveria concretizar com um plebiscito mediado pelas Nações Unidas. Até hoje, esse plebiscito nunca ocorreu, e as empresas espanholas continuam a tirar proveito das riquezas do Sahara.

Roubo
Com uma população de aproximadamente 650 mil pessoas, o Sahara Ocidental é rico em fosfato e possui uma das zonas de pesca mais abundantes do planeta. Mas o espólio não se limita a esses recursos: até a areia da praia de Mogán, nas Ilhas Canárias, na Espanha, foi roubada do Sahara.

“Hoje, o que se vê é uma proliferação de empresas internacionais, espanholas, europeias, americanas, de todas as partes”, diz Daudén. “Então, o poder económico capitalista faz as vezes de diplomacia e serve como reforço dessa ocupação", aponta.

Para além dos recursos extraídos sem qualquer compensação, o filme chama atenção para os investimentos internacionais na área ocupada ilegalmente.

A aliança entre o setor privado e o setor público espanhóis, como forma de driblar bloqueios e restrições, fica clara ao longo dos 40 minutos de Ocupação S.A. “A gente imaginava que encontraria esses laços [na produção do filme], mas não em tal nível”, admite a jornalista.

Daudén traça um paralelo “absurdo” com a realidade brasileira, para demonstrar o que está em jogo para os saaráuis.

“É como se o Brasil invadisse e roubasse parte do território argentino, e de repente começasse a colocar fábricas ali, a tirar o que está debaixo da terra, sem nenhum tipo de compensação”, ilustra.

“Não há nada na história, em documentos, decisões internacionais, que permita a Marrocos utilizar desses recursos naturais. É uma ocupação absolutamente ilegal. Todas as decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia reafirmam que o Sahara Ocidental não faz parte do Marrocos e qualquer atividade de exploração económica atropela o direito internacional”, completa a jornalista.

Depois de reunir as informações, a produção do filme entrou em contacto com as empresas que financiam a ocupação ilegal e se beneficiam dos recursos roubados. Daudén aponta que houve dois tipos de respostas.

“Certas empresas falavam que não tinham negócios no Sahara Ocidental. Foi o caso, por exemplo, do fundo Alantra, que é dono da Unión Martín, uma das empresas que rouba peixe”, descreve. “Ou seja, o capitalismo está tão verticalizado, com todo o processo de fusões e aquisições, que eles não tinham ideia do que estávamos a dizer”.

“Por outro lado, tínhamos empresas mais preparadas”, acrescenta a jornalista. “Foi o caso da Siemens Gamesa e da Cepsa, que dizem ‘estamos lá, sim, e não há problema’.”

Resistência
Desde 1973, a resistência saaráui é protagonizada pelo movimento de libertação Frente Polisário.

Após 29 anos de cessar-fogo com Marrocos, o movimento declarou o recomeço da guerra em novembro de 2020, após ataques a civis saaráuis que protestavam pacificamente em uma área conhecida como Gurguerat – uma fenda no deserto por onde passam os recursos roubados.

“É impressionante como eles conseguem tornar a esperança um verbo, como disse o Paulo Freire”, enaltece Daudén.

“Depois de tantos anos, eles conseguirem manter um movimento unido, forte, e uma organização coerente com a Constituição da República Árabe Saaráui Democrática até hoje, na região mais inóspita do deserto da Sahara, é um dos exemplos mais notáveis de luta e construção política que eu conheci”, finaliza.

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