terça-feira, 16 de março de 2021

A força de um hábito, estranha forma de vida

Há tanta coisa para dizer sobre esta pandemia e os enigmas políticos, económicos, ambientais, filosóficos que ela arrasta mas hoje quero falar-vos do perigo do hábito. Estamos feitos.


Conta-se uma história na Serra do Caldeirão de um espanhol que comprou um burro mas que não podia, nem queria, ter muita despesa com ele. Apercebeu-se que quanto mais comida lhe dava mais ele queria comer e também do seu inverso. Assim decidiu reduzir a quantidade de feno e chegou ao ponto em que o submeteu ao jejum. O burro terá vivido uma semana sem comer e acabou por morrer. As histórias que se contam na serra são um bocado cruéis e esta não será verdadeira. Não há notícias de espanhóis por lá e a escolha de um protagonista espanhol não parece inocente. Adiante. O homem ficou triste com a perda do burro mas ficou sobretudo revoltado por o animal ter morrido quando finalmente estava habituado a não comer. A miséria era muita e não só a económica e, sendo ou não uma história verdadeira, fica sempre aqui demonstrada. Quem a inventou não o teria feito na abundância, quem a foi repetindo também não.

Estamos privados de quase tudo o que caracteriza a vida tal qual a conhecemos e direi que estranhamente habituados. Há saudades mas o hábito instalou-se; o das máscaras, o do distanciamento físico, da permanência em casa, das reuniões online, do próprio isolamento, dos horários e o de várias limitações severas das liberdades. Este é um facto. Se foi ou não absolutamente necessário fazer tudo o que foi feito é um aspecto que poucas pessoas terão efectivas possibilidades de avaliar. Fui a favor do primeiro confinamento e fui também a favor do segundo, serei a favor de um terceiro se novamente se concluir que a situação está descontrolada ou em vias de estar. A ideia da fragilidade dos mais velhos é insuportável. Sou a favor por, na dúvida (e só é possível ter dúvidas), confiar no que dizem os cientistas e os governos e por privilegiar a saúde pública. Não se deverá ter a pretensão de perceber mais disto do que aquilo que se percebe, e que normalmente é pouco, e do que aquilo que parece ser unânime a um nível global.

Tenho algumas reservas relativamente a muitas das limitações que foram impostas como horários para comprar álcool ou a proibição de aquisição de quaisquer líquidos no espaço público. Sei que seria inevitável que algumas restrições padecessem de falta de lógica. Foi tudo muito novo. Claro que alguns terão escolhido o que achavam que não fazia sentido e criaram a sua própria transgressão que podia passar por uma combinação com o café do bairro para ter efetivamente um café embrulhado num saco de papel ou outra coisa qualquer. Há quem não tenha transgredido de todo. E há quem tenha uma posição de grande crítica relativamente a quem não cumpriu alguma das regras. Há também quem tenha mudado de ideias e de postura. É verdade que muitos portugueses gostam de obedecer desde que possam dar uma facadinha na regra. Diria que se devem tentar respeitar todas as posições que reflitam algum compromisso com a razoabilidade. O radicalismo é fundamental mas, caramba, aqui é ser radical no desconhecido e pode também implicar ser radical no moralismo, o que nunca deu sorte a ninguém. O compromisso com a razoabilidade deverá excluir exemplos como os do “Lapo”. Tinha que ficar dito.

Temos entre nós negacionistas da pandemia. Normalmente trazem consigo um discurso ignorante associado ao populismo do anti-sistema ou às mais diversas conspirações. Não há assim tanto a dizer sobre isto. É que não há como negar a existência de uma pandemia que matou milhares de pessoas. Existe um vírus e é cada vez mais provável que as condicionantes decorrentes da sua existência nos acompanhem nos próximos tempos. É sempre difícil quando a um advogado alguém pergunta: “Quanto tempo vai demorar até termos uma decisão?” A resposta comporta sempre uma margem de imprecisão suficiente para não se arriscar a indicação de uma data. Vejo o mesmo aqui. Temos vacinas de um lado e o aparecimento de novas estirpes do outro mas, neste caso, a tradicional má distribuição das primeiras poderá potenciar as segundas. Não há fim à vista. Teremos fases melhores e fases piores mas isto exige que seja encarada, e o mais rapidamente possível, a profundidade da mudança.

Sucede que a aversão generalizada ao negacionismo, o ambiente de medo e a possibilidade de uma vida através dos meios digitais, têm levado a uma postura acrítica, até indiferente, relativamente ao significado deste estágio que estamos todos a fazer para um modo novo de estar na vida. A este propósito recomendo a leitura da entrevista de Boaventura Sousa Santos à Sapo 24.

Grande parte da população mundial vive uma vida em que abdicou de muito em nome do bem colectivo. O princípio está correcto. O ponto a que chegámos é que já deve suscitar reflexão. Esta é uma afirmação muito sensível. Tem em si vários perigos: o de ser confundida com a defesa das liberdades individuais e económicas numa lógica em que, com todo o respeito, não me incluo, o de ferir a susceptibilidade de quem tem travado a tal batalha na “linha da frente” ou de quem viveu processos de perda relacionados com a covid. São apenas exemplos, há mais perigos. Espero que não seja o caso.

A reflexão deve mesmo ser feita. É uma nova forma de vida que está em causa e numa escala absolutamente global. Tornámo-nos pessoas diferentes e este processo, que pode parecer individual, é transversal e colectivo. Passou um ano. Que pessoas seremos se passarmos mais dois anos assim? Quais os efeitos que este isolamento físico terá nos adultos? E nos adolescentes? Que oportunidade está aqui criada para a prepotência de Estados sobre os cidadãos ou, pior, para o acentuar da prepotência tecnológica? Quem defende os cidadãos mais desprotegidos do exercício da autoridade, por parte das forças de segurança, que não os tratam como iguais neste processo? Não são perguntas novas mas devem ser mesmo feitas e seria importante que se tentasse efetivamente respondê-las. Não se deve confiar em quem pensa que tem consigo a verdade sobre estes temas mas deve-se sobretudo desconfiar de quem não a procura. Isto é importante.

Há tanta coisa para dizer sobre esta pandemia e os enigmas políticos, económicos, ambientais, filosóficos que ela arrasta mas hoje quero falar-vos do perigo do hábito.

Estamos feitos.

Há um aspecto no hábito que ajuda a definir o seu perigo: é que não se distingue bem o momento em que ele se instala, porque o apego não é inicialmente aparatoso, do momento em que é tão forte que já integra o que é considerado essencial para existir. Podemos pegar no exemplo de práticas que dão prazer, como fumar ou tomar café. Há ali um momento, e é certo que nunca sabemos com rigor qual foi, em que a vida passa a ser muito difícil sem a manutenção do hábito. Essa consciência acaba por chegar e não é preciso um episódio de carência. É simples. Torna-se evidente que é preciso fumar um cigarro e tomar um café e que, sem aquilo, o dia pode ser um pesadelo. O hábito das coisas que dão prazer costuma ser chamado de vício.

Quando chegamos ao hábito do que é desagradável ou penoso o fenómeno é mais interessante mas também mais terrível. Um indivíduo que viva algum tempo em circunstâncias traumáticas e penosas pode mesmo habituar-se, e ganhar apego, a elas. Os exemplos são vários e estão estudados até como quadros clínicos de que é conhecido exemplo o “síndrome de Estocolmo”. Quem padece do síndrome também nunca se apercebe do momento em que inverteu o processo e em que passou a sentir afecto pelo seu agressor ou opressor.

No filme de Pedro Almodóvar “Ata-me” a protagonista “Marina”, Victoria Abril, apaixona-se pelo seu sequestrador “Ricky”, Antonio Banderas, e depois de ter sido libertada pela irmã, volta a procurá-lo para casar com ele. Existem muitas histórias na literatura e no cinema que reflectem esta inversão de sentimentos mas quero lembrar-vos de uma, dura, que nos encaixa como uma luva: no filme “Os Condenados de Shawshank”, de Frank Darabont, encontramos a visão da ausência de liberdade e da vigilância, da repetição tortuosa de rotinas, da sucessão de dias perdidos, dos muros altos do isolamento de centenas de homens, da vida em condições miseráveis, da injustiça e da violência. É depois de várias décadas de uma vida assim que “Brooks”, James Whitmore, é libertado. Está velho e tem medo do mundo cá fora. É um homem institucionalizado. Não consegue enfrentar uma vida de liberdade e, como alguns fazem, na situação inversa em que chegam a uma prisão para cumprir uma pena longa, Brooks pendura uma corda na viga de madeira do quarto que lhe foi dado e suicida-se. Também “Red”, Morgan Freeman, sofre com a liberdade quando ao fim de trinta anos (a noção da passagem do tempo não é óbvia para quem vê o filme), e quando já não a deseja, a consegue.

É humano e isso somos todos. A nossa essência é mais do que um elemento individual e irredutível que cada um traz dentro de si, ela tem a vocação de se deixar abalroar pelas circunstâncias. Somos aquilo que fazemos muitas vezes ou transformamo-nos nisso. Está a acontecer. Há excepções, há bolsas de resistência – e tantas vezes são ingénuas aventuras por caminhos piores do que aqueles dos quais se está a fugir -, mas há sobretudo um processo de transformação em curso, um processo de normalização que traz consigo um robe e um par de pantufas. Esta pode ser também uma causa de morte. Algo morre quando isto acontece.

A força deste processo de habituação está a ser muito ajudada pela adição às tecnologias. Sim, como aos miúdos nos restaurantes, no tempo em que estavam abertos, deram-nos uns aparelhos para as mãos que nos entretêm e que deixam os nossos “pais” jantar em paz e sossego.

Lamentavelmente não será a consciência de que estamos a ficar habituados a trabalhar a partir de casa ou a não recebermos amigos ou a levarmos o dia sem calçar um par de sapatos que resolverá este problema. Desta vez não é assim. Não adianta dizer a um fumador que tem um vício, ele provavelmente já sabe e esse conhecimento não fez dele uma pessoa nova.

É insuportável imaginar a continuidade uma vida sem liberdade. Mas muito mais insuportável será quando já não sentirmos falta da liberdade, quando só quisermos segurança e sossego. Cada um saberá em que ponto está deste processo mas dificilmente alguém poderá afirmar-se totalmente excluído. “O hábito é uma segunda existência que anula a primeira” disse Blaise Pascal. Acertou tanto.

Nota: Este artigo não fala sobre os profissionais de saúde ou sobre outros profissionais que, tendo mantido o país a funcionar (levando, por exemplo, comida às casas ou trabalhando em supermercados) nem ao menos conhecem a expressão do agradecimento colectivo. Também não fala dos trabalhadores sem trabalho ou de confinados que não conseguem pagar as rendas de casa. Há quem esteja a salvo do hábito de ficar assim, a salvo de uma morte por robe e pantufas. Raio de salvamento. E quanto ao burro, morreu mesmo de fome.

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