Expor motoristas à violência, como estratégia de marketing. Subornar políticos e a mídia. Praticar crimes e apagar as provas. Reportagens evidenciam o lado ultra-arcaico das Big Techs e mostram: é preciso contê-las, ou destruirão a democracia.
O jornal londrino The Guardian começou a publicar ontem [10/7] uma série de textos devastadores contra a Uber. Denominou-a Uber files [Os Arquivos Uber]. Baseiam-se num conjunto de 124 mil documentos vazados por Mark MacGann, um ex-diretor que se diz arrependido pelos atos que ajudou a praticar. Entre as várias denúncias, a Uber é acusada de: oferecer dinheiro para os empresários da mídia na Europa e na Índia para obter cobertura favorável; agir deliberadamente para inibir aplicação da lei; ludibriar a polícia; pressionar políticos; fechar acordo secreto de favorecimento na França com o governo de Emmanuel Macron.
O conjunto das matérias pode ser acessado nesta página. No texto a seguir, a análise de seu significado.
Havia táxis antes de haver Uber, assim como havia livrarias antes da Amazon e amigos antes do Facebook. Uma grande parte da inovação consiste em novas maneiras de entregar ideias antigas. A tecnologia dá ao inovador uma vantagem ao reduzir os custos, permitindo entregas mais ágeis e superando os concorrentes presos a métodos obsoletos.
Esse é o mito fundacional do folclore do Vale do Silício. Foi a história que a Uber propagou sobre si mesma nos anos de seu crescimento mais explosivo, de um serviço de caronas em São Francisco a uma potência global de tecnologia. Aqui estava a ruptura digital arquetípica – um aplicativo para combinar demanda e oferta com uma capacidade que tirou a concorrência do caminho.
Quando esses concorrentes (taxistas licenciados) reclamaram, suas objeções foram descartadas pelo recém-chegado como o estertor da morte dos monopolistas e luditas [em referência aos trabalhadores ingleses que, no século XIX, quebravam as máquinas como forma de protesto contra a exploração trazida com a inovação tecnológica] que estavam atrapalhando o progresso.
Havia então, e ainda há, uma discussão sobre regulamentação que inibe a inovação e quando ela precisa mudar de acordo com os tempos de mudança. Esse debate parece um pouco diferente à luz das mensagens vazadas, datadas entre 2014 e 2017 e publicadas ontem pelo jornal britânico The Guardian, mostrando os métodos implacáveis e agressivos que o Uber usou para forçar a entrada em vários mercados ao redor do mundo.
O ethos mercenário da empresa está sintetizado em uma conversa entre altos executivos que discutem a ameaça de os motoristas do Uber sofrerem um ataque em Paris, quando os taxistas da cidade entraram em greve. Travis Kalanick, cofundador da Uber e ex-presidente-executivo, queria que seus motoristas desafiassem a greve com desobediência civil em massa. Quando avisado de que isso poderia provocar uma retaliação violenta, Kalanick respondeu: “Acho que vale a pena. A violência garante o sucesso.” [Ver mais sobre esta denúncia]
A acusação, que o Uber nega, é que a empresa viu a ameaça a seus motoristas como parte de um conjunto de ferramentas de relações públicas, juntamente com suas múltiplas atividades de lobby, para pressionar por mudanças regulatórias. A escala dessa operação, recrutando os principais políticos e poderosos de todo o mundo para defender os interesses da empresa, é de tirar o fôlego. A Uber agora diz que está sob gestão diferente com um modus operandi diferente. Kalanick deixou a empresa em 2017.
Não é incomum que uma jovem e ambiciosa empresa busque interesses comerciais com força destruidora. A brutalidade é um motor histórico da evolução econômica. Alguns inovadores têm uma veia filantrópica, outros são vorazes. O padrão ao longo da história é que a tecnologia abre caminho na economia e só mais tarde, quando as consequências mais amplas tornam-se visíveis, a sociedade organiza uma resposta política para mitigar as desvantagens. A Revolução Industrial gerou uma riqueza fenomenal para os industriais antes que houvesse leis contra o trabalho infantil. Foi preciso que os trabalhadores se organizassem em sindicatos para contrabalançar as forças que tendiam naturalmente à exploração em massa e ao pagamento miserável. (Somente no ano passado, a Suprema Corte do Reino Unido manteve uma decisão do tribunal trabalhista contra a Uber, que alegou que não precisava fornecer a seus motoristas o salário mínimo, licença remunerada ou pensões porque eles não eram tecnicamente categorizados como trabalhadores.)
O sucesso da democracia liberal – o melhor modelo até agora concebido para organizar as pessoas em sociedades prósperas e livres – depende de um equilíbrio entre o ímpeto gerador de riqueza do mercado e as obrigações que a política deve impor às empresas para um bem maior. Hoje, a diferença entre a esquerda e a direita dominantes na política econômica se resume à questão de onde ajustar os níveis entre essas demandas concorrentes; onde a ênfase recai entre a liberdade individual de enriquecer e o dever coletivo de compartilhar.
Periodicamente, essa distinção é declarada irrelevante pelo avanço da história. Mas sempre retorna. O projeto marxista de eliminar completamente o capitalismo degenerou em tirania e falência onde quer que tenha sido tentado no século XX. Esse fracasso foi então tomado como defesa moral pelos fundamentalistas do livre mercado que viam qualquer regulação estatal da economia como um ataque à liberdade.
O momento triunfalista pós-guerra fria para o Ocidente coincidiu com a revolução digital, produzindo uma cultura de arrogância e complacência política em torno da economia das novas tecnologias. O ethos do Vale do Silício combinou o modelo da corrida do ouro da Califórnia de capitalismo sem lei com traços de evangelismo utópico que os hippies trouxeram para São Francisco. O resultado foi uma veneração culta da startup da internet como um novo tipo de negócio ao qual as velhas regras não se aplicavam e cujo objetivo era melhorar a humanidade, além de ganhar dinheiro.
Os arquivos do Uber são um instantâneo de um momento específico – o pico de credulidade política e negligência em torno do crescente poder das empresas de tecnologia. Mas as regras básicas da nova economia digital acabaram não sendo tão diferentes das antigas regras analógicas. O tipo de regulamentação que pode ser necessária para conter o excesso corporativo será diferente em setores que não existiam uma geração atrás. O padrão de política sendo capturado por lobistas corporativos é assustadoramente familiar.
A revelação das práticas agressivas da Uber mostra uma verdade simples sobre a revolução tecnológica. É a mesma verdade que aprendemos ao conhecer as árduas condições de trabalho em um armazém da Amazon e as bolhas envenenadas do debate público onde o Facebook descarrega ódio e desinformação. O custo da inovação pode ser invisível para o consumidor, mas isso não significa que não exista. E o trabalho dos políticos democráticos é ser guardiões do interesse público, não os lubrificantes do ganho privado.
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