terça-feira, 12 de abril de 2022

Os "15 mil mortos no Donbass" e outros factoides do PCP


"Nos últimos 7 anos, mataram 15 mil habitantes da região do Donbass numa operação de genocídio programado".

A frase é do ex-deputado do PCP Miguel Tiago, numa conversa no Twitter que inclui o ex-eurodeputado, ex-candidato presidencial e apontado possível novo secretário-geral João Ferreira. Miguel Tiago responde a uma tuiteira que reage a um tuite de Ferreira dizendo-se "muito desapontada com a posição do PCP" e perguntando se, não havendo invasão, haveria "mortos pelas ruas".

"Esses números são de quem, Miguel? Houve uma investigação independente?", pergunta a tuiteira, que ostenta, ao lado do nome, o símbolo de foice e martelo. E prossegue: "Eu sei que havia uma guerra civil na Ucrânia mas era um assunto só deles, não é com violência que se combate a violência. Eu sei que não é um país onde impera a democracia." Sem adiantar qualquer fonte para a sua afirmação, o ex-deputado insiste: "Não era uma guerra civil, era um genocídio de todos os que não queriam o corte de ligações com o povo irmão da Rússia."

A seguir, Miguel Tiago adianta uma fonte para as suas afirmações: a ONU.

Quando horas mais tarde um outro tuiteiro confronta Tiago invocando os números do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU sobre vítimas do conflito, o ex-deputado não responde. Também João Ferreira nada diz - nem para apoiar as afirmações do seu camarada nem para as refutar.

Visitando a página criada pelo partido a que ambos pertencem para expor a respetiva posição "sobre a Ucrânia", percebe-se o silêncio de João Ferreira. É que ali temos, em letras garrafais, na secção de "factos e números", a cifra citada por Tiago: "15 mil mortos nos últimos 8 anos no Donbass - a guerra não começou agora."

Esta "informação" surge ao lado de cifras sobre "o orçamento militar dos EUA" e dos gastos militares da UE, EUA e NATO e de como são "10 vezes superiores ao valor dos da Rússia". Isto numa página, recorde-se, que surge na sequência da invasão da Ucrânia pela Rússia, e na qual se incluem igualmente as datas do alargamento da NATO a leste, assim como das ações da aliança na Jugoslávia, Afeganistão e Líbia - sem uma palavra, porém, sobre as invasões da Chechénia e Geórgia pela Rússia e sobre a ação deste país na Síria.

"Elementos para compreensão" é o pós-título da dita página, pelo que procuremos então os elementos que nos permitam compreender o que o PCP considera ter sido o início dessa guerra que não começou agora e a responsabilidade por aqueles 15 mil mortos.

Vamos então à cronologia, e ao ano de 2014. E que encontramos? Que houve a 16 de março "um referendo" na Crimeia que "por esmagadora maioria" aprova a reunificação com a Rússia. Nem uma palavra sobre a invasão da península por forças russas, certificada por entidades independentes, nem sobre o facto de o referendo ter sido considerado ilegal pela Assembleia das Nações Unidas.

A seguir, para o PCP, vem "o referendo em Lugansk e Donetsk (Donbass) organizado pelas autoridades locais cujo resultado foi [a] rejeição maioritária do Golpe de Estado [golpe de estado é como o PCP chama à queda do governo do presidente prórrusso Viktor Yanukovych, que fugiu da Ucrânia na sequência de meses de protestos e violência nas ruas, fuga à qual se seguiram eleições] e a afirmação dos direitos políticos e culturais da região."

É este referendo então, segundo o PCP, que explica o "início da guerra no Donbass sob o pretexto de uma operação antiterrorista", e aquilo que descreve como "brutal repressão no Sudeste do país da generalizada rejeição popular do governo golpista provocando milhares de vítimas, um dramático fluxo de deslocados e refugiados e crimes terroristas", e "ações militares na região do Donbass, com recurso a artilharia pesada e aviação de combate, provocando milhares de vítimas civis e dezenas de milhares de refugiados, assim como a destruição de cidades e aldeias e de infraestruturas básicas."

Os 15 mil mortos vêm logo a seguir: "Ucrânia bombardeia sistematicamente repúblicas autoproclamadas - estima-se que as agressões da Ucrânia ao Donbass desde 2014 tenham resultado em cerca de 15 mil mortos e centenas de milhares de refugiados."

"Estima-se"? Qualquer pessoa que procure fontes para esta estimativa fica sem saber onde o PCP a foi buscar. Ao Alto Comissariado da ONU para aos Direitos Humanos, que desde 2014 fez relatórios uns atrás dos outros sobre a Ucrânia, não foi de certeza.

No último relatório antes da invasão de fevereiro, lê-se: "Durante todo o conflito, de 14 de abril de 2014 a 31 de janeiro de 2022, o Alto Comissariado contabilizou um total de 3107 mortes de civis (1853 homens, 1072 mulheres, 102 rapazes, 50 raparigas, e 30 adultos cujo sexo não foi identificado). Incluindo as 298 pessoas que estavam a bordo do voo MH17 das Linhas Aéreas Malaias que foi derrubado a 17 de julho de 2014 [por um míssil russo], são 3405 mortos civis."

Note-se que em maio de 2016, ou seja dois anos após o início do conflito, este órgão das Nações Unidas apontava, num relatório sobre mortes, 9404 mortos e 21671 feridos "na zona de conflito da Ucrânia oriental", estimando-se que nessa altura já tinham morrido dois mil civis, a que se somavam as vítimas do derrube do avião malaio. Isto significa que haveria já então mais de 7000 mortos entre os combatentes de ambos os lados.

Grande parte dos mortos - civis e combatentes - concentraram-se assim nos primeiros dois anos da guerra, sendo que, de acordo com a ONU, as pesadas baixas civis no início da guerra deveram-se "ao bombardeamento indiscriminado de áreas residenciais tanto nas áreas controladas pelo governo ucraniano - Avdiivka, Debaltseve, Popasna, Shchastia e Stanychno Luhanske - como em cidades controladas pelos grupos armados, incluindo Donetsk, Luhansk e Horlivka." Ou seja, bombardeamentos de ambos os lados, civis mortos de ambos os lados.

Aliás os relatórios da ONU são muito claros na atribuição de ações inadmissíveis e contra os direitos humanos a ambos os lados do conflito, assim como na implicação da Rússia na guerra. Mas o número de mortos civis relacionados com o conflito, quer no território controlado pelo governo ucraniano quer no das autoproclamadas repúblicas de Luhansk e Donetsk, desceu muito a partir de 2019, sendo de 27 nesse ano, 26 em 2020 e 18 em 2021, devendo-se sobretudo a explosões de minas e outros artefactos, ou seja, não diretamente a combates ou bombardeamentos.

E se o PCP afirma ter havido em 2022 "intensificação dos bombardeamentos no Donbass por parte do regime ucraniano" (porque é preciso "justificar" a ação da Rússia "em socorro" das "repúblicas" que Putin reconheceu no seu discurso de 21 de fevereiro), a ONU diz o exato contrário: "Apesar das tensões [devido ao acumular de tropas russas junto da fronteira com a Ucrânia], a situação na zona de conflito da Ucrânia oriental manteve-se relativamente calma de novembro de 2021 a janeiro de 2022."

Acresce que a descrição da situação nas "autoproclamadas repúblicas" (a ONU refere-as assim) era ainda no final de 2021, segundo o Alto Comissariado, de "graves violações que persistem", incluindo detenções arbitrárias, tortura, maus-tratos. O mesmo para a Crimeia, onde nem sequer é garantido, segundo o último relatório citado, o direito a escolher advogado.

Uma página de um partido não é, obviamente, um órgão de informação. Mas há mínimos exigíveis, no que respeita a distinção entre verdade e mentira, a uma agremiação política que se diz respeitadora da legalidade e dos princípios constitucionais e que ainda por cima passa a vida a declarar-se vítima de imputações falsas. Aquilo que o PCP serve como "factos e números" sobre a Ucrânia e a sua versão da "guerra que não começou agora" é uma infamante salada de mentiras e omissões descaradas, ao nível de um Breitbart ou qualquer página de fake news. Com um único e miserável objetivo: justificar a invasão russa e apresentar a Ucrânia como um estado criminoso. Pedia-se vergonha, se valesse a pena.

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