O Serviço Nacional de Saúde (SNS), tal como a Educação e a Segurança Social, é o que resta do Estado Social. Foi alvo de ataques e de subfinanciamento ao longo de anos. Tem défices em consequência disso. Mas resistiu extraordinariamente à pandemia. E está de novo perante a fronda dos interesses privados mercantis.
ENSAIO, Por Isabel do Carmo
13 AGOSTO 2021
Na União Europeia os serviços de Saúde são universais, isto é, há uma cobertura universal de toda a população pelos cuidados a prestar. Não é o caso dos Estados Unidos da América (EUA), mesmo com o Obamacare, onde uma parte da população ficou de fora (9,1%). No entanto, na Europa há dois sistemas, que por sua vez também traduzem posicionamentos políticos diferentes. Passando a explicar.
Em 1871, após a vitória da Prússia sobre a França (cuja consequência foi a revolta da Comuna de Paris), Otto von Bismarck tornou-se chanceler da Alemanha unificada e passou a reprimir o movimento social-democrata, do qual derivaram ondas revolucionárias por toda a Europa e os EUA.
Como resposta, entre as medidas “sociais”, o chanceler criou um serviço de Saúde à base de “caixas” com desconto nos salários e contribuição dos patrões. Deste modo, com esse seguro, os cidadãos que trabalhavam tinham acesso, embora limitado, a serviços de Saúde.
Foi essa a base das “Caixas de Previdência” do Estado Novo, muito limitadas no acesso, que não era extensivo à compra dos medicamentos e só funcionava para os que tinham trabalho. Algumas empresas, como a CUF e os Caminhos-de-Ferro tinham “postos de socorro”, para situações agudas e para algumas consultas. Mas sempre com exclusão dos medicamentos.
Ao mesmo tempo o Estado Novo proibia as “caixas operárias”, sobretudo dos anarquistas, que também serviam para apoiar os grevistas durante os períodos de greve sem salários. Este modelo, a que se chama bismarckiano, alargou-se e aprofundou-se e é hoje o aplicado na Alemanha e na Suíça. Na base dos seguros as pessoas têm direito a qualquer serviço privado.
É, portanto, vantajoso para os privados e dá acesso mais rápido aos doentes. Torna-se mais caro, visto que o seguro está a pagar interesses privados. E torna-se pouco escrutinado em termos de necessidades reais de exames auxiliares de diagnóstico e cirurgias - fora dos hospitais não é decidido por estruturas coletivas, o que é sempre um risco.
Este é o mesmo esquema aplicado por Obama e proposto por Hillary Clinton em face do total desamparo da maioria da população, sujeita a não ter seguros ou ter seguros de baixa cobertura. Sob o Obamacare, o seguro é obrigatório e com plafonds obrigatórios.
No entanto tem aplicações técnicas complicadas porque a parte do Estado tem que ser calculada em face do rendimento de cada pessoa. Melhorou muito a situação, mas uma parte da população latina ficou de fora, por dificuldades de acesso.
Donald Trump destruiu tudo quanto pôde, mas alguns estados tinham legislação blindada por contratos com seguros que vigoravam além da legislação. Espera-se que Joe Biden/Kamala Harris reponham o destruído e levem mais além a cobertura. Em pleno liberalismo anterior se alguém partia uma perna ficava arruinado a pagar para o resto da vida e quem tivesse uma leucemia podia não fazer transplante porque o plafond do seguro não cobria.
No sistema da Sécurité francesa, as pessoas descontam para a Segurança Social, a qual cobre não só as reformas e os períodos de doença, como também os cuidados de Saúde. O acesso aos privados é idêntico ao alemão - a Sécurité paga de acordo com uma tabela.
O ESPÍRITO DE 45
Para quem viu o filme de Ken Loach, The 45 SpiritThe Spirit of 45 (O Espírito de 45), terá percebido o que foi esse extraordinário movimento vindo de baixo, que impôs o National Health Service (o Serviço Nacional de Saúde britânico, NHS).
Através de entrevistas atuais a protagonistas desses anos após a guerra, completados por imagens de arquivo, percebe-se como o movimento dos de baixo, dos sindicatos e do Partido Trabalhista levaram à nacionalização das minas e do Caminho-de-Ferro, à criação dos bairros sociais e ao NHS. Foi assim que Churchill perdeu as eleições, o Partido Trabalhista ganhou e dentro dele o ministro Beveridge, que apresentou e fez aprovar a lei com o mesmo nome.
O mesmo se passou na Dinamarca, na Suécia, na Noruega e na Finlândia, com fortes partidos social-democratas, de origem operária e com sindicatos que se impunham aos governos ou participavam nas decisões. Segundo essa lei, os serviços da Saúde e da Educação e outros de interesse público são financiados através do Orçamento Geral do Estado (OGE), o qual é constituído por impostos progressivos. Desse modo, as desigualdades de nascimento são compensadas por esses bens públicos, universais e gratuitos. É o Estado Social.
As vitórias eleitorais de Margaret Thatcher e Ronald Reagan nos anos 1980 fizeram com que passasse a reinar a máxima de que só o indivíduo existe e a “sociedade não é coisa nenhuma”.
Embora os impostos possam ser muito elevados nesses países, cada cidadão tem direito ao uso dos equipamentos mais requintados e a cuidados de convalescença, continuados, paliativos e domiciliários de alta qualidade.
Ao longo dos quase oitenta anos desta estrutura social, o sistema foi sofrendo ataques conforme os governos no poder. No entanto, outra realidade suportava na retaguarda este bem-estar das classes trabalhadoras no sentido operário ou dos serviços: a existência dos países do Pacto de Varsóvia. Apesar da tragédia que se passava nessas sociedades, em termos de repressão e de ausência de democracia, funcionaram aos olhos dos trabalhadores do resto da Europa como um paraíso em termo dos direitos possíveis.
Havia de facto nesta zona da Europa um Serviço Nacional de Saúde universal e gratuito, de acesso facilitado, havia medicamentos fabricados sem respeito pelas patentes ocidentais, havia escola gratuita e férias pagas. Veja-se o exemplo do Hospital Charité de Berlim Leste, de grande qualidade, que ainda hoje sobrevive honrando a sua história, e que é o grande hospital da cidade. A tragédia é que a par disto não havia liberdade de expressão e organização e havia policiamento e investigação secreta, com tortura e repressão em massa.
VITÓRIA E IMPOSIÇÃO DO NEOLIBERALISMO
Com as vitórias de Margaret Thatcher, em 1979, e de Ronald Reagan, em 1981, acrescentando o desaparecimento em dominó dos regimes do Pacto de Varsóvia, a partir de 1989, instalou-se o chamado neoliberalismo. Reinava a máxima que só o indivíduo existe e a “sociedade não é coisa nenhuma”, tal como defendida pela chamada Dama de Ferro.
A concorrência, o lucro, os “empreendedores”, o individualismo, passaram a dominar. TINA, there is no alternative, foi a mensagem de Thatcher. Isto é, chegámos ao modelo de sociedade, à estrutura do mercado, que estabelece ganhos e perdas e hierarquias sociais, pela concorrência.
Isto refletiu-se no NHS com uma tentativa de acabar com ele. Apesar de tudo, resistiu, mas os cuidados públicos diminuíram, as creches para a infância não são suficientes, as limitações para os trabalhadores imigrantes são grandes, a habitação social é difícil de atingir. As limitações de exames auxiliares de diagnóstico e de medicação são impostas com protocolos apertados aos general practitioners. Desenvolveram-se os privados e a necessidade do NHS comprar a privados.
Chegámos ao modelo de sociedade, à estrutura do mercado, que estabelece ganhos e perdas e hierarquias sociais, pela concorrência.
Este espírito neoliberal acabou por ser adotado pela chamada Terceira Via, que abrangeu os partidos trabalhistas, social-democratas e socialistas, tendo à cabeça o inglês Tony Blair. Na evolução da União Europeia (UE), onde os países dirigidos por governos de direita são a maioria, o sentido da privatização da saúde tem sido a regra com grandes movimentos de protesto em França, Espanha e Reino Unido.
A onda neoliberal sacudiu até os serviços de Saúde dos países escandinavos, que pareciam à prova dos conceitos tornados emergentes no resto da Europa. Os governos de centro-direita da Suécia, que se estabeleceram de 1992 a 1994, conseguiram em dois anos introduzir oportunidades para os serviços privados, o que repetiram entre 2006 e 2014.
No entanto o governo social-democrata tinha blindado as mudanças com a stop-travão de 2000, o que permitiu que apenas um hospital de agudos fosse contratado em Estocolmo fora do serviço público. Porém o estreitamento dos serviços dos cuidados primários com pouco investimento acabou por levar os doentes para o recurso a cuidados privados. Após a vitória do novo governo centro-esquerda em 2014, o movimento pela igualdade na saúde procurou retomar a tradição sueca do serviço público.
Durante o período da crise económica de 2008 a 2015, assistiu-se em Espanha a perda de camas hospitalares públicas, como em Portugal, e a privatizações dos próprios centros de Saúde. Em França diminuíram as camas hospitalares, desapareceu a articulação com os Cuidados Primários, de tal modo que houve um movimento de protesto que envolveu diretores hospitalares e que levou à recusa do uso do registo digital. À medida que o pensamento neoliberal ia avançando assistimos também em Espanha ao movimento das Batas Brancas, à criação da Federação da Associação em Defesa da Saúde Pública (FADSPS). Também em Portugal a manifestação “Que se lixe a Troika” contou com um bloco Batas Brancas.
No Reino Unido, em novembro de 2019, descobriram-se negócios para ligação do NHS aos EUA, para o pós-Brexit. Esta venda do NHS aos EUA, em troca de retaguarda após saída da UE veio a ser negada e produziu-se um grande recuo e um enaltecimento do NHS por Boris Johnson quando a pandemia atingiu o Reino Unido três meses depois, embora o primeiro-ministro a tenha minimizado inicialmente.
Esta onda de privatização dos serviços de Saúde, bem à maneira da maioria dos governos representados no Parlamento Europeu (PE), levou à tomada de posição de 66 deputados do PE, candidatos às eleições europeias e deputados nacionais de vários partidos a fazerem uma petição e a constituírem uma rede contra a privatização e comercialização da Saúde e da proteção social e a apelarem à constituição de fundos de solidariedade. Estava-se a 6 de junho de 2019. Parece que estes atores políticos parece que estavam a antever as grandes necessidades que a Europa havia de ter cerca de seis meses depois (Pledge of European Network): a pandemia.
E EM PORTUGAL?
No movimento revolucionário do 25 de Abril de 1974 vieram expressar-se tendências que vinham de anos atrás. Na década de 1960, a proposta das “Carreiras Médicas”, liderada por um grupo onde estava Miller Guerra, António Galhordas, Sá Marques e Orlando Leitão era não só o que estava no título, mas também uma proposta para um serviço nacional de saúde. Essa geração era apoiada pelo grupo mais novo dos que eram ainda estudantes de Medicina, organizados na Comissão Pró-Associação, porque a associação tinha sido fechada pela polícia.
Mais tarde são estes estudantes, que, já médicos, vêm a vencer as eleições da Ordem dos Médicos (OM) na Região de Lisboa, constituindo uma direção e delegados eleitos em luta por um Serviço Nacional de Saúde. Tais propósitos e a tentativa de democratização da Ordem, onde não podiam existir assembleias gerais, acabaram por levar à invasão da sede pela PIDE e ao encerramento, com estabelecimento duma comissão administrativa.
Ao chegar ao 25 de Abril havia, pois, bases que continuaram nesse objetivo e foi de forma inorgânica que se organizaram Centros de Saúde em moradias abandonadas, os médicos das “Caixas” autoestruturaram-se, acumularam-se medicamentos para distribuição gratuita e perverteram-se as estruturas hierárquicas, tanto nas “Caixas” como nos hospitais.
O médico Abílio Mendes propôs em 1975 um Plano Nacional de Saúde. Ou seja, quando chegou a lei Arnaud de 1979, não foi a partir do nada, mas de uma realidade que o movimento tinha criado. E quando foi estabelecido o Serviço Médico à Periferia de 1975 a 1982, foi ainda esse espírito de Estado Social que dominou, tendo essa experiência constituído a alma mater de uma geração.
Já não era só nas cidades metropolitanas, mas na “província”, que os jovens médicos foram trabalhar, em sítios onde nunca tinham visto um médico ou tinham um velho doutor que socorria a tudo sem meios. Também aí transformaram casas em Centros, velhos hospitais das Misericórdias em novos hospitais tão modernos quanto possível, vacinaram o que puderam, fizeram partos, libertaram “loucos” confinados em casebres. Foi uma revolução.
AS LEIS PORTUGUESAS
Na prática, ainda sem legislação, a estrutura dos cuidados em Saúde em Portugal foram-se estabelecendo de forma inorgânica, com hierarquias eleitas e fortalecimento das carreiras por concurso que já se tinham estabelecido nos Hospitais Civis de Lisboa e se foram impondo nos outros hospitais de Coimbra e Porto. Os lugares por convite foram desaparecendo.
Deste modo e já depois da contrarrevolução de novembro de 1975, crescia a força para uma lei que consagrasse o SNS. Era o que se passava dentro do Partido Socialista com o apoio do Partido Comunista, do deputado único da UDP e, considerando as vozes do parlamento, a deputada independente Carmelinda Pereira e o deputado independente Brás Pinto.
Essa lei foi a 56/79, aprovada a 15 de setembro de 1979, no âmbito do Ministério dos Assuntos Sociais (a Lei Arnaut). É interessante ler a transcrição da ata da Assembleia da República, no debate que decorreu em maio de 1979.
A lei proposta pelo CDS tinha sido chumbada. E perante a proposta do PS, a discussão dá-se entre o PSD e o PS. O PSD veio a votar contra e a abster-se na especialidade. Tal não impede que a todo o momento atual o PSD se diga grande defensor do SNS ou que haja mesmo vozes nesse sentido vindas do CDS.
A lei do nosso SNS estabelece o recurso a privados apenas de forma suplementar se o serviço público necessitar. É um serviço público, dependente do Orçamento do Estado, com administração pública.
No entanto, argumentos das longas intervenções do PSD coincidem com aqueles que foram esgrimidos em relação à Lei de Bases de 2019 – e em relação à participação dos serviços privados. Não vale a pena falar em nomes. Mas dizia então um deputado do PSD a respeito da proposta do PS: “(…) a estatização generalizada não é a medida adequada à necessária rentabilidade dos serviços profissionais de Saúde” e mais adiante “(…) Considera o PS viável a coletivização da Medicina num país que aponta para a economia do mercado?”.
Também é curioso que após esta evocação do mercado tenha havido vozes de protesto vindas do PS. Aumentando o tom, o PSD acusa a lei de “formas populistas, ineficazes e demagógicas”. E entre outras explicações Arnaut esclarece que se trata de “socialização e não de estatização”.
A verdade é que a Lei do SNS foi aprovada em setembro de 1979. Em seguida, tivemos que nos haver com a sua aplicação. Pouco depois, ainda em 1979, a Aliança Democrática (PSD, CDS e PPM) ganhou as eleições, vitória consolidada em 1980. Em 1983 houve um governo PS por dois anos. Em 1985, Cavaco Silva entrou em cena como primeiro-ministro e apanhámos essa orientação política neoliberal até 1995.
Foi no período cavaquista que se deu a aprovação da Lei de Bases da Saúde de agosto de 1990, a qual veio na sequência do espírito tatcheriano. Segundo a nova lei, os serviços públicos de Saúde deviam competir segundo as regras do mercado com os serviços privados. Foi a altura do fortalecimento dos serviços privados, do aumento do fluxo financeiro a partir do orçamento da Saúde para comprar serviços clínicos a empresas privadas e de nomeações de extrema confiança política para direções das estruturas do SNS, nomeadamente os hospitais.
Os seis anos de governo de António Guterres não deram tempo para fazer uma inversão de marcha, apesar de a ministra Maria de Belém ter restabelecido eleições diretas para as direções hospitalares. O interregno de 2001 a 2004 com Durão Barroso e Santana Lopes atingiu o auge da politização das estruturas e da grande incompetência. Em 2005 (e até 2011), o governo do PS fez grandes investimentos nas estruturas da Saúde, mas não mudou a legislação. E de 2011 a 2015 instalou-se a troika e o governo de Passos Coelho. É só em 2016 que se volta a colocar a questão da Lei de Bases e uma nova lei é votada no parlamento em 4 de setembro de 2019, após grande discussão pública, que atravessou o interior do PS.
A lei do nosso SNS é, pois, uma lei beveridgiana, estruturada com uma Lei de Bases que estabelece o recurso a privados apenas de forma suplementar se o serviço público necessitar. É, pois, um serviço público, dependente do Orçamento do Estado, com administração pública.
O PESO DA TROIKA
Entre 2010 e 2014 a despesa do SNS baixou de 9.710 milhões de euros para 8.043 milhões de euros, levando a um ainda maior endividamento dos hospitais. Durante esse período e com fundamento na Lei de Bases de 1990, o SNS e a saúde dos portugueses sofreram consequências. Aumentaram as anemias de causa ferropénica, põe-se a hipótese do agravamento das desigualdades nas doenças crónicas visto que diminuiu o consumo de medicamentos nessas áreas e o dinheiro a partir do bolso dos utentes esteve na ordem dos 27%.
Atendendo só à Saúde Mental, o Observatório Português dos Sistemas de Saúde e Saúde Mental, apoiado nos números da Direção-Geral de Saúde (2015), assinalava que esta patologia era das mais altas da Europa, que entre 2004 e 2012 a depressão diagnosticada nas mulheres tinha aumentado 12,5% e nos homens 19,9%.
Quadro 1. Variação das camas de agudos do SNS entre 2001 e 2019
O número de suicídios avaliados entre 2008 e 2012 era superior aos avaliados de 1989 a 1993, e entre 1999 e 2003. Nas áreas de maior privação socioeconómica, as chamadas para o INEM por comportamentos suicidários, realizadas entre janeiro e julho de 2011, tinha aumentado 27% em relação ao período homólogo do ano anterior. O consumo de antidepressivos aumentou 20% entre 2007 e 2011 e era mais 72% do que a média da OCDE. Quanto aos ansiolíticos, mais do que duplicaram e ambos os produtos eram consumidos sobretudo por pessoas acima dos 65 anos.
No entanto, estes números traduzem unidades. Os custos totais com psicofármacos diminuíram dado o uso de genéricos. Quanto às camas hospitalares diminuíram e as de Cuidados Paliativos eram apenas um terço do necessário. Nos hospitais públicos as camas diminuíram em 4.000 (ver quadro 1) e os doentes aumentaram nas macas dos corredores.
O FLUXO FINANCEIRO
A partir do Relatório e Contas do SNS de 2018, último a que temos acesso, o SNS gastou cerca de 474 milhões de euros no pagamento de serviços clínicos externos: meios auxiliares de diagnóstico, cuidados respiratórios e outros (ver quadro 2). Uma parte desta rúbrica é utilizada em meios auxiliares de diagnóstico, ou seja, análises clínicas, meios de imagem e exames endoscópicos (ver quadro 3). Todos estes exames poderiam ser realizados nos hospitais públicos ou eventualmente em centros de diagnóstico de proximidade em Cuidados Primários. Esta é uma aposta, desta vez permitida pela nova Lei de Bases sem ter que obedecer às leis da concorrência impostas até aqui pela Entidade Reguladora da Saúde.
Quadro 2. Despesas do SNS com bens e serviços.
Além dos serviços clínicos comprados a privados, o SNS compra ao exterior a realização de hemodiálise a doentes dos hospitais públicos e equipamentos e serviços externos, tal como a farmácia de ambulatório (1.352 milhões de euros).
Os Cuidados Continuados, que vieram a ser tão falados durante a pandemia, são pagos a 80% pelo Ministério da Saúde e 20% pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Em 2018 o investimento acumulado à atividade privada foi de 100 milhões de euros. No total havia 8.678 camas e os custos eram de cerca de 146 milhões de euro por ano da parte do Ministério da Saúde, sendo os custos restantes a cargo do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social com IPSS.
Quadro 3. Encargos do setor convencionado por área de convenção com os privados
A PANDEMIA
Ficou retratado atrás o SNS na sua evolução. Foi assim que a pandemia o encontrou. É necessário aqui relatar dois dados que agravaram a situação. Se observarmos a demografia médica (investigação J. A. Correia da Cunha, fonte da OM) verificamos que há um “buraco” no número de especialistas entre os 35 e os 55 anos (ver quadro 4). Tal “buraco” deve-se a que no final dos anos 90 do século XX, anos do cavaquismo, houve um afunilamento do numerus clausus, defendido aliás na Assembleia da República.
Quadro 4. Total de médicos em Portugal por faixas etárias em 2018
Se considerarmos os seis anos de licenciatura, os então dois anos de internato geral e os cinco anos de especialidade, mais os tempos de abertura de exames e de concursos, compreenderemos porque nos encontramos numa situação de aperto de especialistas, que em algumas especialidades (pediatria, anestesia, por exemplo) são mais graves do que a média.
Estamos a falar exatamente das idades em que os médicos estão na plenitude da sua capacidade e resistência física, adquirem capacidade de liderança e atingiram o conhecimento técnico mais atualizado. Foram eles que encararam a onda e inicial surpresa perante a pandemia.
A maior parte passou pela Rede de Cuidados Primários, os positivos e familiares fizeram quarentena em casa, mas eram controlados diariamente por um protocolo de seguimento. No pico de janeiro de 2021 chegou a haver Centros com 600 pessoas a controlar diariamente. As mesmas pessoas tinham que fazer inquérito sanitário à parte para detetar focos de contágio. Esse controlo era feito pelos especialistas de Saúde Pública. Tínhamos então em todo o país 323 especialistas, a que se acrescentaram depois mais 30 em Lisboa e Vale do Tejo (LVT). Refira-se uma nota importante: na região do país em que os Médicos de Medicina Geral e Familiar decresceram em número foi exatamente na LVT, numa medida demagógica para responder ao pedido de descentralização.
No entanto, como disse Luís Abranches Monteiro, Presidente da Associação Portuguesa de Urologia: “Da minha experiência num hospital público em Lisboa posso afirmar que ninguém ficou para trás, pela parte dos serviços”. Assim foi. O mesmo se passou no Porto e em Coimbra. Porém alguma comunicação social, muitos comentadores, alguns (muito poucos) médicos lançaram diariamente o alarme, assustaram populações, falando no “caos” e na “medicina de guerra” do SNS e culpavam o MS por não recorrer aos privados. Que afinal poderiam desde o início ter recebido os doentes Covid pagos pela ADSE e os Seguros. E não o fizeram. Só em fase tardia e mediante contratação específica abriram camas de Cuidados Intensivos nos Hospitais Cuf, dos Lusíadas e da Luz.
PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS (PPP)
Na esteira de privatizações de Margaret Thatcher o Governo de John Major do Reino Unido introduziu este modelo em 1992. Tony Blair continuou. Neste país este padrão de iniciativa e gestão privadas com pagamento público estendeu-se a escolas, transportes, serviços sociais, sistemas de informação. A população passou a sofrer os efeitos com escassez e custo dos serviços. Em Portugal a construção de autoestradas PPP desenvolveu-se nos anos 90 com Cavaco. Passou a haver autoestradas pouco frequentadas e linhas de Caminhos-de-Ferro a desaparecerem.
A primeira vaga de hospitais PPP foi anunciada em 2001. As PPP podem dizer respeito só às infraestruturas, como será o Hospital Oriental (Todos os Santos) e os do Algarve, Évora, Guarda, Póvoa do Varzim e Vila Nova de Gaia; ou incluir conceção, construção, financiamento, manutenção, exploração dos ativos infraestruturais, gestão geral do hospital e prestação de serviços clínicos. Foi nesta base que foi feito o contrato dos hospitais de Loures, Cascais, Braga, Vila Franca de Xira e Sintra. O organismo público que tinha capacidade para construção hospitalar, a Direção Geral de Infraestruturas e Equipamentos (DGIE) da Saúde foi extinta.
Cascais foi inaugurado em 2010, Braga em 2011, Loures em 2012 e Vila Franca de Xira em 2013. Somam 1683 camas. Na ressaca da epidemia, ainda sem desconfinamento completo, o Tribunal de Contas vem publicitar que a gestão dos hospitais PPP é melhor do que a dos hospitais públicos.
Quadro 6. Despesa corrente do SNS e SRS com hospitais em 2017
O método aplicado pelo Tribunal de Contas é o do value for money, ou seja, de forma simples, que resultados é que obtêm com o mesmo custo, método altamente contestável pelos economistas da Saúde. Foram avaliar os contratos, os atos realizados e os respetivos custos em termos de produção e compararam com os hospitais públicos.
Nas conclusões publicadas não são reproduzidos os contratos. Conhecendo-os poder-se-á avaliar a poupança das PPP. Em termos de Serviço de Urgência, embora seja permanente não tem determinadas especialidades a partir das 20h. Especialidades essas, como gastroenterologia, que podem requerer exames especiais. Também a neonatologia não está coberta. Qualquer destas situações terá que ir para um hospital de gestão pública. Tudo o que tem atraso de pagamento por programas das Administrações Regionais, como as “bombas” de perfusão contínua de insulina, não é aplicado.
O programa HIV-SIDA, embora a medicação esteja à parte do orçamento hospitalar, não o está tudo o resto que envolve o acompanhamento da doença. A cirurgia bariátrica para a obesidade mórbida, muito dispendiosa porque é multidisciplinar, também não é executada nas PPP. Finalmente, talvez o mais lucrativo para as PPP, estas pertencem a grupos económicos dos hospitais-empresa, os quais recebem doentes da ADSE. O circuito destes doentes entre as PPP e o hospital-empresa é possível. Aí não há poupança, pois não há limite para os exames auxiliares de diagnóstico, cirurgias e mesmo sessões de radioterapia pagas à peça e cujos custos ficam a cargo da ADSE (ver quadro 6).
Quadro 7. Evolução das requisições de Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica realizados em entidades convencionadas.
E O FUTURO?
O futuro terá que ser a aplicação da Lei de Bases de 2019. A estrutura e a organização do SNS têm de ser revista e a sua orgânica estabelecida em estatutos. Tem que ser cumprido o estabelecido no OGE 2021. A aplicação do PRR/SNS pode permitir a criação de centros de diagnóstico intermédio, a melhoria da comunicação digital e sobretudo a criação de um processo clínico digital único. Pode equipar os Cuidados Primários de equipamentos de diagnóstico que retirem aos serviços de urgência hospitalar uma parte dos seis milhões de pessoas que aí acorrem em ano normal.
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