terça-feira, 9 de junho de 2020

Não desvalorizarão a manifestação

Por Vitor Beliciano


«Vamos ser claros. As manifestações de sábado, principalmente em Lisboa, surpreenderam quase toda a gente. Quem organizou, porque não esperava uma tão grande adesão. Mas sobretudo quem não deseja que nada mude. Ou até quem querendo, que seja de forma a ajustar-se a um guião que não permita desvios às suas expectativas. Tudo o que não ocorreu no sábado.

Porque o que aconteceu foi orgânico, não desenhado a régua e esquadro. E é por isso que foi tão raro, benigno e verdadeiro. Atravessado por paradoxos? Claro. Sê-lo-ia em qualquer tempo, quanto mais neste. Comecemos pela pandemia. Foi arriscado? Sim, mas um risco calculado, como todos os passos que damos hoje. É consensual, a distância física nunca seria simples de manter, mas das máscaras à higiene, seguiram-se as directrizes, com consciência do espaço e tempo que estamos a atravessar.

Que é um tempo de antinomias. O problema não é haver contradições. É haver quem as instrumentalize. Elas estão presentes desde o primeiro dia. Vivi-as quando ligava a TV e o mantra do “ficar em casa” era repetido, e olhava pela janela para as obras do novo espaço da EDP e via magotes de operários, sem outra alternativa, que não fosse laborar – inclusive aos feriados, sábados e, às vezes, à noite, com a benesse da Câmara de Lisboa, que passa licenças especiais a estas obras sabe-se lá com que critérios. E quem fala desta, diz outras, para lá de fábricas ou de sectores de emprego temporário.

Seria bom que quem passa o tempo a dar lições de moral, e se inquieta com manifestações, apontando os critérios contraditórios, que tivesse presente que eles estão aí desde o início e os mais prejudicados por eles são os mais desprotegidos, que têm poucas ou nenhumas opções. E é também em seu nome que estas concentrações se realizam, porque são os mais invisíveis que mais necessitam de fazer representar os seus direitos.

Uma outra forma de tentar desvalorizar o que aconteceu é isolar elementos – como um cartaz – e fazê-los valer pelo todo, ou acentuar que se trata de uma mera réplica do que está a acontecer nos Estados Unidos, desde a morte de George Floyd, sem relação com o contexto local. E a prova seria uma série de acontecimentos anteriores (da agressão na Amadora a Cláudia Simões, à morte de Ihor Homenyuk) que não teriam a mesma amplitude.

É verdade que às vezes é mais fácil olhar para fora do que para dentro, mas neste caso existe uma ressonância simbólica, que tem a ver com este momento em concreto – de desordem, de pandemia, de lideranças mundiais autoritárias e de intransigência para actos de racismo, de violência de género ou de agressões ambientais, principalmente entre as novas gerações, que têm uma perspectiva globalizada dos acontecimentos.

Aquilo que fez juntar, no sábado, em tantas cidades por esse mundo fora, milhões de pessoas, foi em primeiro lugar, o racismo sistémico, esteja ele ancorado nos Estados Unidos, no México, em Inglaterra ou em Portugal. Mas nitidamente existe algo mais. Um ambiente que não chega a formar um todo coerente, mas que congrega fragmentos diversos, onde se discerne uma oposição a uma cultura neocolonial, patriarcal ou neoliberal.

A morte de George Floyd corporizou tudo isso. É a morte de um afro-americano num contexto de violência policial. Mas também um desejo de mudança, que corresponde sempre a um processo demorado, não a um acontecimento circunstancial. O que acontece é que, por vezes, existem acontecimentos que materializam muitos outros que ocorreram ao longo dos anos. E é isso que está a suceder. As transformações às vezes começam assim, de forma inesperada e no tempo mais imprevisível, correspondendo a um desejo inconsciente que estava lá antes de acontecer, mas que ainda não tinha sido declarado. As grandes mudanças nunca pedem aprovação.

E isso assusta quem não as deseja. É daí que vem o menosprezo. E depois também existe quem fala em mudar, mas apenas segundo um figurino que não permite o inesperado e vidas a pulsar lá dentro. Que foi exactamente aquilo que tivemos no sábado. Um desses acontecimentos autênticos que poucos previram, marcado pelo desejo de justiça, dignidade e mudança.»

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