Qual desenho se pode traçar da globalização que temos hoje? Quais são as suas características? O que a distingue de períodos anteriores de expansão económica vocacionados à internacionalização? E os cenários para o futuro? O que fazer para ao menos mitigar as visíveis desigualdades espalhadas por todos os continentes?
Em Capitalismo sem rivais , Branko Milanović demonstra que o capitalismo acabou por se tornar o único sistema económico vigente no planeta após séculos de convivência ou rivalidade com outros modos de produção. No livro, o economista sérvio-americano oferece uma visão original sobre a evolução das sociedades comunistas no Leste Europeu e em outras partes do mundo, com destaque para a China — que constitui hoje, na análise do autor, o exemplo maior do que ele chama de capitalismo político, em contraposição ao capitalismo meritocrático liberal representado, em especial, pelos EUA. Com erudição e didatismo, Milanović mostra as diferenças entre os dois capitalismos predominantes, as formas como se relacionam entre si, de que maneiras se constituem suas desigualdades internas e como eles se manifestam, com características próprias, em todas as regiões do globo.
Como o próprio título indica, o Capitalismo tem dominado o mundo desde a queda da União Soviética, sem que tenhamos outro sistema como alternativa viável. Por capitalismo, a definição usada por Branko é a do sistema que i) utiliza a propriedade privada dos meios de produção, ii) o capital é usado para contratar trabalhadores, iii) a produção ocorre de forma descentralizada, isto é, não há um comando central ditando as regras, e iv) as decisões de investimento são realizadas por empresas privadas ou indivíduos. Veja que eu escrevi que não temos um sistema alternativo viável. Isso exclui o socialismo, dado o seu fracasso em gerenciar economias. É uma balela o argumento levantado por alguns defensores do socialismo de que o "socialismo real" ainda não foi implantado. Fracassaria do mesmo jeito, e pelas mesmas razões. Branko dedica poucas páginas para explicar a impossibilidade prática do socialismo, uma vez que este ponto já está bem claro (ou deveria estar!).
Definido o conceito de capitalismo, o autor afirma que três movimentos reforçam e fortalecem o capitalismo. O primeiro é o fluxo de bens. O segundo é a mobilidade do capital. E o terceiro é a migração de trabalho entre os países. Enquanto a mobilidade de bens e de capital segue ritmo acelerado, movimentos migratórios têm enfrentado resistências em algumas nações - com a ascensão de movimentos nacionalistas. De qualquer forma, a tendência é de crescente fluxo de trabalhadores, com tecnologias acelerando essa tendência. Temos evidências de médicos realizando operações com o auxílio de computadores, eliminando a necessidade de presença física no local da cirurgia. No futuro, pode ser que o fator trabalho contribua com a produção sem precisar se deslocar fisicamente, uma vez que tecnologias conectariam o seu trabalho. O capitalismo contemporâneo tem o suporte da globalização.
Um mundo capitalista caminha de mãos dadas com a ideologia praticamente incontestável de fazer dinheiro (money-making). Gerar e acumular dinheiro não somente é respeitável como também é o principal objetivo na vida das pessoas. Reconhecida essa inflexão nos nossos pensamentos, ela produz efeitos significativos em nossas vidas. Por exemplo, como conciliar áreas não monetárias com o pensamento comercial?
Branko Milanovic nos diz que há dois tipos de capitalismo em curso atualmente. Um deles é o capitalismo das economias ocidentais, cunhado de capitalismo meritocrático liberal. Suas principais características são a democracia e o Estado de Direito. É um capitalismo no qual o Estado se esforça em melhorar as instituições para que os indivíduos as utilizem como âncoras em suas decisões. O Estado, portanto, teria um papel passivo no desenvolvimento económico. As decisões são descentralizadas, principalmente as concernentes ao progresso tecnológico. Uma vantagem desta variedade de capitalismo é a de que cada indivíduo é tratado de forma igualitária, com mobilidade social de acordo com os resultados de sua vida produtiva.
A segunda variação de capitalismo é o capitalismo político, autoritário, com a figura central do Estado. A China seria o grande exemplo deste capitalismo. Neste capitalismo, diferentemente do capitalismo meritocrático liberal, o Estado conduz a economia, estabelece diretrizes para serem seguidas. Há uma burocracia eficiente para entregar os resultados propostos. Não temos o Estado de Direito garantindo direitos individuais. Portanto, há discricionariedade por parte do Estado em julgar e tomar decisões. Em outras palavras, este enfrenta poucas amarras jurídicas para suas decisões. Uma de suas principais qualidades é a entrega de elevadíssimo crescimento económico, propiciando o aumento de salário das pessoas.
Todavia, esses dois capitalismo têm os seus próprios problemas, os quais podem representar a sua degeneração e possível queda. Pelo lado do capitalismo meritocrático liberal, marcadamente nos Estados Unidos, há crescente disparidade de rendimento entre as elites e o restante da população. Essa elite consegue capturar o governo por meio de financiamento e apoio durante as eleições, exigindo, em contrapartida, leis e regulações que beneficiem os seus negócios. A dinâmica de funcionamento do capitalismo contribui para essa desigualdade, uma vez que essa elite possui de forma notoriamente elevada a posse de capital, ao passo que o restante da população possui parcela muito inferior. Branko fornece dados (os quais eu não tinha ideia) de desigualdade de capital, e não de renda. Mesmo nos países mais igualitários, como a Noruega, o Gini é de 0,9. Na Alemanha e nos Estados Unidos, os valores são de 0,8 a 0,9. Lembre que o Gini varia de 0 a 1. O número 1 denota uma sociedade totalmente desigual, na qual toda a renda está concentrada em apenas uma pessoa. Milanovic argumenta que o 0,01% da população detém maciça parte do capital, conseguindo extrair renda e expandindo ainda mais sua riqueza. E esse 0,01% se utiliza do Estado para influenciar as regras do jogo, contribuindo para elevar ainda mais essa riqueza.
Do lado do capitalismo político, o principal problema é a corrupção. Dada a ausência do Estado de direito, a burocracia se beneficia de amplo poder, podendo utilizá-lo para acumular riqueza. A população percebe essa corrupção, entretanto, como afirmei anteriormente, o Estado entrega emprego, renda e condições melhores de vida. Há esse contrato implícito. E vez ou outra o governo chinês realiza expurgos no seu quadro político, quando a corrupção se torna flagrante aos olhos de todos. Nesta parte, imaginei a sabedoria popular "boi de piranha". Sacrifica-se uma ovelha para amansar todo o rebanho.
O livro destrincha em detalhes esses dois sistemas, recorrendo a eventos históricos e atuais para apoiar os argumentos. É um dos pontos fortes da obra. Uma distinção interessante entre esses dois capitalismos é a de que o capitalismo ocidental é voltado para a construção de instituições, ao passo que o capitalismo político se concentra no fornecimento de infraestrutura para propiciar os elevados níveis de crescimento.
Branko discute algumas teorias antigas, como a teoria da dependência, defendida no passado pela CEPAL. Essa teoria dizia que o capitalismo colocava alguns países na periferia para servirem os interesses dos países centrais. As nações da periferia estariam condenadas a exportar produtos primários, commodities, enquanto as centrais exportariam produtos com alto valor agregado. O resultado seria o aprofundamento da pobreza e atraso dos países periféricos. Branko mostra que a globalização comercial quebrou e derrubou essa teoria, uma vez que quaisquer países, especialmente as economias emergentes, podem fazer parte das cadeias globais de valor.
Essas cadeias se caracterizam pelo fornecimento de insumos em várias etapas da produção por diferentes países. Nenhum país tenta ser o melhor em toda a etapa, pois seria inviável e pouco eficiente. Ao invés disso, ele se especializa em sua etapa, ou seja, ele se integra nessa cadeia de produção. O lado atrativo para economias atrasadas é o de que elas não precisam realizar amplo investimento em capital físico para fazerem parte dessas cadeias.
Retornando ao exame das consequências do capitalismo em nossas vidas, Branko apresenta um lado bom e outro ruim deste sistema. O lado bom é o de que ao buscar melhorar nossas vidas, terminamos por contribuir com todo o resto da população. É o velho argumento, e ainda válido, da mão invisível de Adam Smith. O padeiro não acorda cedo para ajudar ninguém em especial, ele procede desta forma para obter dinheiro e rendimento. Todavia, ao fazer isso, ele auxilia toda a população ao ofertar o seu produto. Generalize esse comportamento e temos uma das razões para o sucesso do capitalismo. O lado negativo, por outro lado, é o de que o capitalismo reforça vícios, como a ambição, o egoísmo, e mesmo a mentira. Esses vícios, amplamente criticados em textos antigos, como a Bíblia, passam a ser vistos como virtudes. A hipocrisia tende a fazer parte do dia a dia: apresenta-se virtudes, mas no fundo há somente vícios. Em parte, isso ocorre devido ao receio de receber críticas ao afirmar que a principal motivação é o ganho privado, o dinheiro e o lucro. Para mascarar, diz-se que o objetivo é ajudar o próximo, a população, os pobres.
Outras consequências da disseminação e aprofundamento do capitalismo é a atomização. As famílias tendem a encolher em tamanho e perder sua importância. No passado, família era uma instituição prática para o suporte mútuo, principalmente na velhice. Hoje, por outro lado, com a também crescente mercantilização de praticamente tudo, pode-se substituir o apoio familiar com o pagamento de serviços. "Tudo tem um preço em um mundo comercial", afirma o autor. Não há a necessidade de cuidar de pais idosos, pois pode-se pagar enfermeiras e casas de idosos. O serviço de limpeza pode ser terceirizado. A comida pode ser comprada fora de casa. E por aí vai. Se a tendência prosseguir, como pode ser visto em países ricos, como a Suécia, as famílias encolhem para o número entre 1 e 2 de pessoas.
O capitalismo invade a esfera privada, comercializando nosso tempo livre. Novamente, praticamente tudo passa a ter um custo de oportunidade. O lazer pode ser trocado pela oferta de serviços por aplicativos, como a Uber. Desta forma, o lazer representaria a abdicação de mais renda, pois há serviços esperando por nossa prestação. Qual seria o limite? Casamentos e amizades também entrariam nessa conta. Cada decisão de nossa vida passa pelo fio matemático de valor monetário.
No final da obra, o autor arrisca alguns pitacos de possíveis desdobramentos do capitalismo. Ele não acredita que políticas de redistribuição de renda seriam capazes de reverter de forma estrutural a crescente desigualdade entre a elite e o restante da população. Branko argumenta em favor do capitalismo igualitário, o qual daria parcelas semelhantes de capital para os indivíduos e os dotariam com habilidade similares. Mas migrar das atuais formas de capitalismo para essa é trabalho para pesquisas futuras. Branko admite a dificuldade em fornecer esses passos. Apenas fornece dicas para superar algumas das dificuldades contemporâneas.
Em resumo, o livro é muito bom. Tem uma leitura agradável, que não se torna monótona em momento algum (algo difícil e raro em livros de economia). Branko tem didática e domina o tema. A leitura é densa no sentido de discutir muitas coisas. Tive dificuldades em fazer essa resenha, dada a amplitude de tópicos discutidos. De toda forma, o livro é um prato cheio para quem deseja entender um pouco melhor o mundo econômico em que vive.
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