Numa pequena cidade dos EUA, um contabilista obeso morreu subitamente no seu cubículo de trabalho. No seu funeral estavam apenas a mulher e os filhos, que mal o conheciam. O homem vivia em frente ao computador e falava pouco. Nessa mesma noite, longe da família enlutada, houve outro funeral. “Ajax”, a personagem que o contabilista protagonizava num jogo de computador, foi homenageada por milhares de pessoas, no mundo inteiro, que nunca viram o contabilista solitário, não sabiam quem era ou onde morava. Esse funeral foi épico, com amigos, aliados, inimigos e adversários, que celebravam os feitos heróicos de Ajax naquele jogo. Afinal, qual era a “vida” realmente importante do homem que morreu? Na realidade ou no jogo?
Esta história é contada por Steve Bannon, o antigo conselheiro de Donald Trump, que dirigiu a sua campanha vitoriosa em 2016, no filme American Dharma, de Errol Morris (2018). Bannon argumenta que o “destino” (dharma) da vida de milhões de pessoas está vazio — e pronto a ser preenchido por quem o saiba compreender. “Vem aí uma revolução”, explica o guru de Trump a um céptico realizador que o tenta confrontar. Bannon e Morris não parecem discordar sobre as causas desse vazio: as classes médias sentem-se hoje como os servos russos do século XVIII, ou como hamsters numa gaiola, concede Bannon, enumerando as razões materialistas que levam muitas pessoas a refugiar-se nos jogos, nas teorias da conspiração e na ficção para encontrar um sentido para as suas vidas. Estão reféns do sector financeiro e entregaram a sua auto-determinação às plataformas digitais e à inteligência artificial — tudo isso é verdade, argumenta o estratega político. Mas para se entender a mobilização que alimenta esta corrente política que nem sequer tem um nome consensual — “direita radical”, “extrema-direita” ou “direita populista” — é preciso juntar à realidade os mecanismos da pura ficção. Aqueles que procuram um sentido são os combatentes da “guerra” que os políticos como Trump, Ventura ou Bolsonaro seduzem para travar.
Não será por acaso que Miguel Carvalho, jornalista que investigou o Chega nos últimos cinco anos, escolheu começar o seu livro (Por Dentro do Chega, com a chancela da Objectiva) por uma história que André Ventura criou. Ameaçado por uma suposta investigação judicial que pretendia prendê-lo — mas nunca existiu —, Ventura refugiou-se na luxuosa Quinta das Nespereiras, em Odiáxere (Lagos). O proprietário, Arlindo Fernandes, militante do Chega, conta que viu chegar, “borradinhos de medo”, o líder do partido e a sua mulher, mais um grupo restrito de dirigentes. Estávamos em 2020 e Ventura era deputado. O seu plano era passar à “clandestinidade”, numa lancha rápida com destino a Tânger, Marrocos. Um político como Ventura precisa de criar uma personagem, com um “destino”, um arco narrativo. É esse mecanismo que o liga aos votantes — mais de um milhão e 400 mil nas últimas legislativas.
Miguel Carvalho recolheu centenas de testemunhas, de dirigentes e militantes do Chega. Muitos, certamente sem conhecerem a teoria de Bannon, apontam essa explicação “Ajudei a nascer o Chega porque acreditei que era algo que Deus queria que eu fizesse. Entretanto, o André revelou-se um Saul e não um David. É um grande actor,” diz Lucinda Ribeiro, a mulher nascida em Meimoa, Penamacor, que organizou o crescimento do Chega nas redes sociais. A seu lado trabalhava outra mulher, de origem social bem diferente: Patrícia Sousa Uva gosta de se chamar a si própria de “dondoca”. O seu testemunho sobre Ventura também revela uma personagem construída: “É uma mistura de padre com chico-esperto do futebol de Mem Martins.”
O grupo que geria as redes sociais de Ventura incluía ainda Gerardo Pedro, de Santarém. “Via-o a ralhar na CMTV, no ‘Rua Segura’, e deixei-me ir naquela conversa, era música para os meus ouvidos…” Hoje, Lucinda, Patrícia e Gerardo deixaram de se rever na personagem. “Sinto vergonha de ter andado nisto. Não é o que quero, nem para a minha filha… Este homem não pode governar o país. Não pode”, diz Gerardo Pedro. Mas o seu trabalho (muitas vezes de sapa, com perfis falsos, montagens e difamações sobre outros políticos) permitiu a Ventura libertar-se da sua ajuda. O líder é a personagem, como revela o livro: 80% dos fundadores do Chega já saíram do enredo.
“O meio é a mensagem”, explica Bannon ao cineasta americano (e seu adversário político) Errol Morris. Não se trata de uma citação nova, nem original. Quando Marshall McLuhan a escreveu, em 1967, não havia X, nem TikTok, nem Facebook, nem Youtube, ou qualquer das “redes” onde a maioria das pessoas hoje forma as suas opiniões, e onde os políticos da direita radical “pescam” os seus apoiantes. Mas a ideia continua a fazer sentido, seja ali ou na televisão, que reproduz de maneira acrítica os vídeos — encenados ao detalhe — que Ventura diariamente protagoniza.
As redes substituíram os media e têm consequências — pessoais, políticas, económicas, estéticas, psicológicas, morais, éticas e sociais — que nenhuma força política tradicional, de esquerda ou de direita, parece compreender. A extrema-direita foi hábil a identificar esta mudança estrutural no debate político. As redes são a sua casa (e o dono do X, Elon Musk, faz saudações nazis para os acolher).
“Aqui a gente destrói os caras”, explica Silas Malafaia, mostrando o seu telemóvel. É um pastor evangélico, celebridade nas redes e na televisão brasileira. Ele é a personagem principal de Apocalipse nos Trópicos (Netflix, 2024), o mais recente documentário da brasileira Petra Costa.
Entrevistado ao longo dos últimos anos, em visitas pessoais a Bolsonaro no Palácio do Planalto, ou a viajar no seu avião privado que — gaba-se — custou mais de um milhão de dólares, Malafaia é um religioso que quer ser influente na política, depois de ter herdado uma igreja evangélica que há dez anos tinha 15 mil fiéis. “Tem 100 mil agora”, exclama. “Evangélicos e católicos somos a maioria absoluta do país! A democracia é a vontade da maioria absoluta”, teoriza o evangélico rico.
Essa via para um regime político de faceta teocrática não existe apenas no Brasil ou nos Estados Unidos. Já chegou a Portugal há algum tempo. Lucinda Ribeiro é não só uma eficaz “guerreira" nas redes sociais, mas abriu as portas do Chega a um grupo demográfico novo: o voto evangélico.
Só na região de Lisboa há mais de mil igrejas evangélicas. As mais pequenas têm menos de 100 pessoas, enquanto as maiores (como a IURD ou a Igreja Maná) organizam muitos milhares. Miguel Carvalho aponta alguns nomes curiosos de congregações: “Assembleia de Deus Fogo para a Europa”, “Igreja Baptista Cristo Vive em Células”, “Igreja do Avivamento em Portugal”, ou “Igreja Evangélica Bola de Neve”.
Estas igrejas são espaços comunitários, raros, nas nossas sociedades, quando quase todas as formas de organização (incluindo a Igreja Católica, os sindicatos, as associações culturais) estão em crise. No início deste século, os evangélicos representavam 5% da população brasileira, sendo agora quase um terço dos 212 milhões de habitantes do Brasil. Ricardo Marchi, observador (muitas vezes participante) do Chega é citado por Miguel Carvalho: “Muitos evangélicos comprometeram-se com o Chega desde o início, compartilhando vídeos e textos de fiéis brasileiros contrários à agenda da esquerda (principalmente política de género e mobilização LGBTQIA+).”
Ventura deixou nas redes o convite: “O Chega é a religião dos portugueses comuns”; “Nós somos como aquelas seitas religiosas: fortíssimos”; “Sou muito religioso e acredito que o que me aconteceu a mim e ao Chega na História de Portugal, desde o meu percurso de comentador até ao Parlamento, é um milagre”; “Quero todas as igrejas cristãs com o Chega. Todas. Sem medo nem preconceito”; “Deus no Comando!”
“Olham para Ventura como Messias político e testa de ferro dos seus interesses”, explica, no livro de Miguel Carvalho, João Viegas, pastor evangélico português. “Somos um partido de fanáticos religiosos”, acrescenta Luís Alves, ex-dirigente do Chega, em Sintra.
Poder, dinheiro e favores são a moeda de troca neste negócio político-religioso, detalha o livro.
Steve Bannon gosta de repetir uma frase estranhamente ameaçadora: "É melhor reinar no inferno do que servir no céu." (John Milton, Paraíso Perdido).
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