quarta-feira, 2 de abril de 2025

A União Europeia perdeu a alma e o rumo


Na segunda década deste século tentei compreender se a UE poderia sobreviver às consequências da consistente oposição, liderada pela Alemanha da chanceler Merkel, à indispensável reforma da união monetária do euro.

A minha aposta consistia em defender a relação entre a criação de um verdadeiro orçamento federal e a edificação de uma união política, capaz de gerar um governo europeu, com pelo menos o mesmo grau de legitimidade democrática e constitucional que existe nos governos dos Estados-membros. Infelizmente, a realidade, que deve ser sempre a pedra de toque do conhecimento objetivo, mostrou-me que a eventual bondade das minhas propostas – apoiadas na coerência da doutrina e nas lições históricas de sucesso – não colhiam junto dos decisores e atores europeus, individuais e coletivos.

Em 2014 e 2019 publiquei dois livros sobre o declínio do projeto da unificação europeia (1). A UE estaria condenada a perder relevância e coesão interna. A recusa do federalismo iria conduzir a um precário “sistema internacional europeu”, uma “nova balança da Europa”, na qual a zona euro, em vez de cola para uma união política posterior, se tornaria, progressivamente, num fator de conflito e desagregação cada vez mais ameaçador.

Se antes do começo da guerra na Ucrânia, a UE já tinha perdido a alma, isto é, um sentido de propósito com um valor maior do que a simples rotina do business as usual, hoje, mais de três anos de sangrento conflito revelam-nos que a desorientação reinante nas três capitais europeias principais (Bruxelas, Berlim, Paris, acicatadas por Londres, que com o cheiro a pólvora parece regressado ao período anterior ao Brexit), está a degenerar num tóxico delírio de impotência e belicismo que nos ameaça arrastar para a autodestruição física.

A UE oscilou ao longo dos trinta anos que precederam a guerra da Ucrânia, entre ser um mero figurante, ou um cúmplice de segunda linha da continuada determinação dos EUA para usar a Ucrânia como bastião da sua hegemonia militar na Europa. Os documentos dizem-no sem equívocos, desde o livro de Zbigniew Brzezinski (The Grand Chessboard, 1997) até ao relatório RAND, contendo uma estratégia de aceleração da provocação a Moscovo em torno da Ucrânia (Extending Russia, 2019): com a anuência dos Estados europeus membros da NATO, os EUA prosseguiram com a expansão da Aliança Atlântica, e com a tentativa permanente de nela integrar Kiev, com vista a uma política de mudança de regime e fragmentação da Rússia, como etapa preliminar à contenção e enfrentamento da China.

Quando a Rússia passou da diplomacia ao uso da força militar para defender o seu interesse nacional, a UE não só seguiu incondicionalmente a resposta dos EUA, como foi num crescendo de agressividade, sem se preocupar com os danos económicos e sociais imediatos e as consequências estratégicas negativas de longo prazo de transformar a Rússia num inimigo. Seguiram-se três anos de escalada, com a subida de degraus que nos aproximaram de um conflito direto da NATO com a Rússia.

A vitória de Trump mudou as regras do jogo. Washington parece querer parar a guerra na Europa o mais depressa possível. Percebeu que continuar a escalada, seria um convite à III Guerra Mundial. Trump, por outro lado, mostrou sem máscaras as cartas do jogo geopolítico e militar americano: o que moveu os EUA não foram valores altruístas, mas interesses materiais grosseiros (acesso a matérias-primas estratégicas, encomendas para a indústria de armamento, ocupação do vazio deixado pelas sanções à Rússia na venda de combustíveis fósseis norte-americanos à Europa).

Contudo, aquilo que irritou os dirigentes europeus não foi isso, nem sequer as ameaças de Trump à integridade territorial da Dinamarca, ou do Canadá, mas sim o desejo norte-americano de acabar com uma guerra na Ucrânia, que, a continuar, transbordará para a totalidade do território europeu.

A guerra submete sempre as lideranças políticas a uma prova de fogo. O conflito que devasta a Ucrânia e partes da Rússia, mostrou a perigosa combinação de ignorância e arrogância – nas questões de estratégia militar e relações internacionais – de figuras como Ursula von der Leyen, Macron, Starmer, para não falar de Mark Rutte, Kaja Kallas ou António Costa. Num artigo recente no Público (14.03. 2025), Ana Cristina Leonardo recorda a total impreparação de von der Leyen: em abril de 2022 afirmava que “a falência do Estado russo é apenas uma questão de tempo”; em setembro desse ano declarava, com um sorriso de troça: “os militares russos estão a tirar fichas dos seus frigoríficos para os seus equipamentos militares, porque ficaram sem semicondutores”; em fevereiro de 2024 chegou ao ridículo de afirmar que a guerra com a Rússia tinha sido boa para a ecologia europeia, auxiliando a transição energética!

O panorama nas capitais nacionais, com escassas exceções não é melhor. Alguém consegue imaginar Luís Montenegro a dizer qualquer coisa, com a densidade de um pensamento, sobre o que significa para o futuro de Portugal a continuação desta guerra?

O belicismo irracional da UE é um sinal do seu colapso moral e intelectual. Significa também que na Europa o voluntarismo e o decisionismo arbitrários substituíram o respeito pelas leis, mesmo das leis constitucionais. Vejamos dois exemplos.

Apesar de o Parlamento Europeu (PE) ter sido afastado pela Comissão Europeia da discussão do plano de rearmamento de 800 mil milhões de euros, através do truque de usar o artigo 122º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (equiparando, com esse ardil, a corrida aos armamentos à resposta a um “desastre natural”), o PE não deixou de aprovar uma resolução que constituiria uma autêntica declaração de guerra à Rússia, caso Moscovo ainda considerasse a UE como uma entidade credível (2).

De salientar que desde o começo da guerra, a CE atua em matéria de segurança e defesa em constante transgressão das suas competências (artigo 24º do TFUE).

Outro exemplo do desrespeito pelo quadro legal ocorreu na Alemanha. A 18 de março, o Parlamento alemão efetuou uma revisão rápida da Constituição federal, para permitir que os artigos limitando as dívidas do governo federal e dos governos estaduais (introduzidos em maio de 2009), fossem suspensos para permitir a criação de um fundo especial, num horizonte de 12 anos, ascendendo a 500 mil milhões de euros, a obter nos mercados da dívida, destinados essencialmente a revitalizar a indústria de armamento, as forças armadas e infraestruturas. Para além de juntar a uma economia em declínio um aumento exponencial da dívida pública germânica, a urgência na aprovação desta revisão, antes da entrada em funcionamento do novo Bundestag eleito em fevereiro, ficou a dever-se a mais um motivo de baixa política: com o novo parlamento, esta proposta não teria sido aprovada, pois a nova composição do Bundestag impediria a revisão de obter os dois terços dos votos necessários para uma alteração constitucional...

Os focos de tensão mundial são imensos. Israel quebrou o cessar-fogo com o Hamas e prossegue o massacre de civis desarmados. Há fumos de uma agressão dos EUA e de Israel contra o Irão. A matança de combatentes prossegue na Ucrânia. E a União Europeia, em vez de contrariar estas tendências disruptivas, junta-se a elas trocando a sua alma original de força promotora da paz e dos direitos humanos à escala global, pela pulsão de morte, enraizada numa russofobia fanática que nos ameaça devorar a todos.

Por Viriato Soromenho Marques

(Publicado no Jornal de Letras, edição de 2 de abril de 2025)

Referências:

  1. Os meus livros, publicados na editora Temas & Debates/Círculo de Leitores, foram os seguintes: Portugal na Queda da Europa (2014) e Depois da Queda. A União Europeia entre o Reerguer e a Fragmentação (2019).
  2. European Parliament resolution of 12 March 2025 on the white paper on the future of European defence (2025/2565(RSP).

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