quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

O suicídio das celuloses e o nosso


Até meados da década de 90 do século passado, ainda se poderia minimamente argumentar que as empresas produtoras de pasta celulósica tinham um razoável grau de responsabilidade social e ambiental. Isto, apresar de uma luta frenética e irracional pela aquisição de terras, para a instalação de eucalipto onde a racionalidade muitas vezes inviabilizaria. Apesar de tudo, dispunham de um considerável grau de investimento em investigação, mas, mais importante do que isso, em serviços de aconselhamento directo aos seus fornecedores de madeira. Apesar do desmantelamento da entidade de regulação económica do sector silvo-industrial, que deu à indústria poder absoluto de manipulação dos mercados, ainda dispunham de um acordo público de negociação anual do preço à porta da fábrica com uma confederação de agricultores. Hoje, por omissão do Estado, gerem o mercado e o país a seu bel-prazer.

Dos cerca de um milhão de hectares de plantações de eucalipto existentes no país, cerca de dois terços está ao abandono. Através de uma estratégia de fomento desenfreado da oferta, para assim manipular o preço de aquisição da rolaria, as celuloses têm em curso uma, oficialmente autorizada, expansão de área de eucaliptal em modo de “escavação” contínua. Uma “escavação” do território sem recuperação da área já explorada. Daqui se explica que no país existam áreas com produções unitárias de eucalipto acima dos vinte metros cúbicos por hectare e ano, mas a média nacional anda por uns miseráveis seis metros cúbicos. A aposta é em quantidade, não em qualidade. Quantidade, permitida pelas governações, que fazem aumentar os riscos no território (incêndios, pragas e doenças). Argumentam com as exportações. Mas, se a preocupação for com as exportações, também deveria ser com a exploração da cultura em qualidade. Não o é, pelo motivo acima referido: manipulação autorizada do preço à produção. Afinal, o seu grau de auto-abastecimento é muito baixo.

Anuncia agora uma das celuloses, através de um meio de comunicação por si criado e gerido, que quer fomentar a instalação de eucaliptos (floresta, dizem) em áreas de matos. O argumento é de que os matos configuram abandono, improdutividade, maior risco. Desmontemos esta argumentação! Na verdade, os matos podem (e devem) ser geridos, quer para a produção de bens, por exemplo, para as indústrias farmacêutica e de perfumaria, quer na produção de serviços, manutenção da biodiversidade, conservação do solo. Assim haja visão! Já quanto ao risco, o último quinquénio (2016/2020) regista dados curiosos. Ao contrário de períodos anteriores, neste último quinquénio as áreas arborizadas passaram a representar maior peso na área ardida do que as áreas de matos. Assim, não faz sentido manter o mito de que os matos são factor de maior risco do que as áreas de produção lenhosa. Para o registo deste último quinquénio muito contribui a estratégia de “escavação”, de proliferação de uma epidemia (de eucaliptal abandonado) no território.

A manter-se esta expansão em modo de “escavação”, o suicídio deste sector é garantido. Afinal, o contínuo aumento de áreas ao abandono induz risco crescente sobre áreas sob gestão activa. Um incêndio em curso faz pouca distinção entre eucaliptal gerido ou ao abandono, mais ainda se for fogo de copas. A proliferação de pragas e doenças tende igualmente a fazer cada vez menos distinção, potenciada pelos incêndios. Depois argumentam que terão custos acrescidos com importações de estilha para celulose. A ocorrer esse futuro acréscimo peso nas importações, o mesmo não decorrerá de área a menos, mas de significativa área a mais. Um paradoxo!

Todavia, o que importa registar é que, ao invés de participar no esforço colectivo de resgate das áreas de eucaliptal abandonado, quase 700.000 hectares (70 vezes a superfície de Lisboa), esforço que já está a ser assegurado pelos contribuintes (sejam proprietários de eucaliptal ou não), as celuloses pretendem fomentar a instalação de eucaliptos onde o custo é menor, para potenciar maior esforço de resgate no futuro. De facto, entre arrancar ou aplicar glifosato em eucaliptal abandonado e preparar o terreno para instalar novo, e apenas preparar o terreno de matos para essa instalação, percebemos todos que há uma diferença significativa de custos. Redução de custos privados no imediato, mas aumento de custos públicos no futuro. O facto é que a “rentabilidade” dos dois a três cortes num eucaliptal, na grande maioria dos casos, não garante suporte aos encargos com a sua replantação ou reconversão do solo. Haja contribuintes (nacionais e europeus) para esse suporte!

Por último, tendo o Estado, desde Outubro de 2013, passado a validar e a autorizar os investimentos com eucalipto (e bem), importa referir que essa validação e autorização é desprovida de análise técnica, financeira, comercial e ambiental (afinal, o Estado ao serviço das celuloses). Talvez assim se entenda a persistência de uma miserável produtividade média nacional. Atenção, esta miserável produtividade, na maior área relativa de eucaliptal do mundo, tem significativos impactes negativos para a sociedade, seja nos planos ambiental e social, seja no económico. Impactes que serão potenciados pelas alterações climáticas. Aqui reside, a prazo, mais um significativo contributo para o nosso suicídio colectivo. Haja exportações que compensem!

Fonte: Público

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