segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Algarve liofilizado: (não) juntar água e mexer

Apenas a sociedade, como um todo, poderá, se assim o entender, dar-se ao trabalho de pensar responsavelmente a fundo sobre o tema, agir em conformidade e exigir, actuando também, que as coisas mudem profundamente
Fonte: aqui

A liofilização é um processo comummente aplicado a alimentos e que, basicamente, consiste em congelá-los e depois sujeitá-los a um processo que lhes retira a água. Desta forma, obtém-se um estado de conservação que pode durar por décadas.

Pois bem, o Algarve está mais ou menos assim, a puxar para o liofilizado. Só que em mau. Fruto de uma sucessão de anos hidrológicos que deixaram a região em claro défice e stress hídrico, não está conservado, mas antes ressequido que nem uma passa.

Vai daí, a fim de nos hidratar, o Governo rumou ao Sul, através do ministro do Ambiente e da Ministra da Agricultura, trazendo-nos o Plano Regional de Eficiência Hídrica do Algarve (PREHA), qual Moisés descendo a ladeira do Monte Sinai com as Tábuas da Lei. E esta dupla ministerial, revelou-se de uma eficácia quase profética e milagrosa, pois imediatamente após a sua apresentação… choveu!

Quem sabe, sabe, e o resto é conversa.

Mas, pingas à parte, o problema da água no Algarve até já pôs o próprio Presidente da República a dizer que talvez seja o mais importante da região. Curiosamente, disse-o a poucos quilómetros da implantação de mais uns bons e fresquinhos hectares de regadio no sopé do Cerro de S. Miguel…

O plano apresentado parece mais reactivo do que propriamente proactivo. Ou seja, parece desenhar ferramentas para correr melhor atrás do prejuízo, mas não tanto servir para evitar sufocos.

No Algarve, mais do que haver pouca água, existem muitas e justificadas dúvidas quanto ao seu (re)abastecimento. Porque a incerteza na quantidade e distribuição da precipitação – que é o que nos abastece – é o padrão no contexto climático mediterrânico. Junte-se a isso o efeito ampliador do actual ciclo de alterações climáticas, e o problema é mesmo como gerir interrogações.

Quem chega de fora e olha o Algarve, não adivinha tal coisa, pois só vê certezas, com a água que não há, a ser gerida como se tivesse avonde, com uma displicência transversal. Seja em contexto urbano ou na agricultura, o uso que dela fazemos claramente não é pensado para um recurso limitado.

E o PREHA – em justiça, os elementos disponibilizados na apresentação do PREHA – não parece questionar grandemente tal atitude, ao longo dos seus prometidos 228 milhões de euros de investimento.

Cada vez que se nos seca um pouco a boca, os mesmos de sempre lá nos dizem: isto só lá vai com mais uma barragem. O PREHA não deixa de subscrever essa ideia, admitindo novas barragens nas ribeiras da Foupana e de Alportel – nesta última, curiosamente, até já se projecta um empreendimento turístico que, bruxo, antecipa uma localização marginal a um plano de água.

É certo que o plano também propõe uma abordagem às vertentes da eficiência, das perdas, da fiscalização (quem, com que recursos?) e das fontes alternativas de água. Neste último capítulo, diz que se vai dessalinizar água do mar, pescar água ao Guadiana e reaproveitar águas residuais.

Na primeira experiência tardamos em avançar, a segunda é um somatório interminável de “ses” (incluindo um acordo com Espanha para uma “solidariedade hídrica”, algo que temos tido em abundância…) e na terceira, sortudos os que as encontrem disponíveis, e audazes os que assumam o ónus de assegurar a qualidade das águas residuais que o Estado entrega, à luz do labiríntico Decreto-Lei n.º 119/2019!

Mas e porque soa a aposta nas barragens tão desadequada? Se ninguém nega a sua importância enquanto reservas, será então “apenas” pelo facto das barragens serem infra-estruturas pesadíssimas, com elevados custos económicos e ambientais? Ou será porque estão a ser pensadas fora da sua natureza obrigatoriamente estratégica?

Esta dúvida é legítima, principalmente no Algarve, onde apenas uma década após a conclusão da última – e maior – barragem regional, não se resolveu o que se prometia resolver.

O que correu mal, afinal? Talvez a realidade, com o seu impertinente hábito de se impor.

Mas esta pergunta sacrílega está para o pensamento “estratégico” português como a cruz para o Diabo: é de fugir. É por isso que, a cada nova apresentação de estudos, planos e estratégias, nunca se reflecte aprofundadamente sobre o que falhou nos anteriores estudos, planos e estratégias, o que leva a que se repitam erros. Sem que ninguém preste contas. E se há caso em que vale a pena pensar nisso, é este.

O PREHA reconhece, em maiúsculas, negrito e letras garrafais, que o “problema da SECA na região do Algarve não é circunstancial, é ESTRUTURAL”.

As primeiras barragens algarvias – Arade e Bravura – foram construídas na década de 1950. Em 1986, é concluída a barragem de Beliche. Nos anos 90, num curto intervalo, entram em operação as barragens do Funcho e de Odeleite. Há 10 anos, iniciava-se o enchimento da albufeira da barragem de Odelouca, a tal que tem a particularidade de ser a maior na região, e que, alegadamente, resolveria em permanência os problemas hídricos do Algarve.

Em igual período, a precipitação média para o Algarve desceu dos cerca de 650 mm, no período entre os anos 40 e 70 do Séc. XX, para os 570 mm, entre 1986 e 2018 (mesmo com uma média empolada por anos excepcionais como 1989, 1996 e 2010, cada um com valores na casa dos 1000 mm).

Ou seja, tudo indica estarmos numa tendência decrescente no que à chuva diz respeito.

Se chove cada vez menos, é nesse cavalo que apostamos? Ou seria melhor pensar num camelo?

Também em simultâneo, entre a década de 1950 e, grosso modo, os dias de hoje, o consumo de água no Algarve, no mínimo decuplicou. Tal explica-se por um aumento de cerca de 37% da população nesse período, pelo aumento da cobertura dos sistemas de abastecimento e saneamento na região, pelo aumento da pressão turística – incidindo principalmente nos meses de menor precipitação – e pelo forte incremento do regadio, principalmente na agricultura, graças a barragens e também às captações subterrâneas mais profundas, com recurso a bombagem.

Isto vem provar que a região, no que toca à água, como de resto noutras matérias, é pouco dada a fazer mealheiro. Porque a cada novo reforço de armazenamento, a cada nova folga, a região responde com mais e mais consumo.

Vai daí, sempre que aumenta as suas reservas de água (concretamente as superficiais) não é tanto porque queira criar alguma margem de segurança para os apertos que inescapavelmente sabe que vai passar algures no futuro, mas para poder continuar a estoirar água, empurrando com a barriga as preocupações.

No fundo, em vez de ajustar as suas necessidades às disponibilidades, o Algarve tem trilhado um rumo de procura de disponibilidades que cubram as crescentes necessidades que vai criando num contexto de cada vez menos chuva, ou seja, aposta numa jogada a crédito ambiental que tem tudo para correr mal, e cada vez pior.

A propósito, o Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas do Algarve, que versa também sobre esse tema, foi considerado na elaboração do PREHA?

Portanto, não é que ter mais reservas seja mau. Fazer investimentos – que poderiam ser dirigidos para medidas mais eficazes – para ter mais reservas que provavelmente vão ser sempre deficitárias, e que irão servir um modelo de má utilização e desperdício, é que é mau.

E é por isso que este Plano que agora se apresenta, não obstante a generosidade de algumas das suas propostas e a bondade de todas as pessoas que para ele contribuíram, corre o risco de apenas chapinhar na superfície do problema. Enquanto não se atacar a estrutura, não se resolvem os problemas reconhecidamente estruturais.

Mexer na estrutura passa por repensar a fundo muita coisa. Não apenas no consumo humano directo, mas também na perspectiva ecológica da água.

O facto dos aquíferos regionais se encontrarem, em média, com níveis abaixo dos 20%, originando não só escassez, mas degradação qualitativa da água e riscos de intrusão salina em algumas massas de água subterrâneas, é um problema de primeira ordem, pois a salinização de aquíferos e do solo é uma vanguarda da desertificação (e temos exemplos bem próximos).

Talvez fosse tempo de, por exemplo, aplicar o princípio do utilizador/pagador às águas subterrâneas, pelo menos para consumidores de larga escala. Talvez assim o regadio numa zona de escassez/incerteza hídrica deixe de ser tão irresponsável, só para dar um exemplo no sector responsável pela maior parte dos consumos.

Muitos outros poderiam ser dados, naturalmente, em todos os sectores de consumo.

Mas antes disso, e para não se gastar mais latim em vão, há que perceber que a resolução deste problema não virá de um plano. Infelizmente, também já percebemos que não virá dos decisores.

Apenas a sociedade, como um todo, poderá, se assim o entender, dar-se ao trabalho de pensar responsavelmente a fundo sobre o tema, agir em conformidade e exigir, actuando também, que as coisas mudem profundamente.

Ou não. Está nas nossas mãos.

Até lá, é escolher entre as sugestões de uma casta ex-ministra ou de uma optimista deputada, e rezar ou esperar que chova.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP).
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)


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