Os cidadãos optam cada vez mais por carros elétricos ou híbridos porque estão preocupados com as questões da sustentabilidade. Isso e o facto de os sistemas de transportes dentro das cidades terem uma diversidade de oferta cada vez maior – desde autocarros de baixas emissões até às bicicletas ou trotinetes – faz com que seja possível acreditar que a mobilidade sustentável vai chegar depressa às nossas cidades. É esta a opinião do diretor para o Capital Natural da Direção-Geral do Ambiente da Comissão Europeia (por “capital natural” entende-se a natureza e a biodiversidade, de par com conceitos como “capital humano” ou “capital financeiro”).
Em entrevista ao Observador ECO, Humberto Delgado Rosa comenta o Pacto Ecológico Europeu, lançado pela atual presidente da Comissão Europeia, e explica de que maneira a pandemia do novo Coronavírus interferiu, para o bem e para o mal, nesta estratégia.
“Genericamente, os poderes públicos têm dado passos no sentido da sustentabilidade”, porque, “sobretudo, há um reconhecimento pela opinião pública de que há um problema com as alterações climáticas e com a perda de biodiversidade e ecossistemas”, afirma.
Logo, o tema sustentabilidade “está a subir na agenda política” europeia.
Humberto Delgado Rosa exerce as atuais funções desde novembro de 2015. Os portugueses recordam também a sua passagem pelo Governo, como secretário de Estado do Ambiente, entre 2005 e 2011. É doutorado em biologia evolutiva e licenciado em biologia pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
O Pacto Ecológico Europeu é uma das apostas da presidente da Comissão Europeia, Ursula van der Leyen. Já estamos a ver os efeitos concretos? Houve alterações provocadas pela pandemia?
Já deu alguns resultados muito concretos no campo político e a pandemia veio também mostrá-lo. De dois pontos de vista. Primeiro, todos sabemos que depois desta paragem das sociedades e das economias é preciso um plano de recuperação. Há um vasto apoio, quer político quer de empresas na Europa, no sentido de que essa recuperação deva ser verde e digital. Ou seja, não devemos simplesmente voltar a antigas práticas poluentes, mas seguir, no fundo, o que eram as diretrizes do Pacto. Em antecipação, ele já mostrava o caminho adequado para a Europa. Um outro aspeto que acho interessante: sim, houve algum atraso em iniciativas da Comissão por causa da pandemia, tivemos todos que nos adaptar, mas apenas dois meses mais tarde do que o previsto vimos duas estratégias do Pacto Ecológico serem conjuntamente aprovadas: a Estratégia Europeia para a Biodiversidade 2030 e a Estratégia para um Sistema Alimentar Sustentável, dita “Do Prado ao Prato”. Isto mostra bem como não só a pandemia não impediu outras iniciativas, como algumas delas são, em si, as mesmas respostas à pandemia, quer pelo potencial de recuperação, quer, no caso da natureza, por nos proteger e tornar mais resilientes contra futuras pandemias – porque elas vêm de um mau uso que estamos a fazer da natureza e da biodiversidade.
Uma das metas do Pacto Ecológico Europeu é a “instalação de um milhão de pontos públicos de carregamento de automóveis elétricos até 2025”. Significa que a Comissão Europeia está a fomentar um aumento exponencial na utilização de elétricos?
O Pacto Ecológico identifica o setor dos transportes como um daqueles em que é preciso mais drásticas e fortes reduções de emissões, estimadas em menos 90% até 2050, e também como uma área em que essa redução é, porventura, mais difícil. Para clarificar de que tipo de veículos estamos a falar: falamos de veículos de emissões zero ou de muito baixas emissões. Existe ainda uma certa neutralidade tecnológica, dentro deste objetivo de emissões preferencialmente zero ou muito baixas. Nesse campo, evidentemente, os veículos elétricos são uma aposta clara, porque as emissões, pelo menos no terminal veículo, não estão lá. Pode-se questionar: “mas haverá emissões na produção de eletricidade?”. Pode haver, quando ela vem de combustíveis fósseis, mas sabemos que podemos ter eletricidade verdadeiramente limpa quando feita através de energias renováveis. Dito isto – com todas as medidas que se pré-identificam sobre fiscalidade, favorecendo baixas emissões, ou o trazer o setor dos transportes para o comércio de licenças de emissão –, vai-se dar um grande estímulo aos veículos que substituem os de combustão, nomeadamente os de baixas emissões. Os veículos elétricos são uma dessas alternativas, como serão os veículos a hidrogénio, quando estiverem mais generalizados.
Quem vai instalar estes postos públicos de carregamento e como?
São postos de abastecimento para todas as tecnologias que sejam de emissão zero, o que inclui, com certeza, postos de carregamento elétricos. Não se pode é esperar que seja a Comissão Europeia ou os seus funcionários a instalar postos. Os estados-membros têm os seus planos de investimento próprios. O que está anunciado, isso sim, é que a Comissão Europeia trará, através dos fundos europeus, um grande impulso e estímulo para esta instalação. Será, portanto, um trabalho conjunto com os estados-membros, que são indispensáveis no planeamento e decisão sobre onde é que esses postos fazem falta.
Os transportes públicos em Portugal devem ser tendencialmente elétricos ou híbridos? Isso relaciona-se com o conceito “neutralidade tecnológica” que agora referiu?
Não cabe à Comissão, ou a mim, enquanto funcionário da Comissão, dizer o que está certo ou errado. Comentando genericamente: o transporte público está a sofrer uma grande mutação na Europa, em muitas frentes. Uma dessas frentes é disponibilizar transportes públicos mais sustentáveis. Temos visto em muitas cidades e países europeus uma aposta em veículos híbridos, também em veículos a gás natural, e estão a surgir transportes públicos, incluindo autocarros, plenamente elétricos. Não será de estranhar que também em Portugal haja uma aposta neste sentido. Em todo o caso, não deixo de dizer que o transporte público também está cada vez mais associado a uma grande diversidade de tecnologias, plataformas e aplicações, que trazem alternativas à pessoa que se quer deslocar. Nem toda a gente tem necessariamente que ir para o autocarro, para o metro e para o elétrico se puder, desde logo, andar a pé, se puder, com a sua aplicação, recorrer a uma trotinete, uma scooter, uma bicicleta. Vimos, nomeadamente no contexto da pandemia, como houve um impulso muito grande no uso da bicicleta, que muitas vezes estava ali na garagem e nem pensávamos em usar. Muitas autarquias de grandes cidades, de Milão a Bruxelas, entre muitas outras, aproveitaram o momento para fazer obras para mais faixas de bicicletas. Portanto, há uma conjugação de várias formas de transporte, todas mais sustentáveis, e que não implicam ser tudo do tipo “a” ou do tipo “b”. Mais uma vez, há uma certa neutralidade tecnológica, desde que o objetivo seja pouca poluição, pouco ruído e acesso a mobilidade sustentável para todos.
Essa visão aplica-se também ao transporte individual?
Aplica-se. No fundo, o que o cidadão quer é deslocar-se. Há uma tendência já identificada em meio urbano, em que as camadas mais jovens da população adulta querem, sim, mobilidade, querem inclusive utilizar um automóvel, se fizer falta, mas não querem necessariamente ter um automóvel. Hoje, a diversidade de ofertas de
“carsharing”, do ir buscar um carro com a minha aplicação, ou a bicicleta ou a trotinete, faz parte das opções de transporte individual. Claro que continua a haver lugar para o carro individual, e felizmente está a haver aí um movimento de aquisição de veículos de menores emissões, que acabam por ter a longo-prazo menos custos. Todo este pacote ajuda muito a acreditarmos que podemos, sobretudo em meio urbano, chegar mais depressa a uma mobilidade sustentável.
Como será o futuro próximo ao nível dos postos de carregamento de veículos elétricos em Portugal? É desejável que haja mais, até para as pessoas optarem pela mobilidade elétrica?
Devo confessar que, como cidadão, tenho um veículo elétrico. Nesse sentido, só posso apreciar que essa disponibilidade exista. Claro, quem tem uma garagem com uma “box” instalada tem uma facilidade maior. Mais postos de carregamento em meio urbano é muito importante, mas também é importante irmos pensando como é que podemos fazer uma viagem Lisboa-Porto ou Faro-Lisboa com disponibilidade de postos de carregamento. Portanto, sim, creio que genericamente essa será uma boa aposta para Portugal e para qualquer outro país da União Europeia.
Os poderes públicos – autarquias, Estado central, instituições europeias – já estão empenhados na sustentabilidade? O discurso corresponde a ações concretas?
Genericamente, direi que sim, os poderes públicos, em todos os níveis e de forma geral, têm dados passos no sentido da sustentabilidade. Mas faço um comentário prévio. Isso acontece porquê? Por um lado, há o reconhecimento do problema, mas sobretudo há um reconhecimento pela opinião pública de que há um problema com as alterações climáticas, com a perda de biodiversidade e ecossistemas, etc. Os factos e a perceção dos factos têm vindo a convergir na opinião pública, como se pode ver pelo movimento da juventude, as greves climáticas, que acabam por ter “slogans” e objetivos mais vastos. Os resultados em eleições regionais, nacionais e europeias têm mostrado este grande poder da opinião pública. Temos também os inquéritos de opinião Eurobarómetro, que fazemos regularmente na Comissão Europeia, que mostram níveis de apoio a mais ação ambiental bem acima dos 90%. Em regimes democráticos em particular, e até para além deles, o poder da opinião da maior parte das pessoas é muito importante. Podemos, por isso, ver hoje autarquias, estados-membros, regiões e também os poderes europeus – como o Pacto Ecológico bem demonstra – a fazer subir na agenda política a sustentabilidade como uma matéria muito relevante. Há um enfoque no problema das alterações climáticas, a par com o problema da biodiversidade. As medidas concretas já existem desde há muito. Longe, claro, de estar tudo perfeito. O acervo de legislação climática e ambiental da União Europeia deu-nos muitíssimo. Na Europa respiramos muitas vezes ar de qualidade, podemos beber água da torneira, os nossos resíduos são tratados, temos a maior rede de áreas protegidas do mundo. Isto não faz com que sejamos sustentáveis, não há nenhuma parte do mundo que possa clamar estar já sustentável, mas tem havido ação concreta. O ritmo de degradação, de crescimento populacional, de consumo, etc., tem feito que, apesar dos casos de sucesso, a degradação continua a manifestar-se. Nesse sentido, falta fazer muito. Creio que o Pacto Ecológico dará um grande impulso nesse sentido.
Portugal está a preparar-se para os efeitos adversos das alterações climáticas?
Não me cabe, mais uma vez, fazer comentários país a país, mais ainda quando é do meu país que se trata. Mas posso dizer o seguinte: Portugal está no sul da Europa, que é a zona identificada no contexto europeu como tendo maior suscetibilidade aos extremos climáticos e aos impactos das alterações climáticas. Muitos desses impactos já os conhecemos de antes da era das alterações climáticas: fogos florestais, secas, cheias, ondas de calor, erosão costeira. Temos vindo a verificar que há cada vez mais extremos, como nos fogos florestais devastadores de 2017, potenciados por um lado pelas alterações climáticas e por outro lado por ter,ps hoje um ecossistema florestal que não está em boas condições ecológicas para ser resistente. Creio que quer na frente de adaptação quer na frente de implicação Portugal tem desde há muito tempo, não estou a falar só deste ciclo governativo, apostas bem reconhecíveis. Por exemplo, na redução de emissões ou na aposta nas energias renováveis.
Sabemos que as deslocações de membros do Governo em Lisboa já são feitas em veículos elétricos? É uma medida positiva?
É positivo adotar veículos de baixas emissões. Posso começar por um pequeno episódio: também estive no Governo, no passado, com funções de secretário de Estado do Ambiente, e muitas vezes me surpreendi por obter notícias sobre o facto de usar o transporte público – e de facto usava, porque me dava jeito – ou por ter tido o primeiro veículo híbrido do Governo da altura. Isso já mostra que, como indivíduo, acredito no poder do exemplo e acho que de facto os governantes devem dar o exemplo. Se há condições para deslocações dos membros do Governo em veículos que não emitem, independentemente da tecnologia, parece-me um muito bom exemplo para os cidadãos.
Defendeu num recente artigo de opinião que “uma cidade inteligente tem que ser verde e azul”. Que significa?
Muitas vezes vi associar esta ideia de “smart cities” à a cidade em que os transportes e o sistema energético sejam sustentáveis. Sem dúvida, nenhuma cidade pode ser inteligente sem investir nesta frente, da energia e dos transportes. No entanto, parece-me incompleto esse conceito. Uma cidade inteligente tem de estar concebida como um ecossistema urbano, que faculta aos seus cidadãos o acesso a espaços verdes, a árvores, a aves, a água limpa, a pontos de bem-estar. Além do gosto que o cidadão tem, isso traz muitos outros benefícios. A infra-estrutura verde, bem aplicada aos edifícios, ajuda a controlar as temperaturas, substitui ares condicionados, traz mais polinizadores às cidades. Há todo um potencial de usar a natureza nas cidades para benefício dos cidadãos. Há um bem-estar físico, pelo desporto e lazer que se pode fazer num espaço verde, há um bem-estar mental, porque o ser humano veio da natureza e precisa dela, e há um bem-estar social, pelo convívio que se pode ver numa horta urbana ou num jardim. Creio que neste confinamento muitos de nós estivemos em apartamentos e por via do maior silêncio exterior ouvíamos mais aves ou sentíamos o apelo de gozar perto de nós uma natureza que muitas vezes não está lá e podia estar. É neste sentido que digo que uma cidade inteligente é uma cidade verde e azul.
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