sábado, 13 de junho de 2020

Sobre a violência: a estátua de Vieira e a ignorância

António Carlos Cortez


A respeito da destruição e vandalização de estátuas que representam heróis do passado, quer em diversas cidades dos EUA, quer em outras cidades do mundo, vale a pena partir dum pressuposto teórico e prático que, em rigor, nos ajudará a ver melhor a razão de alguns actos de violência levados a cabo recentemente. A reboque da indignação por mais uma morte dum afro-americano, Floyd, mártir entre mártires, não se contesta e não se pode contestar a raiva (também muitos europeus a sentem, e americanos também) por, no século XXI, ciganos, índios, negros – no fundo, os humilhados de sempre – continuarem a ser ofendidos, assassinados, ostracizados, discriminados.

Todavia, convém não perder de vista que a mundividência e mundivivência do homem branco nesse passado que, a vários títulos, deve ser conhecido para que não se repitam erros reiterados, assentava numa lógica imperialista da Europa dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. Uma visão própria da “era dos impérios” e que, no dizer de Hobsbawm, se prolongou com o poder político do complexo industrial-militar no país de Trump. A mesma lógica, no fundo, que o Poder sempre seguiu para manter privilégios de classe e explorar quer recursos naturais de outras nações, quer outros homens dentro da própria nação, sejam eles negros, ciganos, judeus, brancos.

Foi assim desde a rainha Vitória, passando por Cecil Rhodes a Leopoldo II, foi assim desde os tempos de Edward Colston, comerciante de escravos, e desde Colombo, às teses darwinistas do século XIX, sem esquecer o actual paradigma neo-darwinista e geneticista, que tudo pretende explicar a partir dum ultra-cientifismo que esquece que o mundo humano é feito de contradições. Foi a ignorância e o preconceito que moldaram a visão do Poder, sempre empenhado em reduzir a animais de carga (leia-se Cesário) os que não nasceram com brasão ou não fazem parte das elites financeiras, militares, políticas, desde os fascismos ao apartheid, do estalinismo aos regimes de Pol Pot ou de Pinochet. Este mesmo programa de exploração continua hoje com Bolsonaro no Brasil e com Maduro na Venezuela, com Orbán na Hungria e Erdogan na Turquia; continua com os neo-liberais-fascistas que vão tomando conta das empresas e em Portugal continua sob a forma de uma investida tecno-totalitária que visa eliminar a memória. 

Estátua do rei Leopoldo II, uma figura controversa da história da Bélgica, grafitada no parque do Museu de África, em Tervuren, na Bélgica. EPA/STEPHANIE LECOCQ

Esta violência tem já consequências. A pretexto deste coronavírus, muitos patrões, e muitos governos, ao serviço de grupos económicos globais, defendem a revolução digital segundo um mesmo princípio imperialista e de dominação financeira. Para que tal aconteça, convém fazer do paradigma científico um instrumento ao serviço da minimização das humanidades. Na minha perspectiva, é precisamente o facto de termos hoje gerações e gerações de crianças e jovens (jovens adultos desempregados, explorados nas relações de trabalho, vivendo nas periferias, americanizados da pior maneira, mimetizando tudo) que não sabem de História e nada aprenderam de Literatura que justifica que tenha sido uma estátua de Vieira a ser vandalizada. Ignoram, talvez, alguns factos da vida do grande sermonista.

Como defendeu Hannah Arendt em On Violence (Sobre a Violência, Relógio d’Água, 2014), na esteira de Lenine, segundo o qual o século XX seria um tempo de guerras e revoluções, é a revolução tecnológica, imparável, que escraviza o homem e o coloca num processo em que a fé irracional na tecnologia o transforma na vítima daquilo mesmo que inventou. A consequência desse homo tecnologicus é ser ele um escravo da ignorância, um cultor do niilismo. É, pois, a ausência da História e da Cultura que leva aos radicalismos. No sentido que lhe dão Leopold Senghor, mas também Thommas Mann ou Herman Broch; Angela Davis ou Spke Lee, e, no mundo português, Agostinho Neto ou o movimento Claridade; no sentido pluralista que muitos intelectuais formados no seio da Seara Nova (Sérgio, por exemplo, ou Cortesão) entenderam ser o dever das democracias, é pela Cultura e pelo saber da História e da Literatura que se pode, hoje, projectar um futuro. Justamente os homens da Seara Nova apontaram como saída para o “caso colonial português” uma educação ancorada numa cultura integradora, em que o propalado lusitanismo ou ecumenismo lusíada nada tinham que ver com a retórica patrioteira de salazares e companhia fascista.
Avaliar este acto perpetrado sobre uma estátua de alguém a quem os índios chamavam Payassu ("Padre Grande”, ou “Grande Pai") deveria merecer por parte dos poderes não um apressado revisionismo histórico (em que Vieira e Salazar valem o mesmo), mas uma aposta decidida nas Humanidades

É dentro dum quadro de convivência de culturas, de fraternidade e combate pelo fim das desigualdades e livre acesso ao saber que a revolta dos negros e dos ciganos, das minorias e de quantos, pobres, são explorados pelo Capital do Empresariado, que se deve pensar e agir. O que explica que a estátua de Vieira tenha sido vandalizada é o não se saber que foi Vieira o mais destacado defensor dos índios do Brasil. Foi Viera quem denunciou a exploração dos colonos de São Luís do Maranhão. Foi Vieira quem denunciou os que, vivendo do tráfico, não respeitavam a lei régia de D. João IV, à luz da qual o tráfico de índios naquela colónia era proibido. Foi Viera quem, atravessando o Atlântico dezenas de vezes, fez chegar a Roma os abusos dos torcionários da Inquisição. Foi Vieira quem redigiu a lei que defendia e colocava os índios que estivessem sob a alçada das missões jesuítas longe dos arbítrios de colonos sanguinolentos. Vieira foi, ele próprio, vítima de ostracismos vários por ser mestiço. E foi preso e denunciado pelos padres da Inquisição que viam nele um feroz opositor das negociatas esclavagistas a que a Igreja fechava os olhos, mas que ele, como homem de Igreja, combatia.

O célebre Sermão de Santo António aos Peixes é prova provada do amor à humanidade em todas as suas formas. As próprias palavras escritas a vermelho ("Descoloniza") mostram que é a ignorância – e a ausência dum saber sólido que a escola não deu, que a educação, falha de Literatura e de Humanidades, não pode dar aos que nasceram já nos anos 2000 – o motor que, no fundo, aliado à fúria (que é legítima), tudo brutaliza. Avaliar este acto perpetrado sobre uma estátua de alguém a quem os índios chamavam Payassu ("Padre Grande”, ou “Grande Pai") deveria merecer por parte dos poderes não um apressado revisionismo histórico (em que Vieira e Salazar valem o mesmo), mas uma aposta decidida nas Humanidades. Só através duma educação centrada na compreensão da alteridade poderemos vencer esta nova guerra em que os humilhados da História se viram para as elites e lhes apontam – com toda a razão – os seus olhos de fome e de miséria. Guerra, diga-se, que implica gestos simbólicos que não falhem o alvo. Carmona fora do Panteão Nacional, eis o que seria um sinal dum Estado culto.


Poeta, crítico literário e professor

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