segunda-feira, 1 de junho de 2020

A Covid-19 e a estreita intimidade entre Passado, Presente e Futuro

Maria do Carmo Vieira

Nunca como nesta situação de confinamento, incluída num grupo de risco, me mantive tão atenta a pormenores, constatando, com uma nitidez que até aí não sentira, a abissal diferença entre um jornalismo profissionalmente honesto, sério na informação e respeitador do leitor e um que tenta conscientemente desinformar, confundir e desnortear até ao pânico. Pensar nesta dualidade, tão intensamente em antítese, e nas funestas consequências para quem, incauto, se deixa conduzir, levou-me de forma espontânea ao passado, forçosamente aos mais velhos. Lembrei-me, nesse momento, sentindo renovada e profunda gratidão, de todos aqueles que, pela sua postura, na Vida e na Escola, me haviam ensinado desde sempre a pensar, alertando-me para que nunca permitisse que outros o fizessem por mim. Sei que a sua interferência na formação e desenvolvimento da minha personalidade foi crucial e daí a impossibilidade de os esquecer, e a gratidão, a imensa gratidão! que o Tempo não cessa de intensificar.


Na minha memória passam, em grande saudade, inúmeros rostos, alguns já desaparecidos e, inúmeros rostos, alguns já desaparecidos, com destaque superlativo para os meus pais, seguindo-se a minha professora de Português e de Grego, no Liceu Rainha D. Amélia, Georgette Costa, a minha Professora de Latim, no mesmo liceu, Manuela da Palma Carlos, o meu Professor de Linguística, na Faculdade de Letras de Lisboa, Lindley Cintra, e outros, felizmente ainda entre nós, como a minha professora de Francês, também no liceu anteriormente referido, Maria Alzira Seixo, que depois reencontrei na Faculdade de Letras, e o meu Professor de Literatura Francesa, na mesma Faculdade, o poeta Manuel Gusmão. Seja em matéria relacionada com o Outro, ou qualquer aspecto da Condição Humana, seja sobre a imperiosa necessidade de um Ensino de qualidade e de uma Cultura não transformada em espectáculo e mero entretenimento, seja ainda em relação a um Acordo Ortográfico decretado em nome de uma pseudo-vantagem económica, ao arrepio da vontade dos portugueses e colidindo com toda a argumentação científica, sei que em todas estas matérias, e muitas outras, em que intervenho criticamente, a minha voz não é só, porquanto reflexo de inúmeras influências, passadas e presentes, que a fortaleceram e fortalecem, sendo seguro que continuarão a acompanhar-me. Tal como as vozes que pelo canto ligaram toda uma geração e às quais, a tantos anos de distância, permanecemos fiéis. Arrepia-se-nos a pele no reencontro com essas velhas canções cujas letras profundamente influenciaram a nossa forma de olhar o mundo de então e que, em grande saudade, ouvimos insistentemente, servindo-nos da internet da qual nunca esperámos vir a depender tanto, confinados que estamos em casa. E eles são, entre muitos, Jacques Brel, Jean Ferrat, Bob Dylan, Joan Baez, Simon & Garfunkel ou Peter, Paul and Mary, desejando partilhar convosco uma canção destes últimos, Where have all the flowers gone. Ainda para os avós que, como eu, deixaram de poder abraçar e beijar com ternura os seus netos, Mary Travers (do grupo Peter, Paul and Mary), numa música de John Denver, For Baby. Todos pertencendo à “geração grisalha” e alguns já não entre nós, como é o caso de Mary Travers.

Uma longa introdução para lembrar aos que proclamam uma melhoria da situação, com o desaparecimento dos velhos (seja em prol de um Ensino, dito “inovador”, ou do êxito de uma economia liberal e desumana, ou ainda no cumprimento acrítico do novo Acordo Ortográfico), que todos nós, ao nascer, somos, como naturalmente constatou Hannah Arendt, recebidos pelos mais velhos que nos protegem e educam. É esta a única harmonia possível, na vida de todo o ser humano – uma estreita intimidade entre Passado, Presente e Futuro.

São vários os artigos de opinião, nacionais e estrangeiros, que lucidamente ousam indicar a imperiosa mudança que deverá acontecer, fruto desta experiência tão inesperada, com a Covid-19, mas não é certo que muitos políticos, nacionais e estrangeiros, afogados em pretenso “progresso” e crescimento desenfreado, no uso de um vocabulário que evoca a nova Economia e que poderemos exemplificar pelo verbo “elencar” e o substantivo “competitividade”, venham a aperceber-se dessa óbvia necessidade de transformação, de recuo da loucura em que estamos envolvidos, e daí a urgente necessidade de sermos nós, cidadãos, contínua e criticamente, a lembrá-lo.

Não basta elogiar de forma intensa o Serviço Nacional de Saúde (SNS), seja qual for o país, ou aplaudir, com emoção, médicos, enfermeiros e pessoal afim, ou dizer que à sua actuação devemos a vida; exige-se, mais do que nunca, que se responda favoravelmente a quem in loco sente, no dia-a-dia, os problemas, para os quais, e muito antes do surto epidémico, o SNS chamara a atenção, infelizmente em vão. Não significa que não se tivesse investido, sobretudo depois de uma austeridade imperdoável e brutal, mas constatou-se não ter sido o suficiente e conhecemos a origem desse travão que não pode mais ser tolerado, sob condição de se tornarem uma hipocrisia insuportável os sucessivos agradecimentos e aplausos, ostensivamente dirigidos a todos os profissionais do SNS que, não discriminando pessoa alguma, e superando-se humanamente, têm sido determinantes no atenuar do pesadelo que todos vivemos. Por alguma razão, em todo o Mundo, acontecem, amiúde, os aplausos sentidos e genuínos da população ao SNS.

Foram os portugueses aconselhados, há já bastantes anos, a viver, em grande parte, de uma economia de turismo a qual se tornou selvagem pelo que representa de destruição do ambiente e da vida das pessoas, com um aumento desmedido de rendas e despejos, a que se juntou o desconcerto de filas intermináveis para visitar alguns monumentos, nomeadamente os claustros do Mosteiro dos Jerónimos ou a Torre de Belém, vedados, por completo, e desde há anos, aos residentes. Também o terreno agrícola fértil tem sido alvo da ganância turística e imobiliária, sob o olhar complacente do poder político, esquecido que em momentos de crise não podemos depender exclusivamente de alimentos importados. A serra de Carnaxide, de “grande importância ecológica e ambiental”, é um flagrante exemplo de um espaço desprotegido porque não classificado, fazendo “os seus solos parte dos 5% de solos muito férteis que Portugal possui”. Entretanto, aproveitando-se do confinamento das pessoas, os trabalhos de loteamento e urbanização avançaram na sua gritante destruição, sobrepondo-se o gesto vil às vozes dos que não traem o Conhecimento, a sua consciência e a sua solidariedade com os que persistem nas causas em que se empenham. Destacamos, neste caso, os investigadores da área do Ambiente e Alterações Climáticas, Filipe Duarte Santos, Eugénio Sequeira e Jorge Fernandes (este último, Professor destacado na Liga para a Protecção da Natureza). Há uma petição, “Preservar a Serra de Carnaxide”, sendo o seu primeiro subscritor Daniel Martins, que acentua o facto de “isto não ser uma questão local”, mas “uma questão nacional.” Concordando com o seu conteúdo, ajude a divulgá-la e, para um melhor conhecimento da situação, aconselha-se a leitura do artigo de João Pedro Pincha, no jornal Público de 1 de Abril.

Quando se abdica de estudos de impacto ambiental ou se solicitam os mesmos a equipas “voz-do-dono”, numa atitude inqualificável, quando se tenta entreter indeterminadamente movimentos ecológicos que persistem na defesa da Natureza, casa de todos nós, negando-se o diálogo e fazendo-se simultaneamente tábua rasa dos pareceres críticos apresentados, ou quando se tenta “convencer pedagogicamente” presidentes de Câmara, que se opõem à construção do aeroporto, no Montijo, mediante alguns favores a conceder, em troca do almejado sim, estamos perante uma democracia doente, que a realidade pós-Covid deverá sanar e em cujo processo de transformação deveremos igualmente participar.

Os desafios são inúmeros e incontornável será a questão relativa à perda de importância da Dignidade Humana, na sociedade globalizante, fortemente determinada por um novo modelo de Economia que tem aviltado, ao longo de demasiados anos, a vida das pessoas, ofendendo de forma ostensiva o seu significado etimológico: do grego oikonomy (oikós - casa - + némein - distribuir). A Economia focada no ser humano não pode pugnar por baixos salários, nem por excesso de trabalho e de cansaço, nem pelo isolamento da família; não pode aceitar toda uma luta pela sobrevivência diária ou a concentração da riqueza numa minoria, já de si enriquecida. Deve contrariar o excesso de taxas bancárias cuja justificação assenta no absurdo ou o mau funcionamento dos Serviços Públicos por manifesta falta de pessoal ou a ganância que não olha a meios para atingir lucros rápidos, espezinhando a Ética, ou ainda a obsessão pelo crescimento, seja a que custo for.

A epidemia de Covid-19, na sua intensa estranheza e nas consequências nefastas que, incrédulos, presenciamos, forçará uma inevitável e bem-vinda alteração substancial da Vida. Houve demasiados erros para não se aprender com eles. Sobretudo, não desejamos continuar a adaptarmo-nos a uma sociedade doente, em que a Ética escasseia, precisamente porque indiferente à Dignidade Humana.

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