Destruir a natureza em nome do ambiente Por Paulo Araújo, Março de 2008
Uma flor em Portugal é tão bonita como noutro lugar qualquer: afinal, a flor mais delicada pode tirar o seu sustento dos efluentes dum esgoto. Mas, se ampliarmos a escala e olharmos em volta, não podemos ignorar nem o esgoto, nem as construções dissonantes, nem as modernas estradas que ferem de morte a paisagem. Portugal é um país cada vez mais feio, e é também por isso que neste blogue temos preferido as coisas pequenas. Nem as árvores, vítimas sistemáticas de podadores sádicos, estão a salvo neste nosso destroçado território; ficam só as flores silvestres para sobre elas nos debruçarmos, alheando-nos voluntariamente da fealdade circundante. Há porém retalhos de Portugal onde não temos que cultivar a cegueira. Um deles fica em Trás-os-Montes: é o vale do Tua, entre a foz desse rio, na margem direita do Douro, e Mirandela, 55 quilómetros a norte. Um vale integralmente percorrido pela automotora que presta serviço diário, duas vezes em cada sentido, na linha do Tua, o mais emocionante troço ferrovário do país. Partindo do Douro, avançamos por uma garganta apertada entre escarpas quase a pique, refúgio de muitas aves, que gradualmente se suaviza e enche de vegetação arbórea: sobreiros, zambujeiros e azinheiras. Em baixo, quando o leito do rio, alargando-se, se faz menos pedregoso, há choupos, amieiros, freixos e salgueiros. Por vezes a linha corre numa estreita plataforma talhada entre dois abismos; aqui e ali esconde-se num túnel; mais adiante atravessa alguma pequena ponte. Dir-se-ia que tudo permanece inalterado desde que a linha foi inaugurada em Outubro de 1887, há mais de 120 anos. Isso, contudo, é ilusório: uma obra desta envergadura deverá ter tido, na época, impactos sérios. Mas a natureza refez-se - e a ferrovia, obra humana, é parte tão genuína desta paisagem como são o rio, as rochas, as plantas e as aves. Uma hora depois da partida, apeamo-nos em Abreiro, ao quilómetro 29 da linha. Para trás ficou a parte mais aventurosa do percurso, e o cenário é agora de terras de cultivo estendendo-se por declives moderados; vêem-se amendoeiras em flor, vinhas, olivais e pastagens. Temos três horas para passear antes de apanharmos o comboio de volta. Já viéramos outras vezes ao Tua, a primeira há mais de 10 anos, mas nunca tínhamos andado a pé nas suas margens. Talvez nunca mais possamos voltar a fazê-lo. Em Fevereiro de 2007, uma derrocada na linha do Tua causou três mortos e levou à interrupção do serviço ferroviário durante quase um ano, tempo que demoraram as obras de recuperação. Agora que a automotora voltou a circular, está iminente, por vontade humana, um desastre de muito maiores proporções: a construção, junto à foz do Tua, de uma barragem que irá submergir o vale e a linha férrea numa extensão de 30 a 40 quilómetros. Nada do que se vê nestas fotos sobreviverá à destruição: o rio transformar-se-á num lago morto, obeso e desmesurado, afogando tudo à sua volta. Não sei se temos os governantes que merecemos; sei apenas que este governo e estes ministros (um deles até se intitula, caricatamente, ministro do ambiente) se empenham, com um denodo nunca antes visto, na destruição do que resta da natureza em Portugal. Além do desenvolvimento, que mesmo proclamando-se sustentável continua a justificar todos os desmandos, invoca-se agora o ambiente: é para cumprir Quioto, aumentar a quota das energias renováveis e outras tretas da mesma laia. Porque, seja qual for o pretexto, a solução é sempre a mesma: mais betão, mais asfalto, mais encomendas aos grandes grupos económicos, mais destruição desenfreada. E, no caso da construção de barragens como as do Tua ou do Sabor, a hipocrisia e a mistificação atingem níveis arrepiantes: destroem-se a paisagem e o património, e promete-se turismo; afogam-se campos, vinhas e pomares, e promete-se água para a agricultura; extinguem-se modos de vida, e prometem-se empregos e desenvolvimento.
1. Petição promovida pelo Movimento Cívico pela Linha do Tua
Petição pela Linha do Tua VIVA
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