sábado, 2 de junho de 2007

Palavras Soltas

Crónica excelente.Subscrevo por baixo.Retratou na perfeição tudo o que sinto e tenho a dizer sobre este assunto.

Por Vasco Pulido Valente
in Público, 1 de Junho de 2007

No exame de Português do 9.º ano, os critérios de avaliação permitem que um aluno possa ter dois pontos (em cinco) com muitas insuficiências de natureza ortográfica, lexical, morfológica e sintáctica. Ou seja, em última análise, permite que um aluno entre no secundário sem saber escrever. Basta que responda com palavras soltas, se der uma ideia que percebeu a pergunta e sugerir vagamente a resposta. Não se compreende como um professor consegue adivinhar o sentido de palavras soltas, com uma ortografia errada, e ainda por cima comparar o mérito, relativo e absoluto, dessas trapalhadas verbais. Mas, segundo a sra. ministra da Educação, há uma técnica, certamente miraculosa, para avaliar competências de leitura e de interpretação. E o primeiro-ministro com certeza acredita.
Toda a gente conhece as mil e uma razões por que as crianças não sabem escrever. Pior do que isso, excepto um ou outro e-mail ou SMS, as crianças não precisam de escrever. Se o Estado suprimisse a disciplina de Português (e já agora o Latim, o Grego, a História e a Filosofia), nem a sociedade, nem o PIB sofriam muito. Suponho mesmo que não sofriam nada. Para a espécie de homem, e de mulher, que por aí crescentemente circula, as "palavras soltas" chegam e sobram. Quem viveu na época em que se escrevia (cartas, por exemplo) aprendeu que escrever é um exercício de investigação e de lógica; um exercício que obriga a definir, ordenar e desenvolver o que se pensa. E também uma tentativa para comover, convencer, informar ou instruir o próximo. A espécie de comunicação pessoal e colectiva que hoje se usa dispensa esse esforço.

Os critérios de avaliação do exame do nosso 9.º ano não passam de um sintoma de uma realidade maior e mais triste: o lento regresso do Ocidente a uma nova espécie de barbárie. Nunca se gastou tanto dinheiro em cultura e nunca a cultura foi tão universalmente desprezada. A classe média, que desde o século XV foi a sua portadora (e criadora) por excelência, está reduzida a viajar com a penetração de um boi (rico) que olha para um palácio. A linguagem pública (religiosa, política, jornalística, musical, literária, cinematográfica, universitária) empobrece dia a dia. A conversa, como arte, morreu, porque as pessoas não têm que dizer e muito pouco interesse em ouvir. O Estado anda a educar as nossas queridas criancinhas para este mundo. Que outra coisa seria de esperar?

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