quarta-feira, 13 de julho de 2022

O estado do ódio em Portugal em 2021


Passaram-se cinco meses desde que o relatório Estado do Ódio: Extremismo de direita na Europa 2021 foi publicado e vários factos vieram confirmar o que foi escrito na sua seção portuguesa: a entrada do Chega no parlamento está a contribuir para a normalização do discurso de ódio no espaço público e a minar os princípios da democracia portuguesa.

Em fevereiro foi publicado o relatório Estado do Ódio: Extremismo de direita na Europa, documento encomendado pela Hope Not Hate, do Reino Unido, pela Expo, da Suécia, e pela Fundação António Amadeu, da Alemanha. A edição contou com uma seção sobre o crescimento da extrema-direita em Portugal.

A seção relacionou a entrada do Chega no parlamento, em outubro de 2019, com a normalização do discurso de ódio, do racismo, da xenofobia, da misoginia, da homofobia e transfobia. Mas também do populismo penal, do autoritarismo, da desinformação como arma política e do securitarismo.

A resposta do partido de extrema-direita e de André Ventura foi a que se esperava: acusar os autores do relatório de terem sido pagos pelo governo, de serem peças num plano conspiratório para ilegalizar o Chega. Lançou acusações infundadas e difamatórias para não responder ao conteúdo de um relatório que o responsabiliza pela normalização do discurso de ódio. É uma já conhecida estratégia sua, e da extrema-direita em geral: lançar suspeitas e fazer-se de vítima.

Nos últimos cinco meses, a prática política de André Ventura e do Chega veio confirmar ainda mais o que foi escrito no relatório: a entrada da extrema-direita no parlamento representa um perigo para a democracia, contamina-a, deteriora o debate público e põe em causa direitos, liberdades e garantias fundamentais.

Vamos a factos decorridos nos últimos cinco meses. Ventura atacou por diversas vezes jornalistas nas redes sociais, lançou uma espécie de fatwa a um professor que o criticou numa aula e foi condenado em tribunal por ofender a honra e imagem de uma família de moradores racializados do Bairro da Jamaica, no Seixal, num debate presidencial.

A Comissão de Carteira Profissional de Jornalista acusou num relatório a campanha presidencial de Ventura de ter sido "notório e foi notícia o clima de ameaças à liberdade de expressão, de informação e de manifestação vivido na campanha do candidato". "As ameaças não foram apenas presenciais. Nas redes sociais, o tom usado por alguns apoiantes e por, pelo menos, um dirigente do Chega é passível de ser enquadrado como crime. Nas redes sociais, o discurso de ódio é uma constante e algumas jornalistas chegaram a receber ameaças diretas", lê-se no relatório.

Um dos visados pelo próprio presidente do Chega foi o jornalista da Visão Miguel Carvalho. O grande repórter tem vindo a publicar uma série de investigações sobre o partido de extrema-direita e André Ventura acusou-o nas redes sociais de ser comunista e de perseguir o Chega. Foi uma clara tentativa de intimidação, foi mais um sinal do que aí viria: meses depois, dirigentes e militantes do Chega ameaçaram de morte os jornalistas Pedro Coelho, José Silva e Andres Gutierrez depois de terem publicado uma investigação sobre o partido.

O crescimento do discurso de ódio também ficou bem espelhado nestes últimos cinco meses. Mais de 32 mil pessoas assinaram uma petição a exigir a deportação do ativista antirracista Mamadou Ba, do SOS Racismo. A deputada Joacine Katar-Moreira queixou-se de ser atacada por polícias nas redes sociais. A jornalista afrodescendente Conceição Queiroz, da TVI, foi vítima de racismo em direto.

Os alertas vindos de fora sucederam-se. A comissária para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, Dunja Mijatović, alertou em março deste ano para o “nível crescente de racismo e da discriminação persistente” em Portugal e instou as autoridades e a sociedade civil a se "intensificar a resposta ao racismo e aos crimes e discurso de ódio, através da adoção e implementação de um plano efetivo, baseado num conhecimento profundo da situação".

Os partidos da direita democrática continuaram a normalizar a extrema-direita. Depois de o PSD se coligar com o Chega nos Açores, foi a vez do partido de Francisco Sá Carneiro, do CDS-PP, do Partido Democrático Republicano (PDR), do Aliança e do Partido da Terra (MPT) apoiarem a candidatura da comentadora Suzana Garcia à Câmara Municipal da Amadora nas autárquicas de 26 de setembro deste ano.

O próprio Chega admitiu no passado que Garcia poderia estar no partido, desempenhando provavelmente protagonismo mediático por as suas ideias e da força política de extrema-direita coincidirem em vários pontos, principalmente no que ao populismo penal diz respeito.

Numa entrevista ao apresentador Manuel Luís Goucha, que é presidente da comissão de honra da candidatura autárquica, Suzana Garcia não teve pudor em dizer: "espero mesmo que o Bloco de Esquerda seja exterminado", tentando depois emendar a mão comparando o incomparável, o partido de esquerda com o Chega.

A extrema-direita portuguesa em 2020
Desde o fim do Estado Novo, em 1974, que Portugal não tinha um partido de extrema-direita no Parlamento. A eleição de André Ventura, líder do Chega, nas legislativas de 2019 rompeu com essa tendência e desde aí que o discurso de ódio (ciganofóbico, anti-LGBTQI+, xenófobo) se tem normalizado na política portuguesa para níveis nunca vistos, criando um clima propenso à violência racista e de extrema-direita.

Essa normalização atingiu um novo patamar em 2020. Houve em agosto uma concentração de extrema-direita, com tochas e máscaras brancas, em frente à sede da associação SOS Racismo, a principal organização antirracista em Portugal. Também se registaram pichagens racistas e xenófobas em escolas secundárias e faculdades, na sede do SOS Racismo e em centros de acolhimento de refugiados. E um centro comunitário em Lisboa foi, também em agosto, alvo de ataque por três elementos identificados pelos ativistas como sendo neonazis, algo sem precedentes nas últimas décadas.

Situações que levaram a Rede Europeia Contra o Racismo (ENAR) a alertar para o “aumento muito preocupante de ataques racistas da extrema-direita em Portugal”, frisando que os ativistas antirracistas “não estão seguros” e pedindo uma “resposta urgente das autoridades portuguesas”.

A infiltração de extrema-direita nas forças de segurança e militares voltou a ser um tema de destaque nacional em 2020, depois de em 2018 o Conselho da Europa ter alertado para este fenómeno.

O racismo em Portugal ficou bem espelhado numa série de casos de violência em 2020, com destaque para três. Em março, uma mulher negra foi violentamente agredida por um polícia por não ter o passe de transporte e, em julho, o ator negro Bruno Candé foi assassinado numa rua na periferia de Lisboa por um idoso enquanto lhe gritava “volta para a senzala”.

O terceiro caso que marcou o ano foi o do assassínio por espancamento e tortura do cidadão ucraniano Ilhor Homeniuk por inspetores do Serviço Estrangeiros e Fronteiras (SEF) no aeroporto de Lisboa, também em março. Os inspetores tentaram encobrir o caso. A prática de violação de direitos humanos nas instalações do aeroporto já tinha sido sinalizada, sem que nada tenha sido feito.

E, por fim, um tribunal de Lisboa confirmou a condenação de oito polícias de uma esquadra por sequestro agravado, ofensas à integridade física qualificada, injúria, denúncia caluniosa e falso testemunho contra seis jovens negros de um bairro periférico de Lisboa. Foi a primeira vez em Portugal que um processo criminal contra polícias teve como pilar motivações racistas e o crime de tortura. De acordo com um estudo de 2020 da Universidade de Coimbra, 75% das queixas de racismo praticado por polícias nos últimos dez anos foram arquivadas e apenas 30% seguiram para o Ministério Público, sem que nenhuma destas tenha resultado em condenações.

A infiltração de extrema-direita nas forças de segurança e militares voltou a ser um tema de destaque nacional em 2020, depois de em 2018 o Conselho da Europa ter alertado para este fenómeno. O Movimento Zero, que agrega agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP), militares da Guarda Nacional Republicana e Guardas Prisionais, continuou a mostrar dinamismo nas redes sociais, assediando e ameaçando ativistas progressistas, e a aliar-se a sindicatos da PSP conotados com a extrema-direita.

No seguimento de uma megaoperação da Polícia Judiciária em 2016, o Ministério Público acusou, em 2020, 27 elementos dos Portugal Hammerskins de tentativa de homicídio qualificada, ofensas à integridade física qualificada e discriminação racial contra 18 pessoas, entre as quais um sindicalista e um negro. O processo judicial não impediu a organização neonazi de continuar as suas atividades, apesar de ter uma menor capacidade de mobilização, revelou a Europol.

Em termos políticos, assistiu-se a uma muito célere normalização do Chega pelo principal partido de direita, o Partido Social-Democrata (PSD), especialmente depois das eleições regionais nos Açores, em outubro de 2020. O Partido Socialista venceu as eleições sem maioria absoluta e o PSD, para ter maioria e formar governo, estabeleceu um acordo parlamentar para os quatro anos da legislatura com o partido de extrema-direita, que elegeu dois deputados regionais. Este acordo está a ser encarado como primeiro passo para um eventual acordo de apoio parlamentar ou coligação governamental a nível nacional na próxima legislatura, caso o PSD precise do Chega para ser executivo.

Nas presidenciais de janeiro de 2021, Ventura alcançou o terceiro lugar com quase 12% e meio milhão de votos – ficando a 1% do segundo lugar. O líder do Chega ficou perto do seu autoestabelecido objetivo: ter um resultado melhor que Ana Gomes, que se afirmou como a candidata antifascista, e que os outros candidatos da esquerda – Marisa Matias e João Ferreira.Numa sondagem de novembro de 2020, o Chega obteve 7,5% das intenções de voto, quando em 2019 conquistou apenas 1,29% dos votos. Incentivados pelo sucesso do partido, tem-se assistido ao longo de 2020 a uma significativa mobilização virtual e nas ruas de Lisboa e Évora da militância de extrema-direita, por ter a esperança de que seja a grande oportunidade de furar na política portuguesa. Novas organizações, como a Resistência Nacional, responsável pela concentração em frente à sede do SOS Racismo, e o movimento Defender Portugal, foram criadas.

O resultado de Ventura nas presidenciais foi também fruto da cobertura recebida pelos médias nacionais, ao centrarem-se na sua candidatura e nos seus pontos chave, naturalizando o programa político do Chega. Isto aconteceu mesmo quando esses pontos não estavam na esfera do exercício de poder da Presidência, que tem fundamentalmente uma natureza de contrapeso ao poder legislativo.

Apesar de muitas pessoas pensarem que Ventura iria moderar as suas posições durante a campanha presidencial, o oposto aconteceu. Pela primeira vez na história eleitoral portuguesa, o candidato da extrema-direita afirmou que não seria o presidente de todos os portugueses, apenas dos “portugueses de bem”; acentuou o seu discurso racista contra a comunidade cigana a níveis nunca antes visto (exceto quando, em abril, propôs um confinamento “especial” para esta comunidade).

Também imitou a atitude de Donald Trump nos debates, ligou o diretor de campanha de Ana Gomes, Paulo Pedroso, à pedofilia e apostou numa postura nacionalista e religiosa apresentando-se como “homem providencial” que veio salvar Portugal dos últimos 47 anos de corrupção e clarificou a sua posição contra a Constituição portuguesa.

Principais narrativas da extrema-direita portuguesa
O Chega em 2020 voltou a dar um novo palco às narrativas chave da extrema-direita portuguesa, elevando-as para patamares nunca antes vistos no discurso político desde a queda do Estado Novo.

Na II Convenção do Chega, 15% dos delegados votaram a favor de uma moção que defendia a remoção dos ovários às mulheres que terminassem voluntariamente a gravidez. A comunidade LGBTQI+ tem sido um dos alvos preferenciais do partido, composto por importantes alas evangélicas e ultracatólicas. O partido recusa o casamento por casais do mesmo sexo, defendendo a família tradicional, por exemplo.

O alvo preferencial de André Ventura é a comunidade cigana, apesar desta constituir menos de 0,5% da população portuguesa. Na primeira fase da pandemia, o líder do Chega pediu medidas de confinamento especiais para esta comunidade e tem ativamente recusado a existência de racismo em Portugal. O Chega chegou inclusive a organizar uma manifestação em Lisboa com o mote “Portugal não é racista” e apresentou um projeto-lei para impedir filmagens de atuações policiais sobre “grupos étnicos ou raciais minoritários”.

A narrativa anti-imigração é um dos grandes temas da extrema-direita portuguesa e o Chega faz eco dela. Tem criticado o acolhimento de refugiados pelas autoridades portuguesas e denunciado alegadas redes de tráfico na sequência de seis desembarques na costa algarvia de Dezembro de 2019 a Setembro de 2020, ao mesmo tempo que tece ligações entre terrorismo, o Islão e os refugiados. Além disso, quer retirar o acesso de imigrantes não documentados e refugiados ao Serviço Nacional de Saúde.

A extrema-direita portuguesa também se tem focado, à semelhança de anos passados, na narrativa de combate à “ideologia de género” e ao “marxismo cultural”, criticando pelo meio um alegado enviesamento à esquerda dos órgãos de comunicação social. O combate cultural tem sido um dos principais eixos de atuação deste quadrante político em Portugal.
Reação à pandemia de covid-19

A extrema-direita portuguesa tem tentado capitalizar o descontentamento e frustração advindos das restrições impostas para combater a pandemia de covid-19. Num primeiro momento, o Chega defendeu o encerramento de fronteiras e medidas mais duras por parte do Estado, acabando depois por recusar as declarações de Estado de emergência, o distanciamento social e o uso de máscaras.

Recusando o confinamento, o partido de extrema-direita organizou durante o Verão duas manifestações em Lisboa: uma com o mote “Portugal não é racista” e outra contra a pedofilia, tema muito caro para as fileiras do Chega. A partir daí, as mobilizações de extrema-direita nas ruas tornaram-se relativamente constantes, organizadas por movimentos negacionistas (Pela Verdade, Verdade Inconveniente, Médicos pela Verdade) da pandemia com dirigentes ligados ao Chega e com ligações estabelecidas a movimentos congéneres em Espanha. Os protestos começaram por ter umas poucas dezenas de participantes e têm hoje algumas centenas.

À medida que os meses foram passando e cada vez mais sectores económicos sofriam grandes dificuldades, como o da restauração, assistiu-se a protestos a exigir apoios do Estado e o levantamento das restrições sociais. A extrema-direita infiltrou-se e tem-se tentado colar a estes protestos. Houve tentativas de agressão a um jornalista. André Ventura, líder do Chega, juntou-se a um protesto da restauração, em Lisboa, na esperança de capitalizar o descontentamento.

Tem-se ainda assistido a uma significativa mobilização da extrema-direita nas redes sociais, difundindo teorias da conspiração, propaganda e fake news sobre a crise pandémica. O universo de conspiração QAnon foi adaptado para a realidade portuguesa. O governo do Partido Socialista é acusado de estar a impor uma ditadura comunista no país, Bill Gates é apontado como responsável pela pandemia, a rede 5G está relacionada com o coronavírus e as vacinas são falsas e produto de uma conspiração globalista.

Há pelo menos 250 portugueses militantes de extrema-direita bem inseridos nas redes sociais negacionistas com epicentro em Alemanha e França, coordenando depois protestos em Lisboa nos mesmos dias dos de Berlim e Paris, normalmente ao fim-de-semana.

A ameaça da extrema-direita em 2021
A extrema-direita vai tentar capitalizar o descontentamento e frustração advindos da crise económico-social causada pelas restrições impostas para travar a pandemia de covid-19. A infiltração da extrema-direita nos protestos por melhores condições de vida de sectores mais afetados pela pandemia, como o dos pequenos e médios empresários, tenderá a prosseguir. Não se pode afastar a possibilidade de eventuais ameaças ou a repetição de agressões a jornalistas nas ruas portuguesas.

A normalização do discurso de ódio por atores políticos, a intensa difusão de propaganda e desinformação nas redes sociais deverão continuar a contribuir para um clima de violência racista e de extrema-direita em Portugal, já visto em 2020. Este contexto tenderá a beneficiar a criação de novos movimentos e o alargamento da base social dos já existentes, não esquecendo a realização de ações de rua.

O isolamento social, fruto das restrições contra a pandemia, e a normalização de discursos de ódio poderão dar origem a processos de autorradicalização, principalmente entre os jovens da população de zonas urbanas, mais expostos à exclusão social. O recrutamento de jovens pelo sector identitário tem sido uma das novas tendências da extrema-direita apontadas pelas autoridades nos últimos anos.

A infiltração da extrema-direita na polícia, que já dura há alguns anos e se tem aprofundado, deverá continuar a ser uma preocupação nacional. Há sectores deste quadrante nas forças de segurança que continuam a mobilizar-se e a mostrar relativo dinamismo.

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