Podemos ver a entrevista, dada entre 1988 e 1989 no Youtube: aqui
Tudo sobre Gilles Deleuze
A de Animal
CP: Então começamos com A. A é Animal. Poderíamos considerar sua a frase de W. C. Fields: “Um homem que não gosta nem de crianças, nem de animais não pode ser totalmente ruim”. Por enquanto, deixemos de lado as crianças, sei que você não gosta muito de animais domésticos, e nem prefere, como Baudelaire ou Cocteau, os gatos aos cachorros. Em compensação, você tem um bestiário, ao longo de sua obra, que é bastante repugnante, ou seja, além das feras, que são animais nobres, você fala muito do carrapato, do piolho, de alguns pequenos animais como esses, repugnantes, e além disso, que os animais lhe serviram muito desde O anti-Édipo. Um conceito importante em sua obra é o devir-animal. Qual é, então, sua relação com os animais?
GD: Os animais não são… O que você disse sobre minha relação com os animais domésticos, não é o animal doméstico, domado, selvagem, o que me preocupa. O problema é que os gatos, os cachorros, são animais familiares, familiais, e é verdade que desses animais domados, domésticos, eu não gosto. Em compensação, gosto de animais domésticos não-familiares, não-familiais. Gosto, pois sou sensível a algo neles. Aconteceu comigo o que acontece em muitas famílias. Não tinha gato, nem cachorro. Um de meus filhos com Fanny trouxe, um dia, um gato que não era maior que sua mãozinha. Ele o tinha encontrado, estávamos no campo, em um palheiro, não sei bem onde, e a partir desse momento fatal, sempre tive um gato em casa. O que me incomoda nesses bichos? Bem, não foi um calvário, eu suporto, o que me incomoda… não gosto dos roçadores, um gato passa seu tempo se roçando, roçando em você, não gosto disso. Um cachorro é diferente, o que reprovo, fundamentalmente, no cachorro, é que ele late. O latido me parece ser o grito mais estúpido. E há muitos gritos na Natureza! Há uma variedade de gritos, mas o latido é, realmente, a vergonha do reino animal. Suporto, em compensação, suporto mais, se não durar muito, o grito, não sei como se diz, o uivo para a lua, um cachorro que uiva para a lua, eu suporto mais.
CP: O uivo para a morte.
GD: Para a morte, não sei, suporto mais que o latido. E, quando soube que cachorros e gatos fraudavam a previdência social, minha antipatia aumentou. Ao mesmo tempo, o que digo é bem bobo, porque as pessoas que gostam verdadeiramente de gatos e cachorros têm uma relação com eles que não é humana. Por exemplo, as crianças, têm uma relação com eles que não é humana, que é uma espécie de relação infantil ou… o importante é ter uma relação animal com o animal. O que é ter uma relação animal com o animal? Não é falar com ele… Em todo caso, o que não suporto é a relação humana com o animal. Sei o que digo porque moro em uma rua um pouco deserta e as pessoas levam seus cachorros para passear. O que ouço de minha janela é espantoso. É espantoso como as pessoas falam com seus bichos. Isso inclui a própria psicanálise. A psicanálise está tão fixada nos animais familiares ou familiais, nos animais da família, que qualquer tema animal… em um sonho, por exemplo, é interpretado pela psicanálise como uma imagem do pai, da mãe ou do filho, ou seja, o animal como membro da família. Acho isso odioso, não suporto. Devemos pensar em duas obras primas de Douanier Rousseau: o cachorro na carrocinha que é realmente o avô, o avô em estado puro, e depois o cavalo de guerra, que é um bicho de verdade. A questão é: que relação você tem com o animal? Se você tem uma relação animal com o animal… Mas geralmente as pessoas que gostam dos animais não têm uma relação humana com eles, mas uma relação animal. Isso é muito bonito, mesmo os caçadores, e não gosto de caçadores, enfim, mesmo eles têm uma relação surpreendente com o animal. Acho que você me perguntou, também, sobre outros animais. É verdade que sou fascinado por bichos como as aranhas, os carrapatos, os piolhos. É tão importante quanto os cachorros e gatos. E é também uma relação com animais, alguém que tem carrapatos, piolhos. O que quer dizer isto? São relações bem ativas com os animais. O que me fascina no animal? Meu ódio por certos animais é nutrido por meu fascínio por muitos animais. Se tento me dizer, vagamente, o que me toca em um animal, a primeira coisa é que todo animal tem um mundo. É curioso, pois muita gente, muitos humanos não têm mundo. Vivem a vida de todo mundo, ou seja, de qualquer um, de qualquer coisa, os animais têm mundos. Um mundo animal, às vezes, é extraordinariamente restrito e é isso que emociona. Os animais reagem a muito pouca coisa. Há toda espécie de coisas…
Essa história, esse primeiro traço do animal é a existência de mundos animais específicos, particulares, e talvez seja a pobreza desses mundos, a redução, o caráter reduzido desses mundos que me impressiona muito. Por exemplo, falamos, há pouco, de animais como o carrapato. O carrapato responde ou reage a três coisas, três excitantes, um só ponto, em uma natureza imensa, três excitantes, um ponto, é só. Ele tende para a extremidade de um galho de árvore, atraído pela luz, ele pode passar anos, no alto desse galho, sem comer, sem nada, completamente amorfo, ele espera que um ruminante, um herbívoro, um bicho passe sob o galho, e então ele se deixa cair, aí é uma espécie de excitante olfativo. O carrapato sente o cheiro do bicho que passa sob o galho, este é o segundo excitante, luz, e depois odor, e então, quando ele cai nas costas do pobre bicho, ele procura a região com menos pêlos, um excitante tátil, e se mete sob a pele. Ao resto, se se pode dizer, ele não dá a mínima. Em uma natureza formigante, ele extrai, seleciona três coisas.
CP: É este seu sonho de vida? É isso que lhe interessa nos animais?
GD: É isso que faz um mundo.
CP: Daí sua relação animal-escrita. O escritor, para você, é, também, alguém que tem um mundo?
GD: Não sei, porque há outros aspectos, não basta ter um mundo para ser um animal. O que me fascina completamente são as questões de território e acho que Félix e eu criamos um conceito que se pode dizer que é filosófico, com a idéia de território. Os animais de território, há animais sem território, mas os animais de território são prodigiosos, porque constituir um território, para mim, é quase o nascimento da arte. Quando vemos como um animal marca seu território, todo mundo sabe, todo mundo invoca sempre… as histórias de glândulas anais, de urina, com as quais eles marcam as fronteiras de seu território. O que intervém na marcação é, também, uma série de posturas, por exemplo, se abaixar, se levantar. Uma série de cores, os macacos, por exemplo, as cores das nádegas dos macacos, que eles manifestam na fronteira do território… Cor, canto, postura, são as três determinações da arte, quero dizer, a cor, as linhas, as posturas animais são, às vezes, verdadeiras linhas. Cor, linha, canto. É a arte em estado puro. E, então, eu me digo, quando eles saem de seu território ou quando voltam para ele, seu comportamento… O território é o domínio do ter. É curioso que seja no ter, isto é, minhas propriedades, minhas propriedades à maneira de Beckett ou de Michaux. O território são as propriedades do animal, e sair do território é se aventurar. Há bichos que reconhecem seu cônjuge, o reconhecem no território, mas não fora dele.
CP: Quais?
GD: É uma maravilha. Não sei mais que pássaro, tem de acreditar em mim. E então, com Félix, saio do animal, coloco, de imediato, um problema filosófico, porque… misturamos um pouco de tudo no abecedário. Digo para mim, criticam os filósofos por criarem palavras bárbaras, mas eu, ponha-se no meu lugar, por determinadas razões, faço questão de refletir sobre essa noção de território. E o território só vale em relação a um movimento através do qual se sai dele. É preciso reunir isso. Preciso de uma palavra, aparentemente bárbara. Então, Félix e eu construímos um conceito de que gosto muito, o de desterritorialização. Sobre isso nos dizem: é uma palavra dura, e o que quer dizer, qual a necessidade disso? Aqui, um conceito filosófico só pode ser designado por uma palavra que ainda não existe. Mesmo se se descobre, depois, um equivalente em outras línguas. Por exemplo, depois percebi que em Melville, sempre aparecia a palavra: outlandish, e outlandish, pronuncio mal, você corrige, outlandish é, exatamente, o desterritorializado. Palavra por palavra. Penso que, para a filosofia, antes de voltar aos animais, para a filosofia é surpreendente. Precisamos, às vezes, inventar uma palavra bárbara para dar conta de uma noção com pretensão nova. A noção com pretensão nova é que não há território sem um vetor de saída do território e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte. Tudo isso acontece nos animais. É isso que me fascina, todo o domínio dos signos. Os animais emitem signos, não param de emitir signos, produzem signos no duplo sentido: reagem a signos, por exemplo, uma aranha: tudo o que toca sua tela, ela reage a qualquer coisa, ela reage a signos. E eles produzem signos, por exemplo, os famosos signos… Isso é um signo de lobo? É um lobo ou outra coisa? Admiro muito quem sabe reconhecer, como os verdadeiros caçadores, não os de sociedades de caça, mas os que sabem reconhecer o animal que passou por ali, aí eles são animais, têm, com o animal, uma relação animal. É isso ter uma relação animal com o animal. É formidável.
CP: É essa emissão de signos, essa recepção de signos que aproxima o animal da escrita e do escritor?
GD: É. Se me perguntassem o que é um animal, eu responderia: é o ser à espreita, um ser, fundamentalmente, à espreita.
CP: Como o escritor?
GD: O escritor está à espreita, o filósofo está à espreita. É evidente que estamos à espreita. O animal é… observe as orelhas de um animal, ele não faz nada sem estar à espreita, nunca está tranqüilo.
Ele come, deve vigiar se não há alguém atrás dele, se acontece algo atrás dele, a seu lado. É terrível essa existência à espreita. Você faz a aproximação entre o escritor e o animal.
CP: Você a fez antes de mim.
GD: É verdade, enfim… Seria preciso dizer que, no limite, um escritor escreve para os leitores, ou seja, “para uso de”, “dirigido a”. Um escritor escreve “para uso dos leitores”. Mas o escritor também escreve pelos não-leitores, ou seja, “no lugar de” e não “para uso de”. Escreve-se pois “para uso de” e “no lugar de”. Artaud escreveu páginas que todo mundo conhece. “Escrevo pelos analfabetos, pelos idiotas”. Faulkner escreve pelos idiotas. Ou seja, não para os idiotas, os analfabetos, para que os idiotas, os analfabetos o leiam, mas no lugar dos analfabetos, dos idiotas. “Escrevo no lugar dos selvagens, escrevo no lugar dos bichos”. O que isso quer dizer? Por que se diz uma coisa dessas? “Escrevo no lugar dos analfabetos, dos idiotas, dos bichos”. É isso que se faz, literalmente, quando se escreve. Quando se escreve, não se trata de história privada. São realmente uns imbecis. É a abominação, a mediocridade literária de todos as épocas, mas, em particular, atualmente, que faz com que se acredite que para fazer um romance, basta uma historinha privada, sua historinha privada, sua avó que morreu de câncer, sua história de amor, e então se faz um romance. É uma vergonha dizer coisas desse tipo. Escrever não é assunto privado de alguém. É se lançar, realmente, em uma história universal e seja o romance ou a filosofia, e o que isso quer dizer…
CP: É escrever “para” e “pelo”, ou seja, “para uso de” e “no lugar de”. É o que disse em Mil platôs, sobre Chandos e Hofmannsthal: “O escritor é um bruxo, pois vive o animal como a única população frente à qual é responsável”.
GD: É isso. É por uma razão simples, acredito que seja bem simples. Não é uma declaração literária a que você leu de Hofmannsthal. É outra coisa. Escrever é, necessariamente, forçar a linguagem, a sintaxe, porque a linguagem é a sintaxe, forçar a sintaxe até um certo limite, limite que se pode exprimir de várias maneiras. É tanto o limite que separa a linguagem do silêncio, quanto o limite que separa a linguagem da música, que separa a linguagem de algo que seria… o piar, o piar doloroso.
CP: Mas de jeito algum o latido?
GD: Não, o latido não. E, quem sabe, poderia haver um escritor que conseguisse. O piar doloroso, todos dizem, bem, sim, Kafka. Kafka é A metamorfose, o gerente que grita: “Ouviram, parece um animal”. Piar doloroso de Gregor ou o povo dos camundongos, Kafka escreveu pelo povo dos camundongos, pelo povo dos ratos que morrem. Não são os homens que sabem morrer, são os bichos, e os homens, quando morrem, morrem como bichos. Aí voltamos ao gato e, com muito respeito, tive, entre os vários gatos que se sucederam aqui, um gatinho que morreu logo, ou seja, vi o que muita gente também viu, como um bicho procura um canto para morrer. Há um território para a morte também, há uma procura do território da morte, onde se pode morrer. E esse gatinho que tentava se enfiar em um canto, como se para ele fosse o lugar certo para morrer. Nesse sentido, se o escritor é alguém que força a linguagem até um limite, limite que separa a linguagem da animalidade, do grito, do canto, deve-se então dizer que o escritor é responsável pelos animais que morrem, e ser responsável pelos animais que morrem, responder por eles… escrever não para eles, não vou escrever para meu gato, meu cachorro. Mas escrever no lugar dos animais que morrem é levar a linguagem a esse limite. Não há literatura que não leve a linguagem a esse limite que separa o homem do animal. Deve-se estar nesse limite. Mesmo quando se faz filosofia. Fica-se no limite que separa o pensamento do não-pensamento. Deve-se estar sempre no limite que o separa da animalidade, mas de modo que não se fique separado dela. Há uma inumanidade própria ao corpo humano, e ao espírito humano, há relações animais com o animal. Seria bom se terminássemos com o A.
B de Beber
CP: Vamos passar para o B.
CP: B é um pouco particular, é sobre a bebida. Você bebeu e parou de beber. Eu gostaria de saber quando você bebia, o que era beber? Tinha prazer, ou o quê?
GD: Bebi muito, bebi muito. Parei, bebi muito… Seria preciso perguntar a outras pessoas que beberam, perguntar aos alcoólatras. Acho que beber é uma questão de quantidade, por isso não há equivalente com a comida. Há gulosos, há pessoas… comer sempre me desagradou, não é para mim, mas a bebida é uma questão… Entendo que não se bebe qualquer coisa. Quem bebe tem sua bebida favorita, mas é nesse âmbito que ele entende a quantidade. O que quer dizer questão de quantidade? Zomba-se muito dos drogados, ou dos alcoólatras, porque eles sempre dizem: “Eu controlo, paro de beber quando quiser”. Zombam deles, porque não se entende o que querem dizer. Tenho lembranças bem claras. Eu via bem isso e acho que quem bebe compreende isso. Quando se bebe, se quer chegar ao último copo. Beber é, literalmente, fazer tudo para chegar ao último copo. É isso que interessa.
CP: É sempre o limite?
GD: Será que é o limite? É complicado. Em outros termos, um alcoólatra é alguém que está sempre parando de beber, ou seja, está sempre no último copo. O que isto quer dizer? É um pouco como a fórmula de Péguy, que é tão bela: não é a última ninféia que repete a primeira, é a primeira ninféia que repete todas as outras e a última. Pois bem, o primeiro copo repete o último, é o último que conta. O que quer dizer o último copo para um alcoólatra? Ele se levanta de manhã, se for um alcoólatra da manhã, há todos os gêneros, se for um alcoólatra da manhã, ele tende para o momento em que chegará ao último copo. Não é o primeiro , o segundo, o terceiro que o interessa, é muito mais, um alcoólatra é malandro, esperto. O último copo quer dizer o seguinte: ele avalia, há uma avaliação, ele avalia o que pode agüentar, sem desabar… Ele avalia. Varia para cada pessoa. Avalia, portanto, o último copo e todos os outros serão a sua maneira de passar, e de atingir esse último. E o que quer dizer o último? Quer dizer: ele não suporta beber mais naquele dia. É o último que lhe permitirá recomeçar no dia seguinte, porque, se ele for até o último que excede seu poder, é o último em seu poder, se ele vai além do último em seu poder para chegar ao último que excede seu poder, ele desmorona, e está acabado, vai para o hospital, ou tem de mudar de hábito, de agenciamento. De modo que, quando ele diz: o último copo, não é o último, é o penúltimo, ele procura o penúltimo. Ele não procura o último copo, procura o penúltimo copo. Não o último, pois o último o poria fora de seu arranjo, e o penúltimo é o último antes do recomeço no dia seguinte. O alcoólatra é aquele que diz e não pára de dizer: vamos… é o que se ouve nos bares, é tão divertida a companhia de alcoólatras, a gente não se cansa de escutá-los, nos bares quem diz: é o último, e o último varia para cada um. E o último é o penúltimo.
CP: É também quem diz: amanhã paro.
GD: Amanhã eu paro? Não, ele não diz: amanhã eu paro; diz: paro hoje para recomeçar amanhã.
CP: Então, já que beber é sempre parar de beber, como se pára de beber totalmente, já que você parou?
GD: É muito perigoso, me parece que acontece rápido. Michaux disse tudo, os problemas de droga e os problemas de álcool não estão tão separados. Há um momento em que isso se torna perigoso demais, porque, aí também é uma crista, como quando eu dizia “a crista entre a linguagem e o silêncio”, ou a linguagem e a animalidade, é uma crista, é um estreito desfiladeiro. Tudo bem beber, se drogar, pode-se fazer tudo o que se quer, desde que isso não o impeça de trabalhar, se for um excitante é normal oferecer algo de seu corpo em sacrifício. Beber, se drogar são atitudes bem sacrificais. Oferece-se o corpo em sacrifício. Por quê? Porque há algo forte demais, que não se poderia suportar sem o álcool. A questão não é suportar o álcool, é, talvez, o que se acredita ver, sentir, pensar, e isso faz com que, para poder suportar, para poder controlar o que se acredita ver, sentir, pensar, se precise de uma ajuda: álcool, droga, etc. A fronteira é muito simples. Beber, se drogar, tudo isso parece tornar quase possível algo forte demais, mesmo se se deve pagar depois, sabe-se, mas em todo caso, está ligado a isto, trabalhar, trabalhar. E é evidente que quando tudo se inverte, e que beber impede de trabalhar, e a droga se torna uma maneira de não trabalhar, é o perigo absoluto, não tem mais interesse, e, ao mesmo tempo, percebe-se, cada vez mais, que quando se pensava que o álcool ou a droga eram necessários, eles não são necessários. Talvez se deva passar por isso, para perceber que tudo o que se pensou fazer graças a eles podia-se fazer sem eles. Admiro muito a maneira como Michaux diz: agora, tornou-se, tudo isso é… ele pára. Eu tenho menos mérito, porque parei de beber por razões de respiração, de saúde, etc., mas é evidente que se deve parar ou se privar disso. A única justificação possível é se isso ajuda o trabalho. Mesmo se se deve pagar fisicamente depois. Quanto mais se avança, mais a gente diz a si mesmo que não ajuda o trabalho…
CP: Por um lado, como Michaux, é preciso ter se drogado, bebido muito para poder se privar em um estado desses. Por outro lado, você diz: quando se bebe, isso não deve impedir o trabalho, mas é porque se entreviu algo que a bebida ajudava a suportar. E esse algo não é a vida. Aí há a questão dos escritores de que se gosta.
GD: Sim, é a vida.
CP: É a vida?
GD: É algo forte demais na vida, não é algo terrificante, é algo forte demais, poderoso demais na vida. Acredita-se, de modo um pouco idiota, que beber vai colocá-lo no nível desse algo mais poderoso. Se pensar em toda a linhagem dos grandes americanos. De Fitzgerald a… um dos que mais admiro é Thomas Wolfe. É uma série de alcoólatras, ao mesmo tempo que é isso o que lhes permite, os ajuda, provavelmente, a perceber algo grande demais para eles.
CP: É, mas é também porque eles perceberam algo da potência da vida, que nem todos podem perceber, porque sentiram algo da potência da vida.
GD: O álcool não o fará sentir…
CP: … que havia uma potência da vida forte demais para eles, e que só eles podiam perceber.
GD: Certo.
CP: E Lowry também?
GD: Certo. Claro, eles fizeram uma obra e o que foi o álcool para eles? Eles se arriscaram, arriscaram porque pensaram, com ou sem razão, que isso os ajudava. Eu tive a sensação de que isso me ajudava a fazer conceitos, é estranho, a fazer conceitos filosóficos. Ajudava, depois percebi que já não ajudava, que me punha em perigo, não tinha vontade de trabalhar se bebesse. Então se deve parar. É simples.
CP: É uma tradição americana, são poucos os escritores franceses que confessaram sua queda pelo álcool. Além disso, há algo que faz parte da escrita…
GD: Os escritores franceses não têm a mesma visão de escrita. Não sei se fui tão marcado pelos americanos, é uma questão de visão, de vidências, aqui considera-se que a filosofia, a escrita, é uma questão… De maneira modesta, ver algo, que os outros não vêem, não é esta a concepção francesa da literatura, mas note, houve também muitos alcoólatras na França.
CP: Mas eles param de escrever, na França. Têm muita dificuldade, os que conhecemos. Poucos filósofos confessaram sua queda pela bebida.
GD: Verlaine morava na rua Nollet, aqui ao lado.
CP: Exceto Rimbaud e Verlaine.
GD: Aperta o coração, pois quando pego a rua Nollet, digo: era este o percurso de Verlaine para ir beber seu absinto. Parece que morou em um apartamento horrível.
CP: Os poetas e o álcool, conhecemos mais.
GD: Um dos maiores poetas franceses, que andava pela rua Nollet. Uma maravilha.
CP: Na casa dos amigos?
GD: Provavelmente.
CP: Enfim, os poetas, sabemos que houve mais etílicos. Bem, terminamos com o álcool.
GD: Puxa, estamos indo rápido!
CP: Vamos passar ao C. O C é vasto.
C de Cultura
CP: Se se pode abusar um certo tempo do álcool, da cultura não se deve ir além da dose. É até um pouco repugnante. Bem, terminamos com o álcool.
GD: Puxa, estamos indo rápido!
CP: Vamos passar ao C. O C é vasto.
GD: O que é?
CP: C de Cultura.
GD: Sim, por que não?
CP: Você diz não ser culto. Diz que só lê, só vê filmes ou só olha as coisas para um saber preciso: aquele de que necessita para um trabalho definido, preciso, que está fazendo, mas, ao mesmo tempo, você vai todos os sábados a uma exposição, a um filme do grande campo cultural, tem-se a impressão de que há uma espécie de esforço para a cultura, que você sistematiza e que tem uma prática cultural, ou seja, que você sai, faz um esforço, tende a se cultivar e, entretanto, diz que não é culto. Como explica tal paradoxo? Você não é culto?
GD: Não, quando lhe digo que não me vejo, realmente, como um intelectual, não me vejo como alguém culto por uma razão simples: é que quando vejo alguém culto, fico assustado, não fico tão admirado, admiro certas coisas, outras, não, mas fico assustado. A gente nota alguém culto. É um saber sobretudo assustador. Vemos isso em muitos intelectuais, eles sabem tudo, bem, não sei, sabem tudo, estão a par de tudo, sabem a história da Itália, da Renascença, sabem geografia do Pólo Norte, sabem… podemos fazer uma lista, eles sabem tudo, podem falar de tudo. É abominável. Quando digo que não sou culto, nem intelectual, quero dizer algo bem fácil, é que não tenho saber de reserva. Pelo menos não tenho esse problema. Com minha morte, não se precisará procurar o que tenho para publicar, nada, pois não tenho reserva alguma. Não tenho nada, provisão alguma, nenhum saber de provisão, e tudo o que aprendo, aprendo para certa tarefa, e, feita a tarefa, esqueço. De modo que, se dez anos depois, sou forçado, isso me alegra, se sou forçado a me colocar em algo vizinho ou no mesmo tema, tenho de recomeçar do zero. Exceto em alguns casos raros, pois Spinoza está em meu coração, não o esqueço, é meu coração, não minha cabeça, senão… Por que não admiro essa cultura assustadora? Pessoas que falam…
CP: É erudição ou opinião sobre tudo?
GD: Não é erudição, eles sabem falar, primeiro viajaram, viajaram na História, na Geografia, sabem falar de tudo. Ouvi na TV, é assustador, ouvi nomes, então, como tenho muita admiração, posso dizer, gente como Umberto Eco, é prodigioso, o que quer que lhe digam, pronto, é como se apertassem em um botão, e ele sabe, além disso… Não posso dizer que invejo isso. Fico assustado, mas não invejo. O que é a cultura? Ela consiste em falar muito, não posso me impedir de… sobretudo agora que não dou mais aula, estou aposentado, falar, acho cada vez mais, falar é um pouco sujo. É um pouco sujo, a escrita é limpa. Escrever é limpo e falar é sujo. É sujo porque é fazer charme. Nunca suportei colóquios, estive em alguns quando era jovem, mas nunca suportei colóquios. Não viajo. Por que não? Porque… os intelectuais… eu viajaria se… enfim, não. Aliás, não viajaria, minha saúde me proíbe, mas as viagens dos intelectuais são uma palhaçada. Eles não viajam, se deslocam para falar, partem de um lugar onde falam e vão para outro para falar. E, mesmo no almoço, eles vão falar com os intelectuais do lugar. Não vão parar de falar. Não suporto falar, falar, falar, não suporto. Como me parece que a cultura está muito ligada à fala. Nesse sentido, odeio a cultura, não consigo suportá-la.
CP: Voltaremos a falar disso, a escrita limpa, a fala suja, pois você foi um grande professor e a solução…
GD: É diferente.
CP: Voltaremos a isso. A letra P está ligada a seu trabalho de professor. Falaremos da sedução. Queria voltar a algo que você evitou, que é seu esforço, a disciplina que você se impõe, mesmo não precisando dela, para ver, por exemplo, nos últimos 15 dias, a exposição de Polcke, no Museu de Arte Moderna. Você vai com freqüência, ou semanalmente, ver um grande filme ou uma exposição de pintura. Você não é erudito, não é culto, não tem admiração por pessoas cultas, como acaba de dizer. A que corresponde tal esforço? É prazer?
GD: Claro, é prazer, enfim, nem sempre, mas penso nessa história de estar à espreita. Não acredito na cultura; acredito, de certo modo, em encontros. E não se têm encontros com pessoas. As pessoas acham que é com pessoas que se têm encontros. É terrível, isso faz parte da cultura, intelectuais que se encontram, essa sujeira de colóquios, essa infâmia, mas não se tem encontros com pessoas, e sim com coisas, com obras: encontro um quadro, encontro uma ária de música, uma música, assim entendo o que quer dizer um encontro. Quando as pessoas querem juntar a isso um encontro com elas próprias, com pessoas, não dá certo. Isso não é um encontro. Daí os encontros serem decepcionantes, é uma catástrofe os encontros com pessoas.
Como você diz, quando vou, sábado e domingo, ao cinema, etc., não estou certo de ter um encontro, mas parto à espreita. Será que há matéria para encontro, um quadro, um filme, então é formidável. Dou um exemplo, porque, para mim, quando se faz algo, trata-se de sair e de ficar. Ficar na filosofia é também como sair da filosofia? Mas sair da filosofia não quer dizer fazer outra coisa, por isso é preciso sair permanecendo dentro. Não é fazer outra coisa, escrever um romance, primeiro eu seria incapaz, e mesmo se fosse capaz, isso não me diria nada. Quero sair da filosofia pela filosofia. É isso o que me interessa.
CP: O que isso quer dizer?
GD: Dou um exemplo, como isso é para depois de minha morte, posso deixar de ser modesto. Acabo de escrever um livro sobre um grande filósofo chamado Leibniz e insistindo em uma noção que me parece importante nele, mas que é muito importante para mim: a noção de dobra. Considero que fiz um livro de filosofia sobre essa noção, um pouco estranha, de dobra. O que me acontece depois? Recebo cartas, como sempre, há cartas insignificantes, mesmo se são encantadoras e calorosas, e me toquem muito. São cartas que me dizem, muito bem… são cartas de intelectuais que gostaram ou não do livro. E então recebo duas cartas, dois tipos de cartas, em que esfrego os olhos… Há cartas de pessoas que dizem: “Mas sua história de dobra, somos nós”. E percebo que são pessoas que fazem parte de uma associação que agrupa 400 pessoas na França, hoje, e deve crescer. É a associação de dobradores de papéis, eles têm uma revista, me enviam a revista e dizem: “Concordamos totalmente, o que você faz é o que fazemos”. Digo para mim: isso eu ganhei. Recebo outra carta, e falam da mesma maneira e dizem: “A dobra somos nós”. É uma maravilha. Primeiro isso lembra Platão, porque em Platão… os filósofos, para mim, não são pessoas abstratas, são grandes escritores, grandes autores bem concretos. Em Platão há uma história que me enche de alegria, e está ligada ao início da filosofia, voltaremos a isso depois. O tema de Platão é: ele dá uma definição, por exemplo, o que é o político? O político é o pastor dos homens, e sobre isso há muita gente que diz: o político somos nós, por exemplo, o pastor chega e diz: visto os homens, logo sou o verdadeiro pastor dos homens. O açougueiro diz: alimento os homens, sou o pastor dos homens. Os rivais chegam… Tive esta experiência, os dobradores de papéis chegam e dizem: a dobra somos nós. Os outros, que me enviaram o mesmo tipo de carta, é incrível, foram os surfistas. À primeira vista não há relação alguma com os dobradores de papéis. Os surfistas dizem: “concordamos totalmente, pois, o que fazemos? Estamos sempre nos insinuando nas dobras da natureza. Para nós, a natureza é um conjunto de dobras móveis. Nós nos insinuamos na dobra da onda, habitar a dobra da onda é a nossa tarefa”. Habitar a dobra da onda e, com efeito, eles falam disso de modo admirável. Eles pensam, não se contentam em surfar, eles pensam o que fazem. Voltaremos a falar disto se chegarmos ao esporte [sport], ao S…
CP: Está longe. Partimos do encontro, são encontros, os dobradores de papéis?
GD: São encontros. Quando digo sair da filosofia pela filosofia… Sempre me aconteceu isso, são encontros, encontrei os dobradores de papéis, não preciso vê-los, aliás, ficaríamos decepcionados, provavelmente, eu ficaria, e eles ainda mais. Não preciso vê-los, mas tive um encontro com o surfe, com os dobradores de papéis, literalmente, saí da filosofia pela filosofia, é isso um encontro. Acho que os encontros… quando vou ver uma exposição, estou à espreita, em busca de um quadro que me toque, de um quadro que me comova, quando vou ao cinema, não vou ao teatro, o teatro é longo demais, disciplinado demais, é demais. E não me parece uma arte… a não ser Bob Wilson e Carmelo Bene. Não acho que o teatro seja voltado para nossa época, exceto nesses casos extremos. Mas ficar quatro horas sentado em uma poltrona ruim, primeiro por motivos de saúde, isso liquida o teatro para mim. Uma exposição de pintura, ou o cinema… Sempre tenho a impressão que posso ter o encontro com uma idéia.
CP: Mas o filme, por mera distração, não existe?
GD: Isso não é cultura.
CP: Não é cultura, mas não há distração?
GD: Minha distração é…
CP: Tudo está em seu trabalho.
GD: Não é um trabalho, é a espreita, estou à espreita de algo que passa dizendo para mim… isso me perturba. É muito divertido.
CP: Mas não é Eddie Murphy que vai te perturbar?
GD: Não é…?
CP: Eddie Murphy é um…
GD: Quem é?
CP: Um ator cômico americano, cujos últimos filmes são verdadeiros sucessos. Nunca vai ver…?
GD: Não conheço. Só vi Benny Hill na TV. Benny Hill me interessa, não escolho, necessariamente, coisas muito boas, tenho razões para me interessar.
CP: Mas quando sai, é para um encontro?
GD: Quando saio, se não há idéia para tirar daí, se não digo: havia uma idéia… O que é um grande cineasta? Vale também para cineastas, o que me toca na beleza, por exemplo, um grande como Minnelli ou como Losey, o que me toca neles? Eles são perseguidos por idéias, uma idéia…
CP: Está queimando a letra I.
GD: Idéia…
CP: Está queimando a letra I, pare logo.
GD: Paramos aí, mas é isso o que me parece ser um encontro. Temos encontros com coisas, antes de os ter com pessoas.
CP: Nesse momento, para falar de um período preciso, que é o do momento, você tem muitos encontros?
GD: Acabo de dizer: os dobradores, os surfistas, o que mais quer? Não são encontros com intelectuais. Ou então, se encontro um intelectual é por outras razões, não porque gosto dele, é por aquilo que ele faz, seu trabalho atual, seu charme, tudo isso. Temos encontros com o charme, com o trabalho das pessoas, e não com as pessoas, não dou a mínima para elas.
CP: Além disso eles podem roçar, como os gatos?
GD: Se só tiverem isso, o roçar, o latido, é terrível.
CP: Retomamos os períodos ricos e os períodos pobres da cultura. Você acha que não estamos em um período tão rico, vejo você sempre irritado diante da TV, dos programas literários, que não citaremos, embora no momento em que isso for exibido os nomes serão outros, acha que é um período rico ou um período pobre, o que vivemos?
GD: É pobre, e, ao mesmo tempo, não é angustiante. Me faz rir. Na minha idade, digo para mim: não é a primeira vez que há períodos pobres. Digo: o que vivi desde que tenho idade para me entusiasmar um pouco. Vivi a Liberação. A Liberação foi um dos períodos mais ricos que se possa imaginar. Descobria-se ou redescobria-se tudo, na Liberação. Tinha havido a guerra, etc. Não era pouco. Descobria-se tudo: o romance americano, Kafka, havia uma espécie de mundo da descoberta, havia Sartre, não se pode imaginar o que foi, intelectualmente, o que se descobria ou redescobria em pintura, etc.
CP: No cinema?
GD: É preciso entender coisas como a grande polêmica: deve-se queimar Kafka? É inimaginável, hoje parece um pouco infantil, mas era uma atmosfera criadora. Então conheci o antes de 68, que foi um período muito rico até depois de 68, enquanto que, nesse entremeio havia períodos pobres. São normais, períodos pobres. Não é a pobreza que é incômoda, é a insolência ou a impudência daqueles que ocupam os períodos pobres. Eles são mais maldosos do que as pessoas geniais que se animam nos períodos ricos.
CP: São geniais ou obedientes, pois se fala da polêmica sobre Kafka na Liberação… Vi fulano de tal dizer, contente e rindo, que nunca havia lido Kafka.
GD: Claro, são contentes, quanto mais bobos, mais contentes. São os que consideram, voltamos a isso, que literatura é contar uma história pessoal. Se se acha isso, não é preciso ler Kafka. Não há necessidade de se ler muita coisa, pois se se tem uma escrita bonitinha, se é, por natureza, igual a Kafka. Não é trabalho. Como te explicar? Para falar de coisas mais sérias que esses tolos: fui ver, há pouco tempo, um filme…
CP: De Paradjanov.
GD: Não, esse é admirável, mas um filme emocionante, de um russo… que fez seu filme há trinta anos, e ele só passou agora.
CP: La commissaire?
GD: La commissaire. Entendi algo que me pareceu emocionante, o filme era muito bom, perfeito, mas eu pensava, com terror ou com uma espécie de compaixão, que era um filme como os russos faziam antes da guerra.
CP: Do tempo de Eisenstein?
GD: Do tempo de Eisenstein, de Dovjenko, estava tudo ali: a montagem paralela, sublime, etc., como se nada tivesse acontecido desde a guerra, como se nada tivesse acontecido no cinema. Dizia para mim: é forçoso, o filme é bom, mas estranho.
CP: Não muito bom.
GD: Por isso não era bom. Era alguém que trabalhava tão sozinho que… filmava como há vinte anos. Não que fosse ruim, era muito bom, prodigioso, há vinte anos… E tudo o que havia acontecido depois, ele não soubera, crescera em um deserto, é terrível, atravessar um deserto não é grande coisa, não é atravessar um período de deserto. O terrível é nascer nele, crescer em um deserto, é horrível, suponho, pois deve-se ter uma impressão de solidão.
CP: Para os que têm 18 anos agora?
GD: Sim, sobretudo porque… é esse o problema nos períodos pobres. Quando as coisas desaparecem ninguém se dá conta, por uma razão simples, quando alguma coisa desaparece, ela não faz falta. O período staliniano fez desaparecer a literatura russa, mas os russos não se deram conta, o grosso dos russos, o conjunto dos russos não se deu conta, uma literatura que foi perturbadora em todo o século 19, desaparece. Dizem: “agora há os dissidentes, etc.”, mas no âmbito do povo, do povo russo, sua literatura, sua pintura desapareceram, e ninguém se deu conta. Para se dar conta do que acontece hoje, há, é claro, novos jovens que são, com certeza, geniais. Suponhamos, a expressão não é boa, os novos Beckett de hoje…
CP: Tive medo, pensei que fosse dizer os Novos Filósofos.
GD: Mas os novos Beckett hoje, suponhamos que não sejam publicados. Afinal, por pouco Beckett não foi publicado. É evidente que não faltaria nada. Por definição, um grande autor ou um gênio é alguém que faz algo novo, se esse novo não aparece, isso não incomoda, não faz falta a ninguém, já que não se tinha idéia disso. Se Proust, Kafka não tivessem sido publicados, não se pode dizer que Kafka faria falta. Se o outro tivesse queimado toda a obra de Kafka, ninguém poderia dizer: Ah, como faz falta! Pois não se teria idéia do que desapareceu. Se os novos Beckett são impedidos de ser publicados pelo sistema atual da edição, não se poderá dizer: Ah, como fazem falta! Ouvi uma declaração, que talvez seja a mais descarada que já ouvi em minha vida. Não ouso dizer quem. É alguém ligado ao ramo editorial que, em um jornal, atreveu-se a declarar: “Hoje não arriscamos mais cometer os erros da Gallimard…”
CP: No tempo de Proust?
GD: Recusando Proust, pois com os meios que se tem hoje…
CP: Os caçadores de cabeças…
GD: Acredita-se que se têm, hoje, os meios para encontrar os novos Proust, e os novos Beckett. Significa que se teria um contador Geiger e o novo Beckett, ou seja, alguém perfeitamente inimaginável, já que não se sabe o que ele faria de novo, ele emitiria um som…
CP: Se o passassem sobre sua cabeça?
GD: O que define a crise hoje, pois há todas essas bobagens? Vejo a crise hoje ligada a três coisas, mas ela não durará, sou muito otimista, o que define um período de deserto é, primeiramente, que os jornalistas conquistaram a forma-livro. Eles sempre escreveram, acho bom que escrevam. Mas quando começaram a escrever livros, eles se deram conta de que passavam a outra forma, que não era a mesma coisa que escrever seu artigo.
CP: Antes os escritores é que eram os jornalistas. Mallarmé podia fazer jornalismo. O inverso não aconteceu.
GD: Agora é o inverso, o jornalista como jornalista conquistou a forma-livro, acha normal escrever um livro, como se fosse só um artigo. Isso não é bom. A segunda razão é que se generalizou a idéia de que qualquer um pode escrever, pois a escrita é vista como uma historinha de cada um, contada a partir dos arquivos de família, sejam eles constituídos de anotações ou guardados na memória. Todo mundo teve uma história de amor, todo mundo teve uma avó doente, uma mãe que morria de modo terrível. Dizem: isso dá um romance. Mas isso não dá um romance de modo algum… A terceira razão é que, os verdadeiros clientes mudaram, e percebe-se isso, exceto as pessoas… Vocês estão a par, os clientes mudaram, quero dizer, quem são os clientes da televisão? Não são mais os ouvintes, são os anunciantes. São eles os verdadeiros clientes. Os ouvintes têm o que os anunciantes querem.
CP: Os telespectadores. Qual é a terceira razão?
GD: Os anunciantes são os verdadeiros clientes, eu dizia, na edição há um risco de que os verdadeiros clientes dos editores não sejam os leitores em potencial, que sejam os distribuidores, quando eles forem, realmente, os clientes dos editores, o que acontecerá? O que interessa aos distribuidores é a rotação rápida, quer dizer, coisas de grandes mercados de rápida rotação, regime do best-seller, etc.; ou seja, que toda a literatura, se ouso dizer, à la Beckett, toda a literatura criadora será esmagada por natureza.
CP: Isso já existe, pré-formam-se as necessidades de um público.
GD: Sim, mas é isso que define o período de seca, modelo Pivot. É a nulidade, é a literatura, é o desaparecimento de qualquer crítica em nome da promoção comercial, mas quando digo: não é grave, quero dizer, é evidente que haverá circuitos paralelos, ou um circuito onde haverá um mercado negro, etc., não é possível que um povo viva… A Rússia perdeu sua literatura, ela vai reconquistá-la, tudo se ajeita, os períodos ricos sucedem aos períodos pobres. Ai dos pobres!
CP: Ai dos pobres? Sobre essa idéia de mercado paralelo ou negro, já faz muito tempo que os sujeitos são pré-formados, ou seja, um ano vê-se, claramente, nos livros publicados, a guerra, no ano seguinte é a morte dos pais, no outro é a ligação com a natureza, mas nada parece se formar. Como isso ressurge? Já viu ressurgir um período rico de um pobre?
GD: Já.
CP: Você assistiu?
GD: Sim, depois da Liberação, a coisa não ia bem, e então houve 68. Entre o grande período criador da Liberação e o início da Nouvelle Vague…
CP: Quando foi? Em 60?
GD: 60, e mesmo antes. Entre 60 e 72 houve, de novo, um período rico. E isso se reformou em… É um pouco o que diz Nietzsche, alguém lança uma flecha, uma flecha no espaço, ou então um período, uma coletividade lança uma flecha e depois ela cai, depois alguém a pega e a reenvia para outro lugar. A criação funciona assim, a literatura passa sobre desertos.
D de Desejo
CP: D de Desejo. Tudo o que sempre quiseram saber sobre o desejo. Primeira lição: Só se pode desejar em um conjunto. Então, sempre se deseja um todo. Vamos passar a D. Para D, preciso de meus papéis, pois vou ler o que há no Petit Larousse Illustré, em “Deleuze”, que também se escreve com D. Lê-se: “Deleuze, Gilles, filósofo francês, nascido em Paris, em 1925”.
GD: Talvez hoje esteja no Larousse.
CP: Hoje, estamos em 1988.
GD: Eles mudam todo ano.
CP: “Com Félix Guattari, ele mostra a importância do desejo e seu aspecto revolucionário frente a toda instituição, até mesmo psicanalítica”. E indicam a obra que demonstra tudo isso: O anti-Édipo, em 1972. Como você é, aos olhos de todos, o filósofo do desejo, eu gostaria que falássemos do desejo. O que era o desejo? Vamos colocar a questão do modo mais simples: quando O anti-Édipo…
GD: Não era o que se pensou, em todo caso. Estou certo disso, mesmo naquele momento, ou seja, as pessoas mais encantadoras que eram… foi uma grande ambigüidade, um grande mal-entendido, um pequeno mal-entendido. Queríamos dizer uma coisa bem simples. Tínhamos uma grande ambição, a saber, que até esse livro, quando se faz um livro é porque se pretende dizer algo novo. Achávamos que as pessoas antes de nós não tinham entendido bem o que era o desejo, ou seja, fazíamos nossa tarefa de filósofo, pretendíamos propor um novo conceito de desejo. As pessoas, quando não fazem filosofia, não devem crer que é um conceito muito abstrato, ao contrário, ele remete a coisas bem simples, concretas. Veremos isso. Não há conceito filosófico que não remeta a determinações não filosóficas, é simples, é bem concreto. Queríamos dizer a coisa mais simples do mundo: que até agora vocês falaram abstratamente do desejo, pois extraem um objeto que é, supostamente, objeto de seu desejo. Então podem dizer: desejo uma mulher, desejo partir, viajar, desejo isso e aquilo. E nós dizíamos algo realmente simples: vocês nunca desejam alguém ou algo, desejam sempre um conjunto. Não é complicado. Nossa questão era: qual é a natureza das relações entre elementos para que haja desejo, para que eles se tornem desejáveis? Quero dizer, não desejo uma mulher, tenho vergonha de dizer uma coisa dessas. Proust disse, e é bonito em Proust: não desejo uma mulher, desejo também uma paisagem envolta nessa mulher, paisagem que posso não conhecer, que pressinto e enquanto não tiver desenrolado a paisagem que a envolve, não ficarei contente, ou seja, meu desejo não terminará, ficará insatisfeito. Aqui considero um conjunto com dois termos, mulher, paisagem, mas é algo bem diferente. Quando uma mulher diz: desejo um vestido, desejo tal vestido, tal chemisier, é evidente que não deseja tal vestido em abstrato. Ela o deseja em um contexto de vida dela, que ela vai organizar o desejo em relação não apenas com uma paisagem, mas com pessoas que são suas amigas, ou que não são suas amigas, com sua profissão, etc. Nunca desejo algo sozinho, desejo bem mais, também não desejo um conjunto, desejo em um conjunto. Podemos voltar, são fatos, ao que dizíamos há pouco sobre o álcool, beber. Beber nunca quis dizer: desejo beber e pronto. Quer dizer: ou desejo beber sozinho, trabalhando, ou beber sozinho, repousando, ou ir encontrar os amigos para beber, ir a um certo bar. Não há desejo que não corra para um agenciamento. O desejo sempre foi, para mim, se procuro o termo abstrato que corresponde a desejo, diria: é construtivismo. Desejar é construir um agenciamento, construir um conjunto, conjunto de uma saia, de um raio de sol…
CP: De uma mulher.
GD: De uma rua. É isso. O agenciamento de uma mulher, de uma paisagem.
CP: De uma cor…
GD: De uma cor, é isso um desejo. É construir um agenciamento, construir uma região, é realmente agenciar. O desejo é construtivismo. O anti-Édipo, que tentava…
CP: Espere, eu queria…
GD: Sim?
CP: É por ser um agenciamento, que você precisou, naquele momento, ser dois para escrever por ser em um conjunto, que precisou de Félix, que surgiu em sua vida de escritor?
GD: Félix faria parte do que diremos, talvez, sobre a amizade, sobre a relação da filosofia com algo que concerne à amizade, mas, com certeza, com Félix, fizemos um agenciamento. Há agenciamentos solitários, e há agenciamentos a dois. O que fizemos com Félix foi um agenciamento a dois, onde algo passava entre os dois, ou seja, são fenômenos físicos, é como uma diferença, para que um acontecimento aconteça, é preciso uma diferença de potencial, para que haja uma diferença de potencial precisa-se de dois níveis. Então algo se passa, um raio passa, ou não, um riachinho… É do campo do desejo. Mas um desejo é isso, é construir. Ora, cada um de nós passa seu tempo construindo, cada vez que alguém diz: desejo isso, quer dizer que ele está construindo um agenciamento, nada mais, o desejo não é nada mais.
CP: É um acaso se… porque o desejo é sentido, enfim, existe em um conjunto ou em um agenciamento, que O anti-Édipo, onde você começa a falar do desejo, é o primeiro livro que você escreve com outra pessoa, com Félix Guattari?
GD: Não, você tem razão, era preciso entrar nesse agenciamento novo para nós, escrever a dois, que nós dois não vivíamos da mesma maneira, para que algo acontecesse, ou seja, e esse algo era, finalmente, uma hostilidade, uma reação contra as concepções dominantes do desejo, as concepções psicanalíticas. Era preciso ser dois, foi preciso Félix, vindo da psicanálise, eu me interessando por esses temas, era preciso tudo isso para dizermos que havia lugar para fazer uma concepção construtiva, construtivista do desejo.
CP: Você poderia definir, de modo sucinto, como vê a diferença entre o construtivismo e a interpretação analítica?
GD: Acho que é bem simples. Nossa oposição à psicanálise é múltipla, mas quanto ao problema do desejo, é… é que os psicanalistas falam do desejo como os padres. Não é a única aproximação, os psicanalistas são padres. De que forma falam do desejo? Falam como um grande lamento da castração. A castração é pior que o pecado original. É uma espécie de maledicência sobre o desejo, que é assustadora. O que tentamos fazer em O anti-Édipo? Acho que há três pontos, que se opõem diretamente à psicanálise. Esses três pontos são… isso por meu lado, acho que Félix Guattari também não, não temos nada para mudar nesses três pontos. Estamos persuadidos, achamos em todo caso, que o inconsciente não é um teatro, não é um lugar onde há Édipo e Hamlet que representam sempre suas cenas. Não é um teatro, é uma fábrica, é produção. O inconsciente produz. Não pára de produzir. Funciona como uma fábrica. É o contrário da visão psicanalítica do inconsciente como teatro, onde sempre se agita um Hamlet, ou um Édipo, ao infinito. Nosso segundo tema é que o delírio, que é muito ligado ao desejo, desejar é delirar, de certa forma, mas se olhar um delírio, qualquer que seja ele, se olhar de perto, se ouvir o delírio que for, não tem nada a ver com o que a psicanálise reteve dele, ou seja, não se delira sobre seu pai e sua mãe, delira-se sobre algo bem diferente, é aí que está o segredo do delírio, delira-se sobre o mundo inteiro, delira-se sobre a história, a geografia, as tribos, os desertos, os povos…
CP: … o clima.
GD: … as raças, os climas, é em cima disso que se delira. O mundo do delírio é: “Sou um bicho, um negro!”, Rimbaud. É: onde estão minhas tribos? Como dispor minhas tribos? Sobreviver no deserto, etc. O deserto é… O delírio é geográfico-político. E a psicanálise reduz isso a determinações familiares. Posso dizer, sinto isso, mesmo depois de tantos anos, depois de O anti-Édipo, digo: a psicanálise nunca entendeu nada do fenômeno do delírio. Delira-se o mundo, e não sua pequena família. Por isso que… Tudo isso se mistura. Eu dizia: a literatura não é um caso privado de alguém, é a mesma coisa, o delírio não é sobre o pai e a mãe. O terceiro ponto… Significa isso, o desejo se estabelece sempre, constrói agenciamentos, se estabelece em agenciamentos, põe sempre em jogo vários fatores. E a psicanálise nos reduz sempre a um único fator, e sempre o mesmo, ora o pai, ora a mãe, ora não sei o que, ora o falo, etc. Ela ignora tudo o que é múltiplo, ignora o construtivismo, ou seja, agenciamentos. Dou um exemplo: falávamos de animal, há pouco. Para a psicanálise, o animal é uma imagem do pai. Um cavalo é uma imagem do pai. É ignorar o mundo! Penso no pequeno Hans. O pequeno Hans é uma criança sobre a qual Freud dá sua opinião, ele assiste um cavalo que cai na rua, e o charreteiro que lhe dá chicotadas, e o cavalo que dá coices para todos os lados. Antes do carro, era um espetáculo comum nas ruas, devia ser uma grande coisa para uma criança. A primeira vez que um garoto via um cavalo caído na rua e que um cocheiro meio bêbado tentava levantá-lo com chicotadas, devia ser uma emoção, era a chegada da rua, a chegada na rua, o acontecimento da rua, sangrento, tudo isso… E então ouvem-se os psicanalistas, falar, enfim, imagem de pai, etc., mas é na cabeça deles que a coisa não vai bem. O desejo foi movido por um cavalo que cai e é batido na rua, um cavalo morre na rua, etc. É um agenciamento fantástico para um garoto, é perturbador até o fundo. Outro exemplo, posso dizer… Falávamos de animal. O que é um animal? Mas não há um animal que seria a imagem do pai. Os animais, em geral, andam em matilhas, são matilhas. Há um caso que me alegra muito. É um texto que adoro, de Jung, que rompeu com Freud, depois de uma longa colaboração. Jung conta a Freud que teve um sonho, um sonho de ossuário, sonhou com um ossuário. E Freud não compreende nada, literalmente, ele diz o tempo todo: se sonhou com um osso, é a morte de alguém, quer dizer a morte de alguém. E Jung não pára de lhe dizer: não estou falando de um osso, sonhei com um ossuário… Freud não compreende. Não vê a diferença entre um ossuário e um osso, ou seja, um ossuário são centenas de ossos, são mil, dez mil ossos. Isso é uma multiplicidade, é um agenciamento, é… passeio em um ossuário, o que significa isso? Por onde o desejo passa? Em um agenciamento é sempre um coletivo. Coletivo, construtivismo, etc. É isso o desejo. Onde passa meu desejo entre os mil crânios, os mil ossos? Onde passa meu desejo na matilha? Qual é minha posição na matilha? Sou exterior à matilha? Estou ao lado, dentro, no centro dela? Tudo isso são fenômenos de desejo. É isso o desejo.
CP: Como o O anti-Édipo foi escrito em 72, esse agenciamento coletivo vinha a calhar depois de 68, era toda uma reflexão… daqueles anos e contra a psicanálise, que continuava seu negócio de pequena loja…
GD: Só o fato de dizer: o delírio delira as raças e as tribos, delira os povos, delira a história e a geografia, me parece ter estado de acordo com 68. Ou seja, parece-me ter trazido um pouco de ar são a todo esse ar fechado e malsão dos delírios pseudo-familiais. Vimos que era isso, o desejo. Se começo a delirar, não é para delirar sobre minha infância, aí também, sobre minha história privada. Delira-se… O delírio é cósmico… Delira-se sobre o fim do mundo, delira-se sobre as partículas, os elétrons e não sobre papai-mamãe… é evidente.
CP: Sobre esse agenciamento coletivo do desejo, penso em certos contra-sensos. Lembro-me que em Vincennes, em 72, na faculdade, havia pessoas que punham em prática esse desejo e isso acabava em amores coletivos, não tinham compreendido bem. Houve muitos loucos em Vincennes, como vocês partiam de uma esquizo-análise para combater a psicanálise, todo mundo achava que era legal ser louco, ser esquizo. Víamos cenas inverossímeis entre os estudantes. Queria que contasse casos engraçados ou não desses contra-sensos sobre o desejo.
GD: Eu poderia falar dos contra-sensos abstratamente. Consistiam em duas coisas, havia dois casos, que dá no mesmo. Havia os que pensavam que o desejo era o espontaneísmo, e havia todo tipo de movimentos espontâneos, o espontaneísmo.
CP: Os célebres maos-spontex…
GD: E os outros que pensavam que o desejo era a festa. Para nós, não era nem um nem outro, mas não tinha importância, pois, de qualquer modo, havia agenciamentos que aconteciam, havia coisas que mesmo os loucos… havia tantos, de todos os tipos. Fazia parte do que acontecia naquele momento, em Vincennes. Mas os loucos tinham sua disciplina, tinham sua maneira de… faziam seus discursos, suas intervenções, entravam em um agenciamento, tinham seu agenciamento, mas entravam em agenciamentos. Tinham uma espécie de astúcia, de compreensão, de grande benevolência, os loucos. Se quiser, na prática, eram séries de agenciamentos que se faziam e desfaziam. Na teoria, o contra-senso era dizer: o desejo é a espontaneidade. De modo que éramos chamados de espontaneístas, ou então era a festa, mas não era isso. Era… a filosofia dita do desejo consistia, unicamente, em dizer para as pessoas: não vão ser psicanalizados, nunca interpretem, experimentem agenciamentos, procurem agenciamentos que lhes convenham. O que era um agenciamento? Um agenciamento, para mim, e Félix, não que ele pensasse diferentemente, pois era, talvez… não sei. Para mim, eu manteria que havia quatro componentes de agenciamento. Por alto, quatro, não prefiro quatro a seis… Um agenciamento remetia a estados de coisas, que cada um encontre estados de coisas que lhe convenha. Há pouco, para beber… gosto de um bar, não gosto de outro, alguns preferem certo bar, etc… Isso é um estado de coisas. Nas dimensões do agenciamento, enunciados, tipos de enunciados, e cada um tem seu estilo, há um certo modo de falar, andam juntos, no bar, por exemplo, há amigos, e há uma certa maneira de falar com os amigos, cada bar tem seu estilo. Digo bar, mas vale para qualquer coisa. Um agenciamento comporta estados de coisas e enunciados, estilos de enunciação. É interessante, a História é feita disto, quando aparece um novo tipo de enunciado? Por exemplo, na revolução russa, os enunciados do tipo leninista, quando eles aparecem, como, em que forma? Em 68, quando apareceram os primeiros enunciados ditos de 68? É bem complexo. Todo agenciamento implica estilos de enunciação. Implica territórios, cada um com seu território, há territórios. Mesmo numa sala, escolhemos um território. Entro numa sala que não conheço, procuro o território, lugar onde me sentirei melhor. E há processos que devemos chamar de desterritorialização, o modo como saímos do território. Um agenciamento tem quatro dimensões: estados de coisas, enunciações, territórios, movimentos de desterritorialização. E é aí que o desejo corre…
CP: Você não se sente responsável pelas pessoas que tomaram drogas? Ou, lendo muito ao pé da letra O anti-Édipo, não é como Catão, que incita os jovens a fazer bobagens?
GD: Sentimo-nos responsáveis por tudo, se algo dá errado.
CP: E os efeitos de O anti-Édipo?
GD: Sempre me esforcei para que desse certo. Em todo caso, nunca, acho, é minha única honra, nunca me fiz de esperto com essas coisas, nunca disse a um estudante: é isso, drogue-se você tem razão. Sempre fiz o que pude para que ele saísse dessa, porque sou muito sensível à coisa minúscula que de repente faz com que tudo vire trapo. Que ele beba, muito bem… Ao mesmo tempo, nunca pude criticar as pessoas, não gosto de criticá-las. Acho que se deve ficar atento para o ponto em que a coisa não funciona mais. Que bebam, se droguem, o que quiserem, não somos policiais, nem pais, não sou eu quem deve impedi-los ou … mas fazer tudo para que não virem trapos. No momento em que há risco, eu não suporto. Suporto bem alguém que se droga, mas alguém que se droga de tal modo que, não sei, de modo selvagem, de modo que digo para mim: pronto, ele vai se ferrar, não suporto. Sobretudo o caso de um jovem, não suporto um jovem que se ferra, não é suportável. Um velho que se ferra, que se suicida, ele teve sua vida, mas um jovem que se ferra por besteira, por imprudência, porque bebeu demais… Sempre fiquei dividido entre a impossibilidade de criticar alguém e o desejo absoluto, a recusa absoluta de que ele vire trapo. É um desfiladeiro estreito, não posso dizer que há princípios, a gente sai fora como pode, a cada vez. É verdade que o papel das pessoas, nesse momento, é de tentar salvar os garotos, o quanto se pode. E salvá-los não significa fazer com que sigam o caminho certo, mas impedi-los de virar trapo. É só o que quero.
CP: Mas sobre os efeitos de O anti-Édipo, houve efeitos?
GD: Foi impedir que eles virassem trapos, que naquele momento… que um cara que desenvolvia… um início de esquizofrenia fosse colocado em boas condições, não fosse jogado num hospital repressivo, tudo isso… Ou então que alguém que não suportava mais, um alcoólatra, onde ia mal, fazer com que ele parasse…
CP: Porque era um livro revolucionário, na medida em que parecia, para os inimigos desse livro, e para os psicanalistas, uma apologia da permissividade, e dizer que tudo era desejo…
GD: De forma alguma… Esse livro, ou seja, quando se lê esse livro, ele sempre teve uma prudência, me parece, extrema. A lição era: não se tornem trapos. Quando nos opúnhamos…, não paramos de nos opor ao processo esquizofrênico como o que ocorre num hospital, e para nós, o terror era produzir uma criatura de hospital. Tudo, menos isso! E quase diria que louvar o aspecto de valor da “viagem”, daquilo que, naquele momento, os anti-psiquiatras chamavam de viagem ou processo esquizofrênico, era um modo de evitar, de conjurar a produção de trapos de hospital, a produção dos esquizofrênicos, a fabricação de esquizofrênicos.
CP: Você acha, para terminar com O anti-Édipo, que há ainda efeitos desse livro, 16 anos depois?
GD: Sim, pois é um bom livro, pois há uma concepção do inconsciente. É o único caso em que houve uma concepção do inconsciente desse tipo, sobre os dois ou três pontos: as multiplicidades do inconsciente, o delírio como delírio-mundo, e não delírio-família, o delírio cósmico, das raças, das tribos, isso é bom. O inconsciente como máquina, como fábrica e não como teatro. Não tenho nada a mudar nesses três pontos, que continuam absolutamente novos, pois toda a psicanálise se reconstituiu. Para mim, espero, é um livro que será redescoberto, talvez. Rezo para que o redescubram.
E de Enfance [Infância]
CP: E de Enfance [Infância]. Lembranças distantes. Os primeiros anos de vida, a crise, a Frente Popular e a chegada da guerra.
CP: E de Enfance [Infância]. Você costuma dizer que começou sua vida na Av. Wagram, pois nasceu no 17º distrito de Paris. Depois, foi morar com sua mãe na R. Daubigny, no 17º distrito, e, agora, mora perto da Place Clichy, bairro mais pobre, também no 17º, R. de Bizerte. Como estará morto quando este filme for exibido, posso dar o seu endereço. Primeiro, quero saber se a sua família é o que chamamos de burguesa e de direita.
GD: Eu sempre digo onde moro quando me fazem a pergunta. Houve de fato uma queda. Comecei por cima, pelo alto do 17°, um bairro muito bonito. E durante a minha infância, vivi a crise antes da guerra. Uma das lembranças que tenho da infância durante a crise era a quantidade de apartamentos vazios. As pessoas estavam sem dinheiro mesmo e havia apartamentos para alugar por toda a cidade. Meus pais tiveram de deixar o apartamento chique do alto do 17º, perto do Arco do Triunfo, e desceram, mas ainda era bom, perto do Boulevard Malesherbes. Era numa ruazinha, a R. Daubigny. Depois, quando eu voltei para Paris, já mais velho, fui para a fronteira do 17º distrito, que é mais proletário, na R. Nollet e R. Toussaint. Perto da casa onde morou Verlaine, que também não era rico. Foi mesmo uma queda. Dentro de alguns anos, não sei onde estarei. Mas não deve melhorar em nada.
CP: Em Saint-Quen, talvez?
GD: É, pode ser. Mas a minha família era uma família burguesa. Não era de direita, ou melhor era, sim, de esquerda é que não era. Preciso me situar, pois não tenho lembranças de infância. Não tenho lembranças porque a memória é uma faculdade que deve afastar o passado em vez de acioná-lo. É preciso muita memória para rejeitar o passado, porque não é um arquivo. Então, tenho esta lembrança: havia aquelas placas nos apartamentos onde estava escrito “Aluga-se”. Eu vivi muito aquela crise.
CP: Que anos eram estes?
GD: Não lembro os anos. Não sei, devia ser entre… Entre 1930-1935. 1930… Não me lembro mais.
CP: Você tinha 10 anos.
GD: As pessoas não tinham dinheiro. Nasci em 1925. E me lembro da preocupação com o dinheiro. Foi o que me impediu de ir no colégio dos jesuítas, pois meus pais não tinham mais dinheiro. Eu estava destinado aos jesuítas e acabei no liceu por causa da crise. Mas o outro aspecto… Deixe-me ver… Havia outro aspecto da crise, mas não sei mais. Não sei mais, mas não importa. E então, houve a guerra. Quando digo que era uma família de direita… Eu me lembro muito bem, eles não se recuperaram e é por isso que entendo melhor alguns patrões de hoje. O pavor que eles tinham da Frente Popular era uma coisa inacreditável. Talvez muitos patrões não tenham vivido isso, mas deve restar alguns que conheceram esta fase. Para eles, a Frente Popular ficou marcada como a imagem do caos, pior do que Maio de 68. E me lembro de que toda esta burguesia de direita percebia o sintoma. Todos eram anti-semitas e Leon Blum foi uma coisa impressionante. O ódio que Mendès-France carregou nas costas não foi nada perto do que Blum carregou. Pois ele foi de fato o primeiro. A reação causada pelas férias remuneradas foi impressionante!
CP: O primeiro judeu de esquerda conhecido?
GD: Sim, eu diria que Blum foi pior do que o diabo. Não é possível entender como Pétain tomou o poder daquela forma sem conhecer o nível de anti-semitismo da França e da burguesia francesa naquele momento. O ódio das medidas sociais tomadas pelo governo de Leon Blum. Foi impressionante! Imagine meu pai, que era meio “Cruz de Fogo”… Isso era comum naquela época! Portanto, era uma família de direita inculta. Havia uma burguesia culta, mas a minha era inculta. Completamente inculta. Mas meu pai era, como se costumava chamar, um homem muito distinto, afável, distinto e encantador. Eu ficava espantado com esta violência contra Blum. Ele vinha da guerra de 1914. Tudo se encaixa. É um mundo fácil de ser entendido em geral, mas que não se pode imaginar em detalhes. Os combatentes da Guerra de 1914, o anti-semitismo, o regime da crise, a própria crise… Que crise era essa que ninguém entendia?
CP: Qual era a profissão dele?
GD: Era engenheiro. Mas era um engenheiro muito especial. Tenho a lembrança de duas atividades dele. Não sei se foi criação dele ou se trabalhava com isso, mas era um produto para impermeabilizar os tetos. Impermeabilização dos tetos. Mas com a crise, ele ficou com apenas um operário, um italiano. Ainda mais um estrangeiro… As coisas iam muito mal. O negócio acabou falindo e ele foi parar em uma indústria mais “séria” que fabricava balões. Aqueles balões… Aquelas coisas… As aeronaves. Entende, não é? Mas foi num momento em que não serviam mais para nada. Tanto que, em 1939, voavam pelos céus de Paris para frear aviões alemães. Eram como pombos voadores. Quando os alemães se apoderaram da fábrica em que meu pai trabalhava, eles foram bem mais sensatos e a transformaram em fábrica de botes infláveis, que teriam mais serventia. Mas não fizeram balões, nem zepelins. Então, eu vi o nascimento da guerra. Eu devia ter uns 14 anos e me lembro muito bem das pessoas… elas sabiam muito bem que tinham ganho um ano com Munique; um ano e alguns meses, mas a guerra estava aí. A guerra se sucedeu à crise. Era uma atmosfera muito tensa em que as pessoas mais velhas do que eu devem ter vivido momentos terríveis. Quando os alemães chegaram de fato, devastaram a Bélgica, entraram na França e tudo o mais. Eu estava em Deauville, porque era o lugar em que meus pais sempre passavam as férias de verão. Eles já tinham voltado. Foram e nos deixaram lá, o que era impensável, pois tínhamos uma mãe que nunca havia nos deixado, etc…
Ficamos em uma pensão; nossa mãe tinha nos deixado com uma senhora que era a dona desta pensão. E eu fui à escola durante um ano em Deauville, em um hotel que foi transformado em liceu. E os alemães estavam chegando. Não, estou confundindo tudo. Isso foi no início da guerra. De qualquer forma, eu estava em Deauville. Quando, há pouco, falei das férias remuneradas, eu me lembro que a chegada das férias remuneradas à praia de Deauville foi uma coisa! Para um cineasta, isso poderia virar uma obra-prima, pois era prodigioso ver aquela gente vendo o mar pela primeira vez! Eu vi uma pessoa vendo o mar pela primeira vez na vida e é esplêndido! Era uma menina da região de Limousin que estava conosco e que viu o mar pela primeira vez. Se existe alguma coisa inimaginável quando nunca se o viu, esta coisa é o mar. A gente pode imaginar que seja grandioso, infinito, mas tudo isso perde a força quando se vê o mar. Aquela menina ficou umas quatro ou cinco horas diante do mar, completamente abobalhada, e não se cansava de ver um espetáculo tão sublime, tão grandioso! Então, na praia de Deauville, que sempre tinha sido exclusiva dos burgueses, como se fosse propriedade deles, de repente, chega o povo das férias remuneradas… Pessoas que nunca tinham visto o mar. E foi fantástico. Se o ódio entre as classes tem algum sentido são palavras como as que dizia a minha mãe — que, no entanto, era uma mulher fabulosa —, sobre a impossibilidade de se freqüentar uma praia em que havia gente como aquela. Foi muito duro. Acho que eles, os burgueses, nunca esqueceram. Maio de 68 não foi nada perto disso.
CP: Fale mais do medo que eles tinham.
GD: O medo é de que isso nunca fosse parar. Se davam férias remuneradas aos operários, todos os privilégios burgueses estavam ameaçados. Os locais frequentados eram como questões de território. Se as empregadas vinham para as praias de Deauville era como se, de repente, voltássemos à era dos dinossauros. Era uma agressão. Pior do que os alemães. Pior do que os tanques alemães chegando na praia! Você entende? Era indescritível!
CP: Era gente de outro mundo.
GD: E isso era apenas um detalhe, mas quanto ao que estava acontecendo nas fábricas? Nunca esqueceram isso. Acho até que este medo é hereditário. Não quero dizer que Maio de 68 não foi nada. É outra história. Mas também não se esqueceram de 68. Enfim… Eu estava lá em Deauville sem meus pais, e com meu irmão. Quando os alemães realmente invadiram, foi aí que deixei de ser bobo. Eu era um rapaz extremamente medíocre na escola, não tinha interesse por nada, a não ser por uma coleção de selos, que era a minha maior atividade e eu era um péssimo aluno. Até que aconteceu comigo o que acontece com muita gente. As pessoas que despertam sempre o são por causa de alguém em algum momento. E no meu caso, neste hotel que virou escola, havia um cara jovem que me pareceu extraordinário porque falava muito bem. Para mim, foi um despertar absoluto. Eu tive a sorte de encontrar este cara que, mais tarde, ficou relativamente conhecido. Primeiro, porque ele tinha um pai famoso e, depois, porque ele foi muito ativo na esquerda, só que bem mais tarde. Ele se chamava Halbwachs. Pierre Halbwachs, filho do sociólogo. Naquela época, ele era muito jovem e tinha uma cara estranha. Era muito magro, muito alto… Na minha lembrança, ele era alto. E ele só tinha um olho. Um olho aberto e o outro fechado. Não tinha nascido assim, mas era assim, como um cíclope. Tinha cabelos muito cacheados, como uma cabra… Aliás, mais do que um carneiro. Quando fazia frio, ele ficava verde, roxo, tinha uma saúde extremamente frágil, tanto que ele foi reformado no exército e colocado como professor durante a guerra para preencher as vagas. Para mim, foi uma revelação. Ele era cheio de entusiasmo. Não sei mais em que ano eu estava, talvez 3º ou 4º ano ginasial, mas ele comunicava aos alunos, ou pelo menos a mim, algo que foi uma reviravolta para mim. Eu estava descobrindo alguma coisa. Ele nos falava de Baudelaire e lia muito bem. E nós nos aproximamos. Claro, ele tinha percebido que me impressionava muito. Eu me lembro que, no inverno, ele me levava para a praia de Deauville. E eu o seguia, colava nele, literalmente. Eu era seu discípulo. Tinha encontrado um mestre. Nós nos sentávamos nas dunas e, em meio ao vento, ao mar, era fantástico, ele me lia Les nourritures terrestres. Ele gritava, pois não havia ninguém na praia no inverno. Ele gritava: “Les nourritures terrestres”, e eu estava sentado ao lado dele, com medo de alguém aparecer. Eu achava tudo aquilo estranho. E ele lia muitas coisas, era muito variado. Ele me fez descobrir Anatole France, Baudelaire, Gide… Acho que estes eram os principais. Eram as suas grandes paixões. E eu fui transformado, absolutamente transformado. Mas logo começaram os comentários sobre aquele homem com aquela figura, aquele seu olho e o menino que estava sempre atrás dele. Iam sempre juntos à praia, etc. A senhora que me hospedava ficou logo preocupada, me chamou, disse que era responsável por mim na falta de meus pais e que queria me alertar sobre certas relações. Eu não entendi nada. Não entendi, pois, se havia uma relação pura, incontestável e aberta, era justamente a nossa. Só depois, eu percebi que consideravam Pierre Halbwachs um pederasta perigoso. Então, eu disse a ele: “Estou chateado, pois a senhora que me hospeda disse…” Eu o chamava de “senhor” e ele me chamava de “você”. “Ela disse que não devo vê-lo, que não é normal, nem correto”. E ele me disse: “Não se preocupe, nenhuma senhora resiste a mim. Vou falar com ela, explicar tudo e ela ficará tranqüila”. Ele tinha me tornado esperto o bastante para me deixar em dúvidas. Eu não estava tranqüilo. Tinha um pressentimento ruim. Achava que a velha senhora não se convenceria. E, de fato, foi um desastre. Ele foi ver a senhora que escreveu imediatamente para meus pais pedindo que me tirassem de lá rápido porque ele era alguém extremamente suspeito. A tentativa dele foi um fracasso total. Mas eis que os alemães chegaram. A guerra estava começando. Os alemães chegaram e meu irmão e eu saímos de bicicleta ao encontro de meus pais que tinham ido para Rochefort. A fábrica tinha se mudado para lá, fugindo-se dos alemães. Fomos de Deauville a Rochefort de bicicleta e ainda me lembro de ter ouvido o famoso discurso infame de Pétain no albergue de uma aldeia. Meu irmão e eu estávamos de bicicleta e, em um cruzamento, quem encontramos? Parecia desenho animado: em um carro, estavam o velho Halbwachs, o filho e um esteta que se chamava Bayer. Eles estavam indo para perto de La Rochelle. Era o destino. Mas estou contando isso só para dizer que, depois de ter reencontrado Halbwachs, eu o conheci bem melhor e não tinha mais admiração por ele. Mas isso me mostrou que foi no momento em que eu o admirei com 14, 15 anos que eu tive razão.
CP: Depois, voltou a Paris, ao Liceu Carnot, com um certo pesar, já que as férias haviam acabado. Neste liceu, teve aulas de Filosofia. Foi nesta época que Merleau-Ponty era professor lá, mas você entrou numa turma em que não havia Merleau-Ponty. Seu professor chamava-se Sr. Viale. Acho que era este o nome, não?
GD: Sim, o Sr. Viale. Tenho dele uma lembrança comovida. Foi por acaso. Houve a distribuição dos alunos… Eu poderia ter tentado passar para a turma de Merleau-Ponty, mas não tentei, não sei por quê. Viale foi… É curioso, porque Halbwachs me fez sentir alguma coisa do que era a Literatura, mas, desde as primeiras aulas de Filosofia, eu soube que era isso que eu faria. Eu me lembro de coisas esparsas, aqui e ali. Em Filosofia, eu me lembro de quando soubemos da chacina de Oradour. Tinha acontecido naquela época. É bom lembrar que eu estava em uma turma de pessoas um pouco politizadas, sensíveis às questões nazistas. Eu estava na turma de Guy Moquet. Eu me lembro disso. Havia uma atmosfera estranha nesta turma. De qualquer forma, lembro da forma como foi anunciado Oradour. Foi um fato marcante entre os rapazes de 17 anos… Não sei com que idade se passava a prova final. Talvez, 17, 18 anos ou 16, 17 anos.
CP: Normalmente, 18 anos.
GD: Sim, me lembro bem. Quanto a Viale, era um professor que falava baixo, já era velho. Eu gostava imensamente dele. De Merleau-Ponty, tenho a lembrança da melancolia. Carnot era um grande liceu no qual havia uma balaustrada ao longo de todo o primeiro andar. E havia o olhar melancólico de Merleau-Ponty que observava as crianças brincando e gritando. Uma grande melancolia. Era como se ele dissesse: “O que estou fazendo aqui?” Enquanto que Viale, de quem eu gostava muito, estava no fim de sua carreira. Eu também me liguei muito a ele. Ficamos muito ligados e, como morávamos perto um do outro, voltávamos sempre juntos. Nós falávamos sem parar. Sabia que eu faria Filosofia ou não faria nada.
CP: Logo nas primeiras aulas?
GD: Sim, sim! Foi como quando eu soube que existiam coisas tão estranhas quanto o que chamavam de conceitos. Para mim, teve o mesmo efeito do que para outros a descoberta de um personagem de ficção. Como fiquei emocionado ao descobrir Monsieur de Charlus! Ou um grande personagem de romance, ou Vautrin. Ou ainda Eugénie Grandet. Quando eu aprendi o que Platão chamava de “idéia”, me parecia ter vida! Era animado! Eu sabia que era isso; que, para mim, era isso.
CP: E você logo se tornou bom aluno? O melhor?
GD: Sim. Aí, eu não tinha mais problemas escolares. Desde Halbwachs, tornei-me bom aluno! Era bom em Letras. Até mesmo em Latim, eu era bom. Eu era um bom aluno. Em Filosofia, um ótimo aluno.
CP: Queria que voltássemos a uma coisa. As turmas não eram politizadas naquela época? Você disse que a sua turma era especial, pois havia Guy Moquet, etc.
GD: Não era possível ser politizado durante a guerra. Certamente havia rapazes de 17, 18 anos que estavam na Resistência. Mas quem estava na Resistência se calava, a menos que fosse um cretino. Não se pode falar em politização. Havia pessoas indiferentes e as favoráveis ao governo de Vichy.
CP: Havia a Ação Francesa?
GD: Não era a Ação Francesa, era muito pior. Eram os “Vichyssois”. Não há comparação com a politização em épocas de paz, já que os elementos realmente ativos eram os resistentes ou jovens com alguma relação com a Resistência. Não tinha nada a ver com politização; era mais secreto.
CP: Mas, em sua turma, havia pessoas simpatizantes? Jovens que simpatizavam com a Resistência?
GD: Sim, posso citar Guy Moquet, que foi morto. Acabou sendo assassinado pelos nazistas um ano depois.
CP: Mas vocês falavam a esse respeito?
GD: Sim, claro. Como eu disse, o aviso, a comunicação imediata de Oradour tinha a ver com comunicação secreta, com o telégrafo, pois a notícia se espalhou e, no mesmo dia, todas as escolas parisienses já sabiam. Saber imediatamente do ocorrido em Oradour foi uma das coisas mais emocionantes para mim.
CP: Para fechar a infância, senão não terminamos nunca, a sua parece ter tido pouca importância para você. Você não fala dela e nem é uma referência. Temos a impressão de que a infância não é importante para você.
GD: Sim, claro. É quase em função de tudo o que acabo de dizer. Acho que a atividade de escrever não tem nada a ver com o problema pessoal de cada um. Não disse que não se deve investir toda a sua alma. A literatura e o ato de escrever têm a ver com a vida. Mas a vida é algo mais do que pessoal. Na literatura, tudo o que traz algo da vida pessoal do escritor é por natureza desagradável. É lamentável, pois o impede de ver, sempre o remete para seu pequeno caso particular. Minha infância nunca foi isso. Não é que eu tenha horror a ela! Mas o que me importa, na verdade, é como já dizíamos: “Há o devir-animal que envolve o homem e o devir-criança”. Acho que escrever é um devir alguma coisa. Mas também não se escreve pelo simples ato de escrever. Acho que se escreve porque algo da vida passa em nós. Qualquer coisa. Escreve-se para a vida. É isso. Nós nos tornamos alguma coisa. Escrever é devir. É devir o que bem entender, menos escritor. É fazer tudo o que quiser, menos arquivo. Respeito o arquivo em si. Neste caso, sim, quando é arquivo. Mas ele tem interesse em relação a outra coisa. Se o arquivo existe é justamente porque há uma outra coisa. E, através do arquivo, pode se entender alguma coisinha desta outra coisa. Mas a simples idéia de falar da minha infância — não só porque ela não tem interesse algum — me parece o contrário de toda a Literatura. Se me permite, vou ler uma coisa que já li mil vezes e que todos os escritores já disseram. Mas vi este livro ontem, eu não o conhecia. É de um grande poeta russo, Mandelstam. Eu o estava lendo ontem.
CP: Ele tem um nome lindo, poderia dizê-lo.
GD: Sim, é Ossip. Nesta frase, ele diz… É o tipo de frase que me transtorna. E o papel do professor é este: comunicar e fazer com que crianças apreciem um texto. Foi o que Halbwachs fez por mim. Ele diz que não entende que alguém como Tolstoi se apaixone por arquivos familiares. Ele continua. “Eu repito: a minha memória não é amor, mas hostilidade. Ela trabalha não para reproduzir, mas para afastar o passado. Para um intelectual de origem medíocre, a memória é inútil. Basta-lhe falar dos livros que leu e sua biografia está feita. Dentre as gerações felizes, onde a epopéia fala através de hexâmetros e crônicas, para mim, parece um sinal de pasmaceira. Entre mim e o século, há um abismo, um fosso repleto de tempo fremente. O que queria dizer a minha família? Eu não sei. Era gaga de nascença e, no entanto, tinha algo a dizer. Sobre mim e muitos dos meus contemporâneos, pesa a gagueira de nascimento. Aprendemos não a falar, mas a balbuciar. Foi só quando demos ouvidos ao barulho crescente do século e fomos embranquecidos pela espuma de sua crista que adquirimos uma linguagem”. Para mim, isso quer dizer que… Quer dizer de fato que escrever é mostrar a vida. É testemunhar em favor da vida, dos idiotas que estão morrendo. É gaguejar na língua. Fazer literatura apelando para a infância é tornar a Literatura parte de seu caso particular. É fazer literatura barata, são os best-sellers. É realmente uma porcaria. Se não se leva a linguagem até o ponto em que se gagueja — o que não é fácil, pois não basta gaguejar assim — , se não se vai até este ponto. Na Literatura, de tanto forçar a linguagem até o limite, há um devir animal da própria linguagem e do escritor e também há um devir criança, mas que não é a infância dele. Ele se torna criança, mas não é a infância dele, nem de mais ninguém. É a infância do mundo. Os que se interessam pela sua própria infância que se danem e que continuem a fazer a Literatura que eles merecem. Se há alguém que não se interessa por sua própria infância, este alguém é Proust. A tarefa do escritor não é vasculhar os arquivos familiares, não é se interessar por sua própria infância. Ninguém se interessa por isso. Ninguém digno de alguma coisa se interessa por sua infância. A tarefa é outra: devir criança através do ato de escrever, ir em direção à infância do mundo e restaurar esta infância. Eis as tarefas da Literatura.
CP: E a criança nietzschiana?
GD: Nietzsche, entre outros, sabia disso, assim como Mandelstam sabia. Todos os escritores sabem disso. Mas eu insisto. Não consigo pensar em outra fórmula além desta: escrever é devir, mas não é tornar-se escritor, nem um memorialista. Nada disso. Não é porque vivi uma história de amor que vou escrever um romance. É horrível pensar assim. Não é apenas medíocre, é horrível!
CP: Há uma exceção à regra: Nathalie Sarraute, uma escritora fabulosa, escreveu um livro chamado Infância. Um momento de fraqueza?
GD: Absolutamente! Nathalie Sarraute é uma escritora fabulosa, mas não é um livro sobre a infância dela. É um livro no qual ela testemunha, reinventa…
CP: Banquei o advogado do diabo.
GD: Eu sei, mas é um papel muito perigoso. Ela inventa a infância do mundo. O que interessa a N. Sarraute de sua infância? São algumas fórmulas estereotipadas das quais ela vai tirar maravilhas. Pode ser o que ela fez com as últimas palavras de … De quem mesmo?
CP: Tchekov.
GD: As últimas palavras de Tchekov. Ela tirou daí. Depois, ela pega de novo uma menina que ouviu alguém dizer: “Como vai?” e vai criar um mundo de linguagem, fazer proliferar a linguagem. Claro que Nathalie Sarraute não se interessa por sua própria infância!
CP: Tudo bem, mas mesmo assim…
GD: Claude Sarraute talvez se interesse, mas Nathalie Sarraute, não.
CP: Claro, claro. Aceito tudo isso. Mas, de alguma forma, foi um treinamento precoce que o levou à Literatura? Você reprimiu a infância e a rejeitou como uma inimiga. Isso foi a partir de que idade? É um treinamento? Por outro lado, a infância sempre volta, mesmo que seja de uma forma revoltante. É preciso treinar quase diariamente? Precisa ter uma disciplina cotidiana?
GD: Isso simplesmente acontece, eu acho. A infância, a infância… Como tudo, é preciso saber separar a infância ruim da boa. O que é interessante? A relação com o pai, a mãe e as lembranças da infância não me parecem interessantes. É interessante e rico para si próprio, mas não para escrever. Há outros aspectos da infância. Falamos há pouco do cavalo que morreu na rua, antes do surgimento do carro. Encontrar a emoção da criança… Na verdade, é “uma” criança. A criança que “eu” fui não quer dizer nada. Mas eu não sou apenas a criança que fui, eu fui “uma” criança entre muitas outras. Eu fui “uma criança qualquer”. E foi assim que eu vi o que era interessante e não como “eu era a tal criança”. “Eu vi um cavalo morrer na rua antes que surgissem os carros”. Não estou falando por mim, mas por aqueles que viram. Muito bem, muito bem… Perfeito. É uma tarefa do tornar-se escritor. Algum fator fez com que Dostoiévski o visse. Há uma página inteira em Crime e castigo, eu acho, sobre o cavalo que morre na rua. Nijinski, o dançarino, o viu. Nietzsche também viu. Já estava velho quando o viu em Turim, eu acho. Muito bem!
CP: E você viu as manifestações da Frente Popular.
GD: Sim, eu vi estas manifestações, vi meu pai dividido entre sua honestidade e seu anti-semitismo. Eu fui “uma” criança. Eu sempre insisti no fato de que não se entende o sentido do artigo indefinido. “Uma” criança espancada, “um” cavalo chicoteado. Não quer dizer “eu”. O artigo indefinido é de uma extrema riqueza.
CP: São as multiplicidades. Falaremos disso.
GD: Sim, é a multiplicidade.
F de Fidelidade
CP: F de Fidelidade. Fidelidade não gera amizade. Tudo isso vem de um mistério muito maior. Com o Gordo e o Magro, e Bouvard e Pecuchet. Vamos passar para a letra F.
GD: Vamos ao F.
CP: Escolhi a palavra Fidelidade. Fidelidade para falar de amizade, já que há 30 anos, é amigo de Jean-Pierre Braunberger. E todos os dias, vocês se telefonam ou se vêem. É como um casal. Você é fiel às suas amizades, é fiel a Félix Guattari, a Jerôme Lindon, a Elie, a Jean-Paul Manganaro, Pierre Chevalier… Seus amigos são muito importantes para você. François Châtelet e Michel Foucault eram seus amigos e você os homenageou como amigos com grande fidelidade. Queria saber se a impressão de a fidelidade estar obrigatoriamente ligada à amizade é correta? Ou será o contrário?
GD: Não há Fidelidade. É só uma questão de conveniência, já que começa com F.
CP: Sim, e o A já foi preenchido.
GD: É outra coisa. A amizade. Por que se é amigo de alguém? Para mim, é uma questão de percepção. É o fato de… Não o fato de ter idéias em comum. O que quer dizer “ter coisas em comum com alguém”? Vou dizer banalidades, mas é se entender sem precisar explicar. Não é a partir de idéias em comum, mas de uma linguagem em comum, ou de uma pré-linguagem em comum. Há pessoas sobre as quais posso afirmar que não entendo nada do que dizem, mesmo coisas simples como: “Passe-me o sal”. Não consigo entender. E há pessoas que me falam de um assunto totalmente abstrato, sobre o qual posso não concordar, mas entendo tudo o que dizem. Quer dizer que tenho algo a dizer-lhes e elas a mim. E não é pela comunhão de idéias. Há um mistério aí. Há uma base indeterminada… É verdade que há um grande mistério no fato de se ter algo a dizer a alguém, de se entender mesmo sem comunhão de idéias, sem que se precise estar sempre voltando ao assunto. Tenho uma hipótese: cada um de nós está apto a entender um determinado tipo de charme. Ninguém consegue entender todos os tipos ao mesmo tempo. Há uma percepção do charme. Quando falo de charme não quero supor absolutamente nada de homossexualidade dentro da amizade. Nada disso. Mas um gesto, um pensamento de alguém, mesmo antes que este seja significante, um pudor de alguém são fontes de charme que têm tanto a ver com a vida, que vão até as raízes vitais que é assim que se torna amigo de alguém. Vejamos o exemplo de frases! Há frases que só podem ser ditas se a pessoa que as diz for muito vulgar ou abjeta. Seria preciso pensar em exemplos e não temos tempo. Mas cada um de nós, ao ouvir uma frase deste nível, pensa: “O que acabei de ouvir? Que imundicie é essa?” Não pense que pode soltar uma frase destas e tentar voltar atrás, não dá mais. O contrário também vale para o charme. Há frases insignificantes que têm tanto charme e mostram tanta delicadeza que, imediatamente, você acha que aquela pessoa é sua, não no sentido de propriedade, mas é sua e você espera ser dela. Neste momento nasce a amizade. Há de fato uma questão de percepção. Perceber algo que lhe convém, que ensina, que abre e revela alguma coisa.
CP: Decifrar signos.
GD: Exatamente. Disse muito bem. É só o que há. Alguém emite signos e a gente os recebe ou não. Acho que todas as amizades têm esta base: ser sensível aos signos emitidos por alguém. A partir daí, pode-se passar horas com alguém sem dizer uma palavra ou, de preferência, dizendo coisas totalmente insignificantes. Em geral, dizendo coisas… A amizade é cômica.
CP: Você gosta muito dos cômicos, das duplas de amigos, como Bouvard e Pecuchet, Mercier e Camier…
GD: Sim, Jean-Pierre e eu somos uma pálida reprodução de Mercier e Camier. Eu estou sempre cansado, não tenho boa saúde, Jean-Pierre é hipocondríaco e nossas conversas são do tipo de Mercier e Camier. Um diz ao outro: “Como está?” O outro responde: “Uma bela viola, sem muito bolor”. É uma frase cheia de charme. Tem de gostar de quem a diz. Ou: “Estou como uma rolha no balanço do mar”. São boas frases. Com Félix é diferente, não somos Mercier e Camier, estamos mais próximos de Bouvard e Pécuchet. Com tudo o que fizemos juntos, mergulhamos em uma tentativa enciclopédica. E dizemos coisas como: “Temos a mesma marca de chapéu!” E volta a tentativa enciclopédica, a de fazer um livro que aborde todos os saberes. Com outro amigo, poderia ser uma réplica de o Gordo e o Magro. Não é que se deva imitar estas grandes duplas, mas amizade é isso. Os grandes amigos são Bouvard e Pécuchet, Camier e Mercier, o Gordo e o Magro, mesmo que estes tenham brigado. Pouco importa. Na questão da amizade, há uma espécie de mistério. Isso diz respeito direto à Filosofia. Porque na palavra “filosofia” existe a palavra “amigo”. Quero dizer que o filósofo não é um sábio. Do contrário, seria cômico. Ao pé da letra, é o “amigo da sabedoria”. O que os gregos inventaram não foi a sabedoria, mas a estranha idéia de “amigo da sabedoria”. Afinal, o que quer dizer “amigo da sabedoria”? Esse é que é o problema. O que é a filosofia e o que pode ser amigo da sabedoria? Quer dizer que o amigo da sabedoria não é sábio. Há uma interpretação óbvia que é: “Ele tende à sabedoria”. Não é por aí. O que inscreve a amizade na filosofia e que tipo de amizade? Há alguma relação com um amigo? O que era para os gregos? O que quer dizer “amigo de”? Se interpretamos “amigo” como aquele que “tende a”, amigo é aquele que pretende ser sábio sem ser sábio. Mas o que quer dizer “pretender ser sábio”? Quer dizer que há outro. Nunca se é o único pretendente. Se há um pretendente, é porque há outros, quer dizer que a moça tem vários pretendentes.
CP: Não se é o prometido da sabedoria, é-se apenas um pretendente.
GD: Exatamente. Então, há pretendentes. E o que os gregos inventaram? Na minha opinião, na civilização grega, eles inventaram o fenômeno dos pretendentes. Quer dizer que eles inventaram a idéia de que havia uma rivalidade entre os homens livres em todas as áreas. Não havia esta idéia de rivalidade entre homens livres, só na Grécia. A eloqüência. É por isso que são tão burocráticos. É a rivalidade entre os homens livres. Então, eles se processam mutuamente, os amigos também. O rapaz ou a moça tem pretendentes. Os pretendentes de Penélope. Este é o fenômeno grego por excelência. Para mim, o fenômeno grego é a rivalidade dos homens livres. Isso explica “amigo” na Filosofia. Eles pretendem, há uma rivalidade em direção a alguma coisa. A quê? Podemos interpretar, tendo em vista a história da Filosofia. Para alguns, a Filosofia está ligada ao mistério da amizade. Para outros, está ligada ao mistério do noivado. E talvez seja por aí. Les fiançailles rompues [O noivado rompido], Kierkegaard. Não há Filosofia sem este texto, sem o primeiro amor. Mas como já dissemos, o primeiro amor é a repetição do último, talvez seja o último amor. Talvez o casal tenha uma importância na Filosofia. Acho que só saberemos o que é a Filosofia quando forem resolvidas as questões da noiva, do amigo, do que é o amigo, etc… É isso que me parece interessante.
CP: E Blanchot na amizade? Havia uma idéia de…
GD: Blanchot e Mascolo são os dois homens atuais que, em relação à Filosofia, dão importância à amizade. Mas num sentido muito especial. Eles não dizem que é preciso ter um amigo para ser filósofo; eles consideram que a amizade é uma categoria ou uma condição do exercício do pensamento. É isso que importa. Não é o amigo em si, mas a amizade como categoria, como condição para pensar. Daí, a relação Mascolo-Antelme, por exemplo. Daí, as declarações de Blanchot sobre a amizade. Eu tenho a idéia de que… Eu adoro desconfiar do amigo. Para mim, amizade é desconfiança. Há um verso de que gosto muito, e me impressiona muito, de um poeta alemão, sobre a hora entre cão e lobo, a hora na qual ele se define. É a hora na qual devemos desconfiar do amigo. Há uma hora em que se deve desconfiar até de um amigo. Eu desconfio do Jean-Pierre como da peste! Desconfio dos meus amigos. Mas é com tanta alegria que não podem me fazer mal algum. O que quer que façam, vou achar muita graça. Há muito entendimento e comunhão entre meus amigos. Com a noiva é a mesma coisa. Com tudo. Mão não se deve achar que sejam acontecimentos ou casos particulares. Quando se fala de “amizade”, “noiva perdida”, trata-se de saber em que condições o pensamento pode ser exercido? Por exemplo, Proust considera que a amizade é zero! Não só por conta própria, mas porque não há nada a se pensar na amizade. Mas pode se pensar sobre o amor ciumento. Esta é a condição do pensamento.
CP: Quero fazer-lhe a última pergunta sobre seus amigos. Com Châtelet, foi outra coisa. Mas você foi amigo de Foucault no final da guerra e estudaram juntos. Mas vocês tinham uma amizade que não era a de uma dupla, como a que tem com Jean-Pierre ou Félix ou com Elie, Jerôme, já que estamos falando dos outros. Vocês tinham uma amizade muito profunda, mas parecia distante e era mais formal para quem via de fora. Que amizade era essa, então?
GD: Ele era mais misterioso para mim e talvez porque a gente tivesse se conhecido tarde. Foucault foi um grande arrependimento para mim. Como tinha muito respeito por ele, não tentei… Vou dizer como eu o percebia. É um dos raros homens que, quando entrava em uma sala, mudava toda a atmosfera. Foucault não era apenas uma pessoa, aliás, nenhum de nós é apenas uma pessoa. Era como se outro ar entrasse. Era uma corrente de ar especial. E as coisas mudavam. Era um fator atmosférico. Foucault tinha como que uma emanação. Como uma emissão de raios. Alguma coisa assim. Fora isso, ele responde ao que eu dizia há pouco, sobre não haver necessidade de falar com o amigo. Só falávamos de coisas que nos faziam rir. Ser amigo é ver a pessoa e pensar: “O que vai nos fazer rir hoje?”. “O que nos faz rir no meio de todas essas catástrofes?” É isso. Mas para mim, Foucault é a lembrança de alguém que ilustra o que eu dizia sobre o charme de alguém, um gesto… Os gestos de Foucault eram impressionantes. Tantos gestos… Pareciam gestos metálicos, gestos de madeira seca. Eram gestos estranhos, fascinantes. Muito bonitos. As pessoas só têm charme em sua loucura, eis o que é difícil de ser entendido. O verdadeiro charme das pessoas é aquele em que elas perdem as estribeiras, é quando elas não sabem muito bem em que ponto estão. Não que elas desmoronem, pois são pessoas que não desmoronam. Mas, se não captar aquela pequena raiz, o pequeno grão de loucura da pessoa, não se pode amá-la. Não pode amá-la. É aquele lado em que a pessoa está completamente… Aliás, todos nós somos um pouco dementes. Se não se captar o ponto de demência de alguém… Ele pode assustar, mas, quanto a mim, fico feliz de constatar que o ponto de demência de alguém é a fonte de seu charme.
Ao G, pois!
G de Gauche [Esquerda]
CP: G! Neste caso, não é o ponto de demência que constitui seu charme e sim algo muito sério: o fato de pertencer à esquerda. Isso o faz rir, o que me deixa muito feliz. Como já vimos, você é de uma família burguesa de direita e, a partir do final da guerra, você se tornou o que se costuma chamar de um homem de esquerda. Com a Liberação, muitos amigos seus e estudantes de Filosofia aderiram ou eram muito ligados ao Partido Comunista.
GD: Sim, todos passaram pelo PC, menos eu. Pelo menos é o que eu acho, não tenho certeza.
CP: Mas como você escapou disso?
GD: Não é nada complicado. Todos os meus amigos passaram pelo PC. O que me impediu? Acho que é porque eu era muito trabalhador. E porque eu não gostava das reuniões. Nunca suportei as reuniões em que falam de forma interminável. Ser membro do PC era participar destas reuniões o tempo todo. E era a época do “Apelo de Estocolmo”. Pessoas cheias de talento passavam o dia colhendo assinaturas para o “Apelo de Estocolmo”. Andavam pelas ruas com este “Apelo de Estocolmo”, que já nem sei mais o que era. Mas isso ocupou toda uma geração de comunistas. Eu tinha problemas porque conhecia muitos historiadores comunistas cheios de talento e achava que se eles fizessem a tese deles seria muito mais importante para o partido, que, pelo menos, teria um trabalho a mostrar em vez de usá-los para o “Apelo de Estocolmo”, um abaixo-assinado sobre a paz ou sei lá o quê. Não tinha vontade de participar disso. E, como eu falava pouco e era tímido, pedir uma assinatura para o “Apelo de Estocolmo” teria me colocado num estado de pânico tal que ninguém assinaria nada. Ainda por cima, tinha-se de vender o jornal L’Humanité. Tudo por motivos muito baixos. Não tive vontade nenhuma de entrar para o partido.
CP: Sentia-se próximo do engajamento deles?
GD: Do partido? Não, isso não me dizia respeito. E foi o que me salvou. Todas aquelas discussões sobre Stalin… O que hoje todo mundo já sabe sobre os horrores de Stalin, sempre existiu. Que as revoluções acabem mal… Acho muita graça! Afinal, de quem estão zombando? Quando os Novos Filósofos descobriram que as revoluções acabam mal… Tem de ser maluco! Descobriram isso com Stalin! Foi uma porta aberta para que todo mundo descobrisse. Por exemplo, sobre a revolução argelina disseram que ela fracassou porque atiraram em estudantes. Mas quem pode acreditar que uma revolução possa ser bem-sucedida? Dizem que os ingleses nunca fizeram uma revolução. Estão enganados! Atualmente, vive-se uma mistificação incrível! Os ingleses fizeram uma revolução, mataram o rei e o que eles tiveram? Cromwell! E o que é o romantismo inglês? Uma longa meditação sobre o fracasso da revolução. Eles não esperaram Glucksman para pensar sobre o fracasso da revolução stalinista. Eles o tinham ali! E os americanos, dos quais nunca se fala? Eles fracassaram em sua revolução muito mais do que os bolcheviques! Os americanos, antes da Guerra da Independência… Eu repito: antes da Guerra da Independência, eles se apresentavam como melhores do que uma nova nação! Eles ultrapassaram as nações, exatamente como Marx disse do proletário. Acabaram-se as nações! Eles trouxeram a nova população, fizeram a verdadeira revolução, e, exatamente como os marxistas contaram com a proletarização universal, os americanos contavam com a imigração universal. São as duas fases das lutas de classe. É absolutamente revolucionário! É a América de Jefferson, de Thoreau, de Melville! Jefferson, Thoreau, Melville representam uma América completamente revolucionária, que anuncia o novo homem, exatamente como a revolução bolchevique anunciava o novo homem! E ela fracassou! Todas as revoluções fracassaram, isso é sabido! Hoje, fingem redescobrir isso. É loucura! E nisso todo mundo se atola; é o revisionismo atual. Furet descobre que a revolução francesa não foi tão boa assim. Ela também fracassou e todos sabem disso! A revolução francesa nos deu Napoleão. São descobertas que não comovem por sua novidade. A revolução inglesa deu em Cromwell. A revolução americana deu em quê? Muito pior, não?
CP: O liberalismo.
GD: Deu em Reagan! Não me parece muito melhor do que os outros! Atualmente, estamos em um estado de grande confusão. Mesmo que as revoluções tenham fracassado, isso não impediu que as pessoas deviessem revolucionárias. Duas coisas absolutamente diferentes são misturadas. Há situações nas quais a única saída para o homem é devir revolucionário. É o que falávamos sobre a confusão do devir e da História. É essa a confusão dos historiadores. Eles nos falam do futuro da revolução ou das revoluções. Mas esta não é a questão. Eles podem ir lá para trás para mostrar que se o futuro é ruim é porque o ruim já existia desde o início. Mas o problema concreto é: como e por que as pessoas devêm revolucionárias? Felizmente, os historiadores não puderam impedir isso. Os sul-africanos estão envolvidos em um devir revolucionário. Os palestinos também. Se me disserem depois: “Você vai ver quando eles triunfarem, quando eles vencerem…!” “Vai acabar mal”. Mas já não são mais os mesmos tipos de problemas, vai se criar uma nova situação e novos devires revolucionários serão desencadeados. Nas situações de tirania, de opressão, cabe aos homens devirem revolucionários, pois não há outra coisa a ser feita. Quando nos dizem: “Viu como deu errado?”, não estamos falando da mesma coisa. É como se falássemos idiomas completamente diferentes. O futuro da História e o devir das pessoas não são a mesma coisa.
CP: E o respeito aos Direitos Humanos que está tão em voga hoje em dia? É o contrário do devir revolucionário, não?
GD: A respeito dos Direitos Humanos, tenho vontade de dizer um monte de coisas feias. Isso tudo faz parte deste pensamento molenga daquele período pobre de que falamos. É puramente abstrato. O que quer dizer “Direitos Humanos”? É totalmente vazio. É exatamente o que estava tentando dizer há pouco sobre o desejo. O desejo não consiste em erguer um objeto e dizer: “Eu desejo isto”. Não se deseja a liberdade. Isso não tem valor algum. Existem determinadas situações como, por exemplo, a da Armênia. É um exemplo bem diferente. Qual é a situação por lá? Corrijam-me se estiver errado, mas não mudará muita coisa. Há este enclave em outra república soviética, este enclave armênio. Uma República Armênia. Esta é a situação. Primeira coisa. Há o massacre. Aqueles turcos ou sei lá o quê…
CP: Os Azeris.
GD: Pelo que se sabe atualmente, suponho que seja isso: o massacre dos armênios mais uma vez no enclave. Os armênios se refugiam em sua República. Corrija-me se estiver errado. E aí, ocorre um terremoto. Parece uma história do Marquês de Sade. Esses pobres homens passaram pelas piores provas, vindas dos próprios homens e, mal chegam a um local protegido, é a vez da natureza entrar em ação. E aí, vêm me falar de Direitos Humanos. É conversa para intelectuais odiosos, intelectuais sem idéia. Notem que essas Declarações dos Direitos Humanos não são feitas pelas pessoas diretamente envolvidas: as sociedades e comunidades armênias. Pois para elas não se trata de um problema de Direitos Humanos. Qual é o problema? Eis um caso de agenciamento. O desejo se faz sempre através de um agenciamento. O que se pode fazer para eliminar este enclave ou para que se possa viver neste enclave? É uma questão de território. Não tem nada a ver com Direitos Humanos, e sim com organização de território. Suponho que Gorbatchev tente safar-se desta situação. Como ele vai fazer para que este enclave armênio não seja entregue aos turcos que o cercam? Não é uma questão de Direitos Humanos, nem de justiça, e sim de jurisprudência. Todas as abominações que o homem sofreu são casos e não desmentidos de direitos abstratos. São casos abomináveis. Pode haver casos que se assemelhem, mas é uma questão de jurisprudência. O problema armênio é um problema típico de jurisprudência extraordinariamente complexo. O que fazer para salvar os armênios e para que eles próprios se salvem desta situação louca em que, ainda por cima, ocorre um terremoto? Terremoto este que também tem seus motivos: construções precárias, feitas de forma incorreta. Todos são casos de jurisprudência. Agir pela liberdade e tornar-se revolucionário é operar na área da jurisprudência! A justiça não existe! Direitos Humanos não existem! O que importa é a jurisprudência. Esta é a invenção do Direito. Aqueles que se contentam em lembrar e recitar os Direitos Humanos são uns débeis mentais! Trata-se de criar, não de se fazer aplicar os Direitos Humanos. Trata-se de inventar as jurisprudências em que, para cada caso, tal coisa não será mais possível. É muito diferente. Vou dar um exemplo de que gosto muito, pois é o único meio de fazer com que se entenda o que é a jurisprudência. As pessoas não entendem nada! Nem todas… Eu me lembro da época em que foi proibido fumar nos táxis. Antes, se fumava nos táxis. Até que foi proibido. Os primeiros motoristas de táxi que proibiram que se fumasse no carro causaram um escândalo, pois havia motoristas fumantes. Eles reclamaram. E um advogado… Eu sempre fui um apaixonado pela jurisprudência. Se não tivesse feito Filosofia, teria feito Direito. Mas não Direitos Humanos. Teria feito jurisprudência, porque é a vida! Não há Direitos Humanos, há direitos da vida. Muitas vezes, a vida se vê caso a caso. Mas eu estava falando dos táxis. Um sujeito não queria ser proibido de fumar em um táxi e processa os táxis. Eu me lembro bem, pois li os considerandos do julgamento. O táxi foi condenado. Hoje em dia, nem pensar! Diante do mesmo processo, o cara é que seria condenado. Mas, no início, o táxi foi condenado sob o seguinte considerando: quando alguém pega um táxi, ele se torna locatário. O usuário do táxi é comparado a um locatário que tem o direito de fumar em sua casa, direito de uso e abuso. É como se eu alugasse um apartamento e a proprietária me proibisse de fumar em minha casa. Se sou locatário, posso fumar em casa. O táxi foi assimilado a uma casa sobre rodas da qual o passageiro era o locatário. Dez anos depois, isso se universalizou. Quase não há táxi em que se possa fumar. O táxi não é mais assimilado a uma locação de apartamento, e sim a um serviço público. Em um serviço público, pode-se proibir de fumar. A Lei Veil. Tudo isso é jurisprudência. Não se trata de direito disso ou daquilo, mas de situações que evoluem. E lutar pela liberdade é realmente fazer jurisprudência. O exemplo da Armênia me parece típico. Os Direitos Humanos… Ao invocá-los, quer dizer que os turcos não têm o direito de massacrar os armênios. Sim, não podem. E aí? O que se faz com esta constatação? São um bando de retardados. Ou devem ser um bando de hipócritas. Este pensamento dos Direitos Humanos é filosoficamente nulo. A criação do Direito não são os Direitos Humanos. A única coisa que existe é a jurisprudência. Portanto, é lutar pela jurisprudência.
CP: Quero voltar a uma coisa…
GD: Ser de esquerda é isso. Eu acho que é criar o direito. Criar o direito.
CP: Voltamos à pergunta sobre a filosofia dos Direitos Humanos. Este respeito pelos Direitos Humanos é uma negação de Maio de 1968 e uma negação do Marxismo. Você não repudiou Marx, pois não foi comunista e ainda o tem como referência. E você foi uma das raras pessoas a evocar Maio de 68 sem dizer que foi uma mera bagunça. O mundo mudou. Gostaria que falasse mais sobre Maio de 68.
GD: Sim! Mas foi dura ao dizer que fui um dos raros, pois há muita gente. Basta olhar à nossa volta, entre nossos amigos, ninguém renegou 68.
CP: Sim, mas são nossos amigos.
GD: Mesmo assim, há muita gente. São muitos os que não rejeitaram Maio de 68. Mas a resposta é simples. Maio de 68 é a intrusão do devir. Quiseram atribuir este fato ao reino do imaginário. Não é nada imaginário, é uma baforada de realidade em seu estado mais puro. De repente, chega a realidade. E as pessoas não entenderam e perguntavam: “O que é isso?” Finalmente, gente real. As pessoas em sua realidade. Foi prodigioso! O que eram as pessoas em sua realidade? Era o devir. Podia haver alguns devires ruins. É claro que alguns historiadores não entenderam bem, pois acredito tanto na diferença entre História e devir. Foi um devir revolucionário, sem futuro de revolução. Alguns podem zombar disso. Ou zombam depois que passou. O que tomou as pessoas foram fenômenos de puro devir. Mesmo os devires-animal, mesmo os devires-criança, mesmo os devires-mulher dos homens, mesmo os devires-homem das mulheres… Tudo isso faz parte de uma área tão particular na qual estamos desde o início de nossas questões. O que é exatamente um devir? É a intrusão do devir em Maio de 1968.
CP: Você teve um devir-revolucionário naquele momento?
GD: O seu sorriso parece mostrar bem a sua ironia… Prefiro que me pergunte o que é ser de esquerda. É mais discreto do que devir-revolucionário.
CP: Então, vou perguntar de outra forma. Entre seu civismo de homem de esquerda e seu devir-revolucionário, como você faz? O que é ser de esquerda para você?
GD: Vou lhe dizer. Acho que não existe governo de esquerda. Não se espantem com isso. O governo francês, que deveria ser de esquerda, não é um governo de esquerda. Não é que não existam diferenças nos governos. O que pode existir é um governo favorável a algumas exigências da esquerda. Mas não existe governo de esquerda, pois a esquerda não tem nada a ver com governo. Se me pedissem para definir o que é ser de esquerda ou definir a esquerda, eu o faria de duas formas. Primeiro, é uma questão de percepção. A questão de percepção é a seguinte: o que é não ser de esquerda? Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em como fazer para que esta situação perdure. Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar e que é muita loucura. Como fazer para que isso dure? As pessoas pensam: “Os chineses estão longe, mas como fazer para que a Europa dure ainda mais?” E ser de esquerda é o contrário. É perceber… Dizem que os japoneses percebem assim. Não vêem como nós. Percebem de outra forma. Primeiro, eles percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois, o continente… europeu, por exemplo… depois a França, até chegarmos à Rue de Bizerte e a mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro, percebe-se o horizonte.
CP: Mas os japoneses não são um povo de esquerda…
GD: Mas isso não importa. Estão à esquerda em seu endereço postal. Estão à esquerda. Primeiro, vê-se o horizonte e sabe-se que não pode durar, não é possível que milhares de pessoas morram de fome. Isso não pode mais durar. Não é possível esta injustiça absoluta. Não em nome da moral, mas em nome da própria percepção. Ser de esquerda é começar pela ponta. Começar pela ponta e considerar que estes problemas devem ser resolvidos. Não é simplesmente achar que a natalidade deve ser reduzida, pois é uma maneira de preservar os privilégios europeus. Deve-se encontrar os arranjos, os agenciamentos mundiais que farão com que o Terceiro Mundo… Ser de esquerda é saber que os problemas do Terceiro Mundo estão mais próximos de nós do que os de nosso bairro. É de fato uma questão de percepção. Não tem nada a ver com a boa alma. Para mim, ser de esquerda é isso. E, segundo, ser de esquerda é ser, ou melhor, é devir-minoria, pois é sempre uma questão de devir. Não parar de devir-minoritário. A esquerda nunca é maioria enquanto esquerda por uma razão muito simples: a maioria é algo que supõe – até quando se vota, não se trata apenas da maior quantidade que vota em favor de determinada coisa – a existência de um padrão. No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão. Ezra Pound e Joyce disseram coisas assim. O padrão é esse. Portanto, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar este padrão. Ou seja, a imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. Mas posso dizer que a maioria nunca é ninguém. É um padrão vazio. Só que muitas pessoas se reconhecem neste padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho, etc. As mulheres vão contar e intervir nesta maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a este padrão. Mas, ao lado disso, o que há? Há todos os devires que são minoria. As mulheres não adquiriram o ser mulher por natureza. Elas têm um devir-mulher. Se elas têm um devir mulher, os homens também o têm. Falamos do devir-animal. As crianças também têm um devir-criança. Não são crianças por natureza. Todos os devires são minoritários.
CP: Só os homens não têm devir homem.
GD: Não, pois é um padrão majoritário. É vazio. O homem macho, adulto não tem devir. Pode devir mulher e vira minoria. A esquerda é o conjunto dos processos de devir minoritário. Eu afirmo: a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo. Ser de esquerda é isso: saber que a minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir. É por isso que todos os pensadores tiveram dúvidas em relação à democracia, dúvidas sobre o que chamamos de eleições. Mas são coisas bem conhecidas.
H de História da Filosofia
CP: H de História da Filosofia. Costumam dizer que, em sua obra, há uma 1ª etapa dedicada à História da Filosofia. A partir de 1952, escreveu um estudo sobre David Hume. Depois, seguiram-se livros sobre Nietzsche, Kant, Bergson e Spinoza. Quem não o conhecia bem, ficou muito impressionado com Lógica do sentido, Diferença e repetição, O anti-Édipo, Mil platôs. Como se houvesse um Mr. Hyde adormecido no Dr. Jekyll. Quando todos explicavam Marx, você mergulhou em Nietzsche, e quando todos liam Reich, você se voltou para Spinoza, com a famosa pergunta: “O que pode um corpo?”. Hoje, em 1988, você volta a Leibniz. Do que gostava ou ainda gosta na História da Filosofia?
GD: É complicado. Porque isso envolve a própria Filosofia. Suponho que muita gente ache que a Filosofia é uma coisa muito abstrata e só para os “entendidos”. Tenho tão viva em mim a idéia de que a Filosofia não tem nada a ver com “entendidos”, de que não é uma especialidade, ou o é, mas só na medida em que a pintura ou a música também o são, que procuro ver esta questão de outra forma. Quando acham que a Filosofia é abstrata, a história da Filosofia passa a ser abstrata em dobro, já que ela nem consiste mais em falar de idéias abstratas, mas em formar idéias abstratas a partir de idéias abstratas. Para mim, a história da Filosofia é uma coisa muito diferente. E, para isso, volto a falar da pintura. Nas cartas de Van Gogh, encontram-se discussões sobre retrato ou paisagem. “Quero fazer retratos. Será preciso voltar ao retrato?” Eles davam muita importância em suas conversas e cartas. Retrato e paisagem não são a mesma coisa, não são o mesmo problema. Para mim, a história da Filosofia é, como na Pintura, uma espécie de arte do retrato. Faz-se o retrato de um filósofo. Mas é o retrato filosófico de um filósofo, uma espécie de retrato mediúnico, ou seja, um retrato mental, espiritual. É um retrato espiritual. Tanto que é uma atividade que faz totalmente parte da própria Filosofia, assim como o retrato faz parte da Pintura. O simples fato de eu invocar pintores que me levam a… Se eu ainda volto a pintores como Van Gogh ou Gauguin, é porque há uma coisa que me toca profundamente neles: é esta espécie de enorme respeito, de medo e pânico… Não só respeito, mas medo e pânico diante da cor, diante de ter de abordar a cor. É particularmente agradável que estes pintores que citei, para citar apenas estes, sejam dois dos maiores coloristas que já existiram. Ao revermos a história de suas obras, para eles, a abordagem da cor se fazia com tremores. Eles tinham medo! A cada começo de uma obra deles, usavam cores mortas. Cores… Sim, cores de terra, sem nenhum brilho. Por quê? Porque tinham o gosto e não ousavam abordar a cor. O que há de mais comovente do que isso? Na verdade, eles não se consideravam ainda dignos, não se consideravam capazes de abordar a cor, ou seja, de fazer pintura de fato. Foram necessários anos e anos para que eles ousassem abordar a cor. Mas quando sentem que são capazes de abordar a cor, obtêm o resultado que todos conhecem. Quando vemos a que eles chegaram, temos de pensar neste imenso respeito, nesta imensa lentidão para abordar isto. A cor para um pintor é algo que pode levar à insensatez, à loucura. Portanto, são necessários muitos anos, antes de ousar tocar em algo assim. Não é que eu seja particularmente modesto, mas eu acho que seria muito chocante se existissem filósofos que dissessem assim: “Vou ingressar na Filosofia, e vou fazer a minha filosofia. Tenho a minha filosofia”. São falas de um retardado! “Fazer a sua filosofia!” Porque a Filosofia é como a cor. Antes de entrar na Filosofia, é preciso tanta, mas tanta precaução! Antes de conquistar a “cor” filosófica, que é o conceito. Antes de saber e de conseguir criar conceitos é preciso tanto trabalho! Eu acho que a história da Filosofia é esta lenta modéstia, é preciso fazer retratos por muito tempo. Tem de fazer retratos. É como se um romancista dissesse: “Eu escrevo romances, mas, para não comprometer a minha inspiração, eu nunca leio romances. Dostoiévski? Não conheço”. Já ouvi um jovem romancista dizer essas coisas espantosas. Seria como dizer que não é preciso trabalhar. Como em tudo que se faz é preciso trabalhar muito, antes de abordar alguma coisa. Acho que a Filosofia tem um papel que não é apenas preparatório, mas que vale por si mesmo. É a arte do retrato na medida em que nos permite abordar alguma coisa. E aí é que vem o mistério. É preciso explicar melhor. Você teria de me obrigar a explicar através de alguma pergunta. Ou eu posso continuar assim… O que acontece quando se faz história da Filosofia? Tem outra coisa a me perguntar a este respeito?
CP: Sabemos qual é a utilidade da história da Filosofia para você. Mas, para as pessoas de modo geral? Já que você não quer falar da especialização da Filosofia e que a Filosofia se dirige também aos não-filósofos.
GD: Isso me parece muito simples. Só se pode entender o que é a filosofia, a que ponto ela não é uma coisa abstrata, da mesma forma que um quadro ou uma obra musical não são absolutamente abstratos, só através da história da Filosofia, com a condição de concebê-la corretamente. Afinal, o que é… Há uma coisa que me parece certa: um filósofo não é uma pessoa que contempla e também não é alguém que reflete. Um filósofo é alguém que cria. Só que ele cria um tipo de coisa muito especial, ele cria conceitos. Os conceitos não nascem prontos, não andam pelo céu, não são estrelas, não são contemplados. É preciso criá-los, fabricá-los. Haveria mil perguntas só neste ponto. Estamos perdidos, pois são tantas questões. Para que serve? Por que criar conceitos? O que é um conceito? Mas vamos deixar isso para lá por enquanto. Por exemplo, se eu criar um livro sobre Platão. As pessoas sabem que Platão criou um conceito que não existia antes dele e que é geralmente traduzido como a “Ideia”. Ideia com um I maiúsculo. E o que Platão chama de Ideia é bem diferente do que outro filósofo chama de Ideia. É um conceito platônico, tanto que se alguém emprega a palavra Ideia em um sentido parecido, responderão: “É um filósofo platônico”. Mas concretamente o que é? Não se deve perguntar de outra forma, ou é melhor não fazer Filosofia. Tem de se perguntar como se se tratasse de um cachorro! O que é uma Ideia? Eu posso definir um cachorro. E uma Ideia para Platão? Neste momento, já estou fazendo história da Filosofia. Eu tentarei explicar às pessoas, é essa a tarefa de um professor… Acho que o que ele chama de “Ideia” é uma coisa que não seria outra coisa. Ou seja, que seria apenas o que ela é. Isso também pode parecer abstrato. Há pouco, dizia que não se deve ser abstrato. E algo que só é o que ele é, é abstrato. Então, vamos pegar um caso que não seja de Platão. Uma mãe. Uma mamãe. É uma mãe, mas ela não é apenas uma mãe. Por exemplo, ela é esposa e ela também é filha de uma mãe. Suponhamos uma mãe que seja apenas mãe. Pouco importa se isso existe ou não. Por exemplo, será que a Virgem Maria, que Platão não conhecia, era uma mãe que só era mãe? Mas pouco importa se isso existe ou não? Uma mãe que não seria outra coisa além de mãe, que não seria filha de outra mãe, é isso que devemos chamar de “ideia de mãe”. Uma coisa que é só o que ela é. É o que Platão quis dizer quando disse: “Só a Justiça é justa”. Porque só a Justiça não é outra coisa além de justa. A gente vê que, no fundo, é muito simples. Claro que Platão não parou só nisso, mas seu ponto de partida foi: “Suponham-se tais entidades que sejam apenas o que elas são, iremos chamá-las de Ideias”. Portanto, ele criou um verdadeiro conceito, este conceito não existia antes. A ideia da coisa pura. É a pureza que define a ideia. Mas por que isso parece abstrato? Por quê? Se nos entregamos à leitura de Platão é por aí que tudo se torna tão concreto! Ele não diz isso por acaso, não criou este conceito de Ideia por acaso. Ele se encontra em uma determinada situação em que, aconteça o que acontecer, em uma situação muito concreta, o que quer que aconteça ou o que quer que seja dado, há pretendentes. Há pessoas que dizem: “Para tal coisa, eu sou o melhor”. Por exemplo, ele dá uma definição do político. E ele diz: “A primeira definição do político, como ponto de partida, seria o pastor dos homens”. É aquele que cuida dos homens. Mas aí, chega um monte de gente dizendo: “Então, eu sou o político. Eu sou o pastor dos homens”. Ou seja, o comerciante pode ter dito isso, o pastor que alimenta, o médico que trata, todos eles podem dizer: “Eu sou o verdadeiro pastor”. Em outras palavras, há rivais. Agora, está começando a ficar mais concreto. Eu digo: um filósofo cria conceitos. Por exemplo, a Ideia, a coisa enquanto pura. O leitor não entende bem do que se trata, nem a necessidade de criar um conceito assim. Mas se ele continua ou reflete sobre a leitura, ele percebe que é pelo seguinte motivo: há uma série de rivais que pretendem esta coisa, são pretendentes e que o problema platoniano não tem nada a ver com o que é a Ideia, — do contrário, seria abstrato — mas é como selecionar os pretendentes, como descobrir em meio aos pretendentes qual deles é o bom. E é a Ideia, a coisa em seu estado puro, que permitirá esta seleção e selecionará aquele que mais se aproxima. Isso nos permite avançar um pouco, pois eu diria que todo conceito — por exemplo, o de Ideia — remete a um problema. Neste caso, o problema é como selecionar os pretendentes. Quando se faz Filosofia de forma abstrata, nem se percebe o problema. Mas quando se atinge o problema, por que ele não é dito pelo filósofo? Ele está bem presente em sua obra, está escancarado, de certa forma. Não se pode fazer tudo de uma vez. O filósofo já expôs os conceitos que está criando. Ele não pode, além disso, expor os problemas que os seus conceitos… ou, pelo menos, só se podem encontrar estes problemas através dos conceitos que criou. E se não encontrou o problema ao qual responde um conceito, tudo é abstrato. Se encontrou o problema, tudo vira concreto. É por isso que, em Platão, há constantemente estes pretendentes, estes rivais! Está ficando cada vez mais óbvio. Por que é que isso ocorre na cidade grega? Por que é que foi Platão quem inventou este problema? O problema é como selecionar os pretendentes e o conceito… a filosofia é isso: problema e conceito. O conceito é a Ideia, que deveria dar os meios para selecionar os pretendentes. Não importa como. Por que este problema, este conceito, se formou em um meio grego?
É que isso começa com os gregos, é um problema tipicamente grego, é problema da cidade, e da cidade democrática, mesmo se Platão não aceita isso. É um problema da cidade democrática. É em uma cidade democrática que, por exemplo, uma magistratura é objeto de pretensões. Há pretendentes, pretendo determinada função. Em uma formação imperial, como há, na época grega, em uma formação imperial, há funcionários nomeados pelo grande imperador. Não há essa rivalidade. A cidade ateniense é uma rivalidade dos pretendentes. Já com Ulisses, os pretendentes de Penélope. Há todo um meio que se pode chamar de “problema grego”. É uma civilização… onde o enfrentamento dos rivais aparece sempre, por isso eles inventam a ginástica, inventam os Jogos Olímpicos. Inventam, são processualistas, ninguém é tão processualista quanto um grego, mas o procedimento é a mesma coisa, os processos são os pretendentes. Entende? A filosofia… Haverá também pretendentes, a luta de Platão contra os sofistas. Segundo ele, os sofistas são pretendentes a algo a que não têm direito. O que vai definir o direito ou o não-direito de um pretendente? É um problema muito… é tão divertido quanto um romance. Conhecemos grandes romances onde há pretendentes que se enfrentam diante de um tribunal. É outra coisa. Mas, na filosofia, há os dois: a criação de um conceito e esta criação se faz em função de um problema. Se não se achou o problema, não se compreende a filosofia, e ela permanece abstrata. Dou um exemplo, as pessoas, em geral, não vêem a que problema isso responde. Não vêem os problemas, pois eles são um pouco ditos, um pouco escondidos, e fazer a história da filosofia é restaurar esses problemas e assim descobrir a novidade dos conceitos. A má história da filosofia enfileira os conceitos como se fossem óbvios, como se não fossem criados, e há uma ignorância total dos problemas aos quais… Dou um último exemplo rápido. Dou outro exemplo que não tem nada a ver, só para diversificar.
Muito tempo depois, há um filósofo chamado Leibniz, que faz e inventa um conceito bem extraordinário, a que chamará de “mónada”, e escolhe uma palavra técnica, complicada: “mónada”.
E, nos conceitos, há sempre algo um pouco louco… Essa mãe que só seria mãe, em outro caso, a ideia pura. Há algo um pouco louco. Pois bem, a mónada leibniziana designa um sujeito, alguém, você ou eu, enquanto alguém que exprime a totalidade do mundo. E ao exprimir a totalidade do mundo, ela só exprime, claramente, uma pequena região do mundo: seu território. Já vimos, já falamos do território. Seu território, ou o que Leibniz chama seu “departamento”. Portanto, uma unidade subjetiva que exprime o mundo inteiro, mas só exprime claramente uma região, um departamento do mundo, é o que ele chama uma mónada. Aí também é um conceito, ele o cria, esse conceito não existia antes dele, pergunta-se: mas por quê? Porque ele o cria, é muito bonito, mas por que fazê-lo, por que dizer isso e não outra coisa? É preciso encontrar o problema, não que ele o esconda, mas se não o procuramos um pouco, não o encontraremos. É esse o charme de ler filosofia. Tem tanto charme e é tão divertido quanto ler um romance, ou olhar quadros. É prodigioso. O que percebemos quando lemos? Ele não criou o conceito de mónada por prazer, mas por outras razões, ele coloca um problema, a saber, que tudo no mundo só existe dobrado. Por isso escrevi um livro sobre ele que se chama A dobra. Ele vive o mundo como um conjunto de coisas dobradas umas nas outras. Podemos recuar: por que ele vive o mundo dessa maneira? O que se passa? Como para Platão, talvez a resposta seja: na época, será que as coisas se dobravam mais do que agora? Não temos tempo! O que conta é essa ideia de um mundo dobrado, e tudo é dobra de dobra, nunca se chega a algo completamente desdobrado. A matéria é feita de redobras sobre si mesma, e as coisas do espírito, as percepções, os sentimentos são dobrados na alma. É precisamente porque as percepções, os sentimentos, as ideias estão dobrados em uma alma, que ele constrói esse conceito de uma alma que exprime o mundo inteiro, ou seja, no qual o mundo inteiro se encontra dobrado. Podemos quase dizer: o que é um mau filósofo e o que é um grande filósofo? Um mau filósofo é alguém que não inventa conceitos, e se serve de ideias prontas, emite opiniões. E aí ele não faz filosofia, ele diz: “É isso o que penso”. Conhecemos muitos, ainda hoje, mas em todos os tempos houve opiniões. Ele não inventa conceito, não coloca, no verdadeiro sentido da palavra problema, nenhum problema. Fazer história da filosofia é um longo aprendizado, em que se aprende, em que se é aprendiz, nesse duplo campo: a constituição dos problemas, a criação dos conceitos. O que é que mata, o que faz com que o pensamento possa ser idiota, débil, etc.? As pessoas falam, mas nunca se sabe de que problema elas falam. Não só não criam conceitos, elas emitem opiniões, mas além disso, nunca se sabe de que problema elas falam. Ou seja, conhecemos, a rigor, as questões, mas se digo: “Deus existe?”, não é um problema. Não disse o problema, onde ele está? Por que coloco tal questão? Que problema está por detrás disso? As pessoas querem colocar a questão: “acredito ou não em Deus?” Mas ninguém liga se acreditam ou não em Deus, o que conta é: por que dizem isso, a que problema isso responde? E que conceito de Deus elas vão fabricar. Se você não tiver nem conceito nem problema, você fica na besteira, não faz filosofia. Isso mostra o quanto a filosofia é divertida, e a história da filosofia, já que é isso fazer história da filosofia! Não é muito diferente do que tem de fazer quando está em frente a um quadro ou uma obra musical.
CP: Voltamos a Gauguin e Van Gogh, já que evocou seus medos antes de abordar a cor. O que aconteceu quando você passou da história da filosofia para sua própria filosofia?
GD: Aconteceu o seguinte: provavelmente a história da filosofia tinha me ensinado coisas, ou seja, me sentia mais capaz de abordar o que é a cor em filosofia. Mas por que isso se coloca? Por que a filosofia não pára? Por que não pára, por que há ainda filosofia hoje? Porque sempre há lugar para criar conceitos. É a publicidade que se apodera dessa noção de conceito. Ela cria conceitos, com os computadores. Há toda uma linguagem que foi roubada da filosofia.
CP: A comunicação.
GD: A comunicação. Deve-se ser criativo, criar conceitos. Mas o que chamam “conceito”, “criar” é tão cômico, que não há como insistir. Continua a ser tarefa da filosofia. Nunca me senti tocado por pessoas que dizem: “a morte da filosofia”, “ultrapassar a filosofia”, são filósofos que dizem coisas tão complicadas. Isso nunca me disse respeito porque me pergunto: “O que isso quer dizer?” Enquanto houver necessidade de criar conceitos, haverá filosofia, é esta sua definição. Os conceitos não estão prontos, é preciso criá-los. E os criamos em função de problemas. Os problemas evoluem. Pode-se, é claro, ser platônico, ser leibniziano, ainda hoje, em 1989, pode-se tudo isso, pode-se ser kantiano. O que significa isto? Quer dizer que se estima que alguns problemas, não todos, colocados por Platão continuam válidos, com certas transformações, então se é platônico, e se utilizam conceitos platônicos. Ainda que hoje se coloquem problemas de outra natureza, não há caso em que não haja um ou vários grandes filósofos que tenham algo a nos dizer sobre os problemas transformados de hoje. Mas fazer filosofia é criar novos conceitos em função dos problemas que se colocam hoje. O último aspecto dessa longa questão seria, é evidente: bem, mas o que é a evolução dos problemas? O que a assegura? Posso sempre dizer: forças históricas, sociais. Sim, claro, mas há algo mais profundo. É misterioso. E não teríamos tempo, mas creio em uma espécie de devir do pensamento, de evolução do pensamento que faz com que não apenas não coloquemos os mesmos problemas, mas com que não os coloquemos do mesmo modo. Um problema pode ser colocado de vários modos sucessivos, e há um apelo urgente, como uma grande corrente de ar, que faz apelo à necessidade de sempre criar, recriar novos conceitos. Há uma história do pensamento que não se reduz à influência sociológica ou… Há um devir do pensamento, que é algo misterioso, que seria preciso definir, que faz com que, talvez, não se pense hoje da mesma maneira que há cem anos. Processos de pensamento, elipses de pensamento, o pensamento tem sua história. Há uma história do pensamento puro. Fazer filosofia, para mim, é exatamente isso. A filosofia só teve, sempre, uma função. Ela não precisa ser ultrapassada, pois tem sua função. Queria dizer alguma coisa?
CP: Como um problema evolui através dos tempos?
GD: Não sei. Deve variar.
CP: Já que o pensamento evolui…
GD: Deve variar conforme cada caso. No século 17, na maioria dos grandes filósofos… qual é a preocupação negativa deles? É impedir o erro. Trata-se de conjurar os perigos do erro. Em outros termos, o negativo do pensamento é que o espírito se engana, evitar que ele se engane. Como evitar o erro? Depois, há um deslocamento bastante lento, e no século 18 começa a surgir um problema diferente. Poderia parecer o mesmo, mas não é: é denunciar não mais o erro, mas denunciar as ilusões. A idéia de que a mente cai no erro, e está rodeada de ilusões, e mais: que ela própria produz ilusões. Não apenas cai em erros, mas produz ilusões, é todo o movimento do século 18, dos filósofos do século 18, a denúncia, a superstição, etc. Poderia parecer com a situação do século 17, mas, na verdade, o problema que começa a surgir é inteiramente novo. Pode-se dizer, também aí há razões sociais, etc., mas há também uma história secreta do pensamento que seria apaixonante fazer, a questão já não é como evitar cair no erro, mas como chegar a dissipar as ilusões pelas quais o espírito está rodeado. E, no século 19, digo coisas simples, rudimentares de propósito. No século 19, o que acontece? É como se algo se deslocasse, e até mesmo se rompesse completamente, mas é, cada vez mais, como evitar, o quê? A ilusão, não. É que os homens, como criaturas espirituais, não param de dizer besteiras. Não é a mesma coisa que uma ilusão. Não é cair em uma ilusão. É como conjurar a besteira. Isso aparece claramente em pessoas no limiar da filosofia. Flaubert estava no limiar da filosofia, o problema da besteira, Baudelaire, o problema da besteira, tudo isso. Já não é o mesmo que a ilusão. Pode-se dizer, está ligado a evoluções sociais, por exemplo, a evolução burguesa no século 19, que faz do problema da besteira um problema urgente. Mas há algo mais profundo nessas evoluções, nessa história dos problemas que o pensamento enfrenta, e quando se coloca um problema, novos conceitos aparecem. De modo que, se se compreende a filosofia desse modo, criação de conceitos, constituições de problemas, os problemas estando mais ou menos escondidos, é preciso redescobri-los. Percebe-se que a filosofia nada tem a ver com o verdadeiro e o falso. A filosofia não é procurar a verdade. Procurar a verdade não quer dizer nada. Trata-se de criar conceitos, o que isso quer dizer? E constituir um problema? Não se trata de verdade ou falsidade, trata-se de sentido! Um problema tem de ter um sentido. Há problemas que não têm sentido, outros que o têm. Fazer filosofia é constituir problemas que têm um sentido e criar os conceitos que nos fazem avançar na compreensão e na solução do problema.
CP: Voltemos a duas questões que lhe concernem mais. Quando você refez a história da filosofia com Leibniz, no ano passado, foi o mesmo que você fez há vinte anos, antes de produzir sua própria filosofia? Foi da mesma maneira?
GD: Não, de modo algum. Pois antes eu me servia, realmente, da filosofia, e da história da filosofia, como um modo de… como uma espécie de aprendizado indispensável, onde procurava quais eram os conceitos dos outros, de grandes filósofos, e a que problemas eles respondiam. Enquanto que agora, no livro que escrevi sobre Leibniz, não há vaidade no que digo, misturei problemas do século 20, que podem ser os meus, com problemas de Leibniz. Dito que estou convencido da atualidade dos filósofos. Fazer como um grande filósofo, o que isso quer dizer? Fazer como ele não é, necessariamente, ser seu discípulo. Fazer como ele é prolongar sua tarefa, é criar conceitos que têm relação com os que ele criou e colocar problemas em relação e em evolução com os que ele criou. Creio que, ao fazer Leibniz, eu estava mais nessa via, enquanto que em meus primeiros livros de história da filosofia, estava no estágio pré-cor.
CP: Você declarou, sobre Spinoza, e pode-se aplicar a Nietzsche, que eles o ligavam à parte escondida e maldita da história da filosofia. O que quis dizer com isso?
GD: Teremos oportunidade de voltar a isso. Para mim, essa parte escondida consiste em pensadores que recusaram qualquer transcendência. Seria preciso definir, voltaremos a falar talvez da transcendência, são autores que recusam os universais, ou seja, a idéia de conceito que têm valor universal, e toda transcendência, ou seja, toda instância que ultrapassa a terra e os homens. São autores da imanência.
CP: Seus livros sobre Nietzsche ou Spinoza fizeram época, você é conhecido por eles. No entanto, não se pode dizer que você é nietzschiano ou spinozista, como se pode dizer de um platônico ou de um nietzschiano. Você atravessou tudo isso, isso lhe servia de aprendizado e você já era deleuziano. Não se pode dizer que você é spinozista!
GD: Você me faz um grande elogio. Se for verdade, fico muito feliz.
CP: Você se sentia spinozista?
GD: Sempre desejei, bem ou mal, posso ter fracassado, mas acho que tentei colocar problemas por minha conta e criar conceitos por minha conta. No limite, sonharia com uma quantificação da filosofia. Cada filósofo seria afetado por um número mágico, segundo o número de conceitos que realmente criou, remetendo a problemas, etc. Haveria números mágicos, Descartes, Hegel, Leibniz. Seria interessante. Não ouso me colocar aí, mas eu teria, talvez, um pequeno número mágico, ou seja, criado alguns conceitos em função de problemas. Simplesmente, digo para mim: minha honra é que, seja qual for o gênero de conceito que tentei criar, posso dizer a que problemas ele respondeu. Senão seria conversa fiada. Acho que acabamos esse ponto.
CP: Para terminar, a última questão. É um pouco provocativo. Em 68, ou mesmo antes, quando todo mundo explicava Marx, lia Reich, não havia provocação de sua parte, voltar-se para Nietzsche, suspeito de fascismo, naqueles anos, e falar de Spinoza e do corpo, quando só se falava de Reich? Sua história da filosofia não funcionava como uma pequena provocação? Não havia provocação?
GD: Não. Isso está ligado ao que acabamos de dizer. É quase a mesma questão, porque o que eu procurava, mesmo o que procurava com Félix, era uma espécie de dimensão realmente imanente do inconsciente. Por exemplo, toda a psicanálise está cheia de elementos transcendentais: a lei, o pai, a mãe, tudo isso. Enquanto que um campo de imanência, que permitisse definir o inconsciente, isso é o campo… Talvez Spinoza pudesse ir mais longe do que ninguém, talvez Nietzsche pudesse ir mais longe do que ninguém. Parece-me que talvez não fosse tanto provocação, era que Spinoza e Nietzsche formam, em filosofia, talvez, a maior liberação do pensamento, quase no sentido de um explosivo. E talvez os conceitos, os conceitos mais insólitos, porque os problemas deles eram problemas um pouco malditos, que não se ousava colocar, na época de Spinoza, em todo caso, com certeza, mas mesmo na época de Nietzsche. Problemas que não se ousa colocar muito, problemas picantes.
I de Idéia
CP: I de Idéia. O que é ter uma idéia? Demonstração com o cinema e Vincent Minnelli, o cavaleiro dos sonhos.
GD: Estamos na letra K.
CP: Não, em I. Estamos em I de idéia. Não é mais a idéia platônica que acabamos de evocar. Mais do que fazer um inventário de teorias, você sempre foi um apaixonado pelas idéias dos filósofos, pelas idéias dos pensadores no cinema, ou seja, pelos diretores e pelas idéias dos artistas na pintura. Você sempre deu preferência à idéia, em vez de explicações e comentários. A sua e a dos outros. Por que, para você, a idéia preside tudo?
GD: É verdade. A idéia no sentido em que a usamos, pois não se trata mais de Platão, atravessa todas as atividades criadoras. Criar é ter uma idéia. É muito difícil ter uma idéia. Há pessoas extremamente interessantes que passaram a vida inteira sem ter uma idéia. Pode-se ter uma idéia em qualquer área. Não sei onde não se deve ter idéias. Mas é raro ter uma idéia. Não acontece todos os dias. Um pintor tem tantas idéias quanto um filósofo, mas não se trata do mesmo tipo de idéias. Pensando nas diferentes atividades humanas, seria bom saber sob que forma se apresenta uma idéia em determinados casos? Em Filosofia, acabamos de ver isso. A idéia, em Filosofia, se apresenta na forma de conceitos. Há uma criação de conceitos, e não uma descoberta. Conceitos não se descobrem, são criados. Há tanta criação em uma filosofia quanto em um quadro ou uma obra musical. Os outros têm idéias… Fico impressionado com os diretores de cinema. Há muitos diretores que nunca tiveram uma idéia. As idéias são uma obsessão, elas vão e voltam, se afastam, tomam formas diversas e, através destas formas variadas, elas são reconhecíveis. Para dar um exemplo muito simples, penso em um diretor como Vincent Minnelli. A obra dele não cobre tudo, mas peguei este exemplo por ser mais fácil. Parece-me que ele é uma pessoa que se pergunta o que quer dizer: “As pessoas sonham”. Dizer que as pessoas sonham é uma banalidade. As pessoas sonham, sim, mas Minnelli faz uma pergunta muito estranha que lhe é muito particular: “O que quer dizer estar preso num sonho de alguém?” Passa pela comédia, tragédia, pelo abominável, etc. O que quer dizer estar preso no sonho de uma menina? Podem aparecer coisas terríveis por sermos prisioneiro do sonho de alguém. Pode ser um horror. Às vezes, Minnelli nos traz um sonho: “O que é estar preso no pesadelo da guerra?” E o resultado foi o admirável Os cavaleiros do Apocalipse. E ele não vê a guerra como guerra, do contrário, não seria Minnelli, e, sim, como um grande pesadelo. O que quer dizer “estar preso num pesadelo”? Estar preso no sonho de uma menina resulta nos famosos musicais em que Fred Astaire ou Gene Kelly, não sei ao certo, escapa das tigresas e panteras negras. Isso é estar no sonho de alguém. É uma coisa gigantesca. Eu diria que isso é uma idéia. No entanto, não é um conceito. Se Minnelli trabalhasse com conceitos, ele faria Filosofia e não cinema. Eu diria que é preciso distinguir três dimensões, três coisas tão poderosas que se misturam o tempo todo. E este é o meu trabalho futuro. É isso que eu gostaria de fazer e tentar entender melhor isso. Há os conceitos, que são a invenção da Filosofia, e há o que podemos chamar de “perceptos”. Os perceptos fazem parte do mundo da arte. O que são os perceptos? O artista é uma pessoa que cria perceptos. Por que usar esta palavra estranha em vez de percepção?
Porque perceptos não são percepções. O que é que busca um homem de Letras, um escritor ou um romancista? Acho que ele quer poder construir conjuntos de percepções e sensações que vão além daqueles que as sentem. O percepto é isso. É um conjunto de sensações e percepções que vai além daquele que a sente. Vou dar alguns exemplos. Há páginas de Tolstoi que descrevem o que um pintor mal saberia descrever. Ou páginas de Tchekov que, de outra maneira, descrevem o calor da estepe. Há um grande complexo de sensações, pois há sensações visuais, auditivas e quase gustativas. Alguma coisa entra na boca. Eles tentam dar a este complexo de sensações uma independência radical em relação àquele que as sentiu. Tolstoi também descreve atmosferas. As grandes páginas de Faulkner! Os grandes romancistas conseguem chegar a isso. Há um grande romancista americano que quase disse isso. Ele não é muito conhecido na França, e gosto muito dele. É Thomas Wolfe. Ele descreve o seguinte: “Alguém sai de manhã, sente o ar fresco, o cheiro de alguma coisa, de pão torrado, etc., um passarinho passa voando… Há um complexo de sensações. O que acontece quando morre aquele que sentiu tudo isso? Ou quando ele faz outra coisa? O que acontece?”
Isso me parece a questão da arte. A arte dá uma resposta para isso: dar uma duração ou uma eternidade a este complexo de sensações que não é mais visto como sentido por alguém ou que será sentido por um personagem de romance, ou seja, um personagem fictício. É isso que vai gerar a ficção. E o que faz um pintor? Ele faz apenas isso também, ele dá consistência a perceptos. Ele tira perceptos das percepções. Há uma frase de Cézanne que me toca muito. Um pintor não faz outra coisa. Há uma frase que muito me impressiona.
Pode-se dizer que os impressionistas distorcem a percepção. Um conceito filosófico ao pé da letra é de rachar a cabeça, porque é o hábito de pensar que é novo. As pessoas não estão acostumadas a pensar assim. É de rachar a cabeça! De certa forma, um percepto torce os nervos e podemos dizer que os impressionistas inventaram perceptos. Mas Cézanne disse uma frase que acho muito bonita: “É preciso tornar o impressionismo durável”. Quer dizer que o motivo ainda não adquiriu independência. Trata-se de torná-lo durável e, para isso, são necessários novos métodos. Ele não quis dizer que se deve conservar o quadro, e sim que o percepto adquire uma autonomia ainda maior. Para tal, precisará de uma nova técnica. E há um terceiro tipo de coisa e muito ligada às outras duas. É o que se deve chamar de afectos. Não há perceptos sem afectos. Tentei definir o percepto como um conjunto de percepções e sensações que se tornaram independentes de quem o sente. Para mim, os afectos são os devires. São devires que transbordam daquele que passa por eles, que excedem as forças daquele que passa por eles. O afecto é isso. Será que a música não seria a grande criadora de afectos? Será que ela não nos arrasta para potências acima de nossa compreensão? É possível.
Mas o que quero dizer é que as três estão ligadas. É uma questão de acentuar as coisas. Quando se pega um conceito filosófico, este conceito faz com que se veja as coisas. Os filósofos têm este lado de videntes, pelo menos aqueles de quem gosto. Spinoza faz ver. É um dos filósofos mais videntes que existe. Nietzsche também faz ver. E eles também são fantásticos “lançadores de afectos”. É por isso que me vem logo à mente a idéia de uma música destes filósofos. Assim como a música faz ver coisas estranhas. As vezes, ela nos faz ver cores, mas cores que não existem fora da música. E os perceptos também. Todos estão muito ligados. Eu sonho com uma espécie de circulação entre uns e outros, entre os conceitos filosóficos, os perceptos pictóricos, os afectos musicais. E não é de se espantar que existam repercussões. Por mais independentes que sejam estes trabalhos, eles se penetram constantemente.
CP: Essas idéias dos pintores, artistas e filósofos são o contrário de se ter uma idéia, são uma idéia da percepção, do afecto e da razão. Por que você… Na vida, a gente pode ver um filme ou ler um livro que não tem uma idéia nenhuma. Mas isso o chateia muito, não lhe interessa, acha chato. Para você, não interessa ver ou ler alguma coisa que pode ser divertida se não existe uma idéia. Se não tem idéia.
GD: No sentido em que acabo de definir a idéia, não sei como seria possível. Se me mostrar um quadro que não tem percepto nenhum, onde há apenas uma vaca representada com uma certa semelhança, mas sem percepto de vaca, onde a vaca não seja elevada ao grau de percepto, não há interesse. Se me faz ouvir uma música sem afecto, eu nem entenderia o que é. Se me mostrar um filme ou um livro de filosofia idiota, não vejo prazer algum nisso.
CP: Mas não é um livro de filosofia idiota, pode ser humorístico, que contenha humor.
GD: Um livro humorístico pode estar cheio de idéias. Tudo depende do que chama de humorístico. Nunca ninguém me fez rir tanto quanto Beckett ou Kafka. Sou muito sensível ao humor. Acho que é extremamente engraçado. Não gosto tanto dos comediantes na TV.
CP: Menos Benny Hill, que tem uma idéia cômica.
GD: Sim, se ele tiver uma idéia. Mesmo nesta área, os grandes burlescos americanos têm algumas idéias.
CP: Para fechar esta questão mais pessoal, já lhe aconteceu de sentar-se para escrever sem ter idéia do que vai fazer? Se não tem idéia, o que acontece?
GD: Se eu não tenho uma idéia, não me sento para escrever. O que pode acontecer é que a idéia não esteja precisa, que ela me escape, que eu tenha buracos de memória. Eu tive e tenho esta dolorosa experiência, sim. As coisas não fluem. Idéias não nascem prontas. É preciso fazê-las e há momentos terríveis em que se entra em desespero achando que não se é capaz.
CP: É a expressão ou a idéia que faltam? São as duas coisas?
GD: É impossível diferenciá-las. Será que tenho a idéia e não consigo expressá-la ou não tenho idéia alguma? É tão parecido. Se não consigo expressá-la, não tenho idéia. Ou me falta uma parte da idéia, pois ela não chega inteira. Ela vem de partes diferentes, de vários horizontes. Se falta-lhe um pedaço, ela é inutilizável.
J de Joie [Alegria]
CP: J de Joie [Alegria]. É um conceito do qual você gosta muito, pois é um conceito de Spinoza, que tornou a alegria um conceito de resistência e vida. “Evitemos as paixões tristes e vivamos com alegria para ter o máximo de nossa potência; fugir da resignação, da má-consciência, da culpa e de todos os afectos tristes que padres, juízes e psicanalistas exploram”. Entende-se perfeitamente do que você gosta nisso tudo. Gostaria que distinguisse a alegria da tristeza e definisse o que é a distinção de Spinoza. Você descobriu alguma coisa no dia em que leu isso?
GD: Sim, porque são os textos mais extraordinariamente carregados de afectos em Spinoza. Vou simplificar muito, mas quero dizer que a alegria é tudo o que consiste em preencher uma potência. Sente alegria quando preenche, quando efetua uma de suas potências. Voltemos aos nossos exemplos: eu conquisto, por menor que seja, um pedaço de cor. Entro um pouco na cor.
Pode imaginar a alegria que isso representa? Preencher uma potência é isso, efetuar uma potência. Mas o que é equívoco é a palavra “potência”. E o que é a tristeza? É quando estou separado de uma potência da qual eu me achava capaz, estando certo ou errado.
“Eu poderia ter feito aquilo, mas as circunstâncias… não era permitido, etc.” É aí que ocorre a tristeza. Qualquer tristeza resulta de um poder sobre mim.
CP: Você estava falando sobre a oposição alegria/tristeza.
GD: Eu dizia que efetuar algo de sua potência é sempre bom. É o que diz Spinoza. Mas isso traz problemas. É preciso especificar que não existem potências ruins. O que é ruim não é… O ruim é o menor grau de potência. E este grau é o poder. O que é a maldade? É impedir alguém de fazer o que ele pode, é impedir que este alguém efetue a sua potência. Portanto, não há potência ruim, há poderes maus. E talvez todo poder seja mau por natureza. Não, talvez seja muito fácil dizer isso. Mas mostra bem a idéia da … A confusão entre poder e potência é arrasadora, porque o poder sempre separa as pessoas que lhe estão submissas, separa-as do que elas podem fazer. Tanto que foi deste ponto que partiu Spinoza. Como você citou: “A tristeza está ligada aos padres, aos tiranos…”
CP: Aos juízes.
GD: São pessoas que separam seus sujeitos do que eles podem, que proíbem as efetuações de potência. Curiosamente, há pouco, você falou da reputação de anti-semitismo de Nietzsche. Neste exemplo, vê-se esta questão muito importante. Há textos de Nietzsche que poderiam parecer preocupantes se são lidos muito rapidamente, e não da forma como propomos que os filósofos sejam lidos. Em todos os textos em que fala do povo judeu, o que Nietzsche critica nele? O que fez com que, em seguida, dissessem que Nietzsche era um anti-semita. É interessante, pois o que ele repreende no povo judeu, em condições específicas, é o fato deste povo ter inventado um personagem que não existia antes: o padre. Eu não conheço nenhum texto de Nietzsche a respeito dos judeus na forma de um ataque. O ataque é contra o povo que inventou o padre. Segundo ele, nas outras formações sociais, existem feiticeiros, escribas, mas nenhum deles é a mesma coisa que o padre. Eles inventaram uma coisa impressionante e Nietzsche, que tem grande força filosófica, não deixou de admirar o que detesta, ele disse: “Mas é incrível ter inventado o padre. É uma coisa prodigiosa”. Em seguida, fez a ligação direta dos judeus com os cristãos. Só não é o mesmo tipo de padre. Os cristãos conceberam outro tipo de padre e continuaram no mesmo caminho: com o personagem do sacerdote. Pode-se ver o quanto a filosofia é concreta. Eu diria que Nietzsche é o primeiro filósofo a ter inventado, criado o conceito de padre. E, a partir daí, trouxe um problema fundamental que é: em que consiste o poder sacerdotal? Qual é a diferença entre o poder sacerdotal e o poder real? Estas são questões ainda muito atuais. Pouco antes de sua morte, Foucault tinha encontrado a mesma coisa, só que com seus próprios meios. Aí, poderíamos retomar tudo sobre o que é prolongar a filosofia. Foucault também sugere um poder pastoral, um novo conceito diferente mas que, ao mesmo tempo, se encaixa no de Nietzsche. Por aí, existe uma história do pensamento. E o que é este poder de padre e em que está ligado à tristeza? Segundo Nietzsche, o padre se define desta forma: ele inventou a idéia de que os homens estão num estado de dívida infinita. Eles têm uma dívida infinita. Antes, havia histórias de dívida, mas Nietzsche precedeu todos os etnólogos. Aliás, os etnólogos deveriam ler Nietzsche. Eles descobriram bem depois de Nietzsche que, nas sociedades primitivas, havia permutas de dívidas. Não funcionava tanto através da troca, como se pensava, mas por partes de dívidas: uma tribo tinha uma dívida para com outra tribo, etc. Eram blocos de dívidas finitas: eles recebiam e devolviam. A diferença com a troca é que havia a realidade do tempo. Era uma restituição diferida. É importante! A dívida precede a troca. São questões filosóficas: a permuta, a dívida, a dívida que precede a troca. É um grande conceito filosófico. Digo filosófico porque Nietzsche disse antes dos etnólogos. Mas enquanto as dívidas têm este regime finito, o homem pode se libertar. O padre judeu invoca, pois, em virtude de uma Aliança, a idéia de uma dívida infinita do povo judeu para com Deus, e os cristãos retomam esta idéia de outra forma, a idéia de dívida infinita ligada a do pecado original. O personagem do padre é muito curioso. E cabe à Filosofia fazer o conceito. Não digo que a Filosofia seja atéia, mas, no caso de Spinoza que já tinha esboçado uma análise do padre, do padre judeu no Tratado Teológico-Político, pode acontecer que conceitos filosóficos sejam verdadeiros personagens. É por isso que a Filosofia é tão concreta. Fazer o conceito do padre é como algum artista faria o quadro ou o retrato do padre. O conceito do padre trazido por Spinoza, por Nietzsche e, depois, por Foucault, forma uma linhagem apaixonante. Eu também gostaria de entrar nesta linha e ver que poder pastoral é esse. Dizem que ele não funciona mais, mas quem o substituiu? A psicanálise é um novo avatar do poder pastoral. Em que ele se define? Os padres não são a mesma coisa que os tiranos, mas eles têm em comum o fato de manterem-se no poder através das paixões tristes que eles inspiram aos homens. Do tipo: “Arrependam-se em nome da dívida infinita, você é objeto da dívida infinita”. Por esse caminho, eles têm poder! O poder é sempre um obstáculo diante da efetuação das potências. Eu diria que todo poder é triste. Mesmo se aqueles que o detêm se alegram em tê-lo. Mas é uma alegria triste. Sim, existem alegrias tristes. Mas a alegria é uma efetuação das potências. Eu repito: não conheço nenhuma potência má. O tufão é uma potência. Alegra-se na alma, mas não por derrubar casas, mas simplesmente por ser. Regozijar-se é estar alegre pelo que somos, por ter chegado onde estamos. Não se trata da alegria de si mesmo, isto não é alegria, não é estar satisfeito consigo mesmo. É o prazer da conquista, como dizia Nietzsche. Mas a conquista não consiste em servir pessoas. A conquista é, para o pintor, conquistar a cor. Isso sim é uma conquista. Neste caso, é a alegria. Mesmo que isso não termine bem, pois nestas histórias de potência, quando se conquista uma potência, ela pode ser potente demais para a própria pessoa e ela acaba não suportando. Van Gogh!
CP: Agora, uma pergunta subsidiária: você, que escapou da dívida infinita, por que se queixa da manhã à noite e é um defensor do lamento e da elegia?
GD: Esta é uma pergunta pessoal. Sim, eu sempre gostei da elegia. Ela é uma das duas fontes da poesia, uma das principais fontes da poesia. É o grande lamento. Há uma grande história a ser feita sobre a elegia. Não sei se já foi feita, mas é muito interessante. Há o lamento do profeta. O profetismo é inseparável do lamento. O profeta é aquele que se lamenta e diz: “Mas por que fui escolhido por Deus? O que eu fiz para ser escolhido por Deus?” Neste sentido, ele é o contrário do padre. Ele se queixa do que acontece com ele. O que significa: “É grande demais para mim”. Eis o que é a queixa: “O que está acontecendo comigo é grande demais para mim”. Aceitando, pois, o lamento, o que nem sempre se vê, pois não é só “Ai, ai, que dor!”, mas também pode ser. Aquele que se queixa nem sempre sabe o que está querendo dizer. A velha senhora que se queixa de seu reumatismo está, na verdade, querendo dizer: “Que potência está se apoderando da minha perna e que é grande demais para que eu a suporte?” Se formos procurar na História, é muito interessante, pois a elegia é, antes de tudo, a fonte da poesia. É a única poesia latina. Na época, eu lia muito os grandes poetas latinos Catulo, Tibúrcio e outros. São poetas prodigiosos. O que é a elegia? Acho que é a expressão daquele que não tem mais um estatuto social, temporariamente ou não. É por isso que é interessante. Um pobre velho se queixa. Um homem nas galés se queixa. Não tem nada a ver com tristeza, é a reivindicação. Há uma coisa na queixa que é impressionante. Existe uma adoração na queixa, é como uma oração. Os queixumes populares, tudo… A queixa do profeta, a de um tema que você conhece bem, que é a queixa do hipocondríaco. O hipocondríaco é alguém que se lamenta. E as queixas do hipocondríaco são bonitas: “Por que tenho um fígado? Por que tenho um baço?” Não é o “Ai, como dói!”, e sim “Por que tenho órgãos?” Por que isso, por que aquilo… O lamento é sublime! O queixume popular, o lamento do assassino, que é cantado pelo povo… São os excluídos sociais que estão em situação de lamento. Há um especialista húngaro chamado Tökel, que fez um estudo sobre a elegia chinesa no qual mostra que a elegia chinesa é, acima de tudo, animada por aquele que não tem mais estatuto social, um escravo livre. Um escravo ainda tem um estatuto, por mais desgraçado que seja. Pode ser infeliz e espancado, mas tem um estatuto social. Mas há períodos em que o escravo livre não tem estatuto social, ele está fora de tudo. Deve ter sido assim para a geração dos negros na América com a abolição da escravidão. Quando houve a abolição ou então na Rússia, não tinham previsto um estatuto social para eles e foram excluídos. Interpretam erroneamente como se eles quisessem voltar a ser escravos! Eles não tinham estatuto. É neste momento que nasce o grande lamento. Mas não é pela dor, é uma espécie de canto e é por isso que é uma fonte poética. Se eu não fosse filósofo e fosse mulher, eu gostaria de ter sido uma carpideira. A carpideira é uma maravilha porque o lamento cresce. É toda uma arte! Além do mais, tem um lado pérfido: não se queixe por mim, não me toque. É um pouco como as pessoas demasiadamente polidas. Pessoas querendo ser cada vez mais polidas. Não me toque! Há uma espécie de… A queixa é a mesma coisa: “não tenha pena de mim, disso cuido eu”. Mas ao cuidar disso, a queixa se transforma. E voltamos à questão de algo ser grande demais para mim. A queixa é isto. Eu bem que gostaria de todas as manhãs sentir que o que vivo é grande demais para mim porque seria a alegria em seu estado mais puro. Mas deve-se ter a prudência de não exibi-la, pois há quem não goste de ver pessoas alegres. Deve-se escondê-la em um tipo de lamento. Mas este lamento não é só a alegria, também é uma inquietude louca. Efetuar uma potência, sim, mas a que preço? Será que posso morrer? Assim que se efetua uma potência, coisas simples como um pintor que aborda uma cor, surge esse temor. Ao pé da letra, afinal, acho que não estou fazendo Literatura quando digo que a forma como Van Gogh entrou na cor está mais ligada à sua loucura do que fazem supor as interpretações psicanalíticas, e que são as relações com a cor que também interferem. Alguma coisa pode se perder, é grande demais. Aí está o lamento: é grande demais para mim. Na felicidade ou na desgraça… Em geral, na desgraça. Mas isso é detalhe.
CP: Foi uma ótima resposta. Vamos à letra K de Kant!
GD: Aí tem menos graça.
CP: Sinto que esta vai ser rápida.
K de Kant
CP: De todos os filósofos que você estudou, Kant parece ser o mais distante do seu pensamento. Mas você diz que todos os autores que estudou tem algo em comum. Há alguma coisa em comum entre Kant e Spinoza?
GD: Eu prefiro, se me permite, a primeira parte da pergunta. Por que estudei Kant já que ele não tem nada em comum com Spinoza, nem com Nietzsche, apesar de este último ter lido muito Kant? Não temos a mesma concepção de filosofia. Mas por que, mesmo assim, Kant me fascina? Por dois motivos. Kant é tão cheio de sinuosidades. Um dos motivos é o fato de ele ter instaurado e levado a extremos o que nunca fora levado em Filosofia até então, que é a instituição de tribunais, talvez sob a influência da Revolução Francesa. Mas até então tentamos falar de conceitos como se fossem personagens. Antes de Kant, no século 18, que o precedeu, apresentou-se um novo tipo de filósofo, o investigador. Investigação. Investigação sobre o entendimento humano, investigação sobre isso e aquilo. O filósofo era visto como um investigador. Ainda mais cedo, no século 17, Leibniz foi, sem dúvida, o último representante desta tendência. Ele era visto como um advogado, ele defendia uma causa. E Leibniz pretendia ser o advogado de Deus! Como se Deus tivesse algo a ser repreendido. Leibniz escreveu um maravilhoso opúsculo sobre a causa de Deus. Era a causa jurídica de Deus, a causa de Deus defendida. Há um encadeamento de personagens: o advogado, o investigador e, com Kant, houve a chegada do tribunal, do tribunal da razão. As coisas eram julgadas em função de um tribunal da razão. E as faculdades, no sentido do entendimento, a imaginação, o conhecimento e a moral eram medidas em função deste tribunal. É claro que através de um determinado método prodigioso criado por Kant que chamaram de “método crítico”, que é o método propriamente kantiano. Todo este aspecto me deixa horrorizado, mas é um horror fascinado também, pois é genial ao mesmo tempo. Dentre os inúmeros conceitos que Kant inventou, está o do tribunal da razão que é inseparável do método crítico. Meu sonho não é esse. Este é um tribunal do juízo. É o sistema do juízo, só que este não precisa mais de Deus. É um juízo baseado na razão, e não em Deus. Não abordamos este problema, mas posso fazê-lo agora, assim não precisaremos voltar a este assunto. Podemos procurar entender… Há um mistério nisso tudo. Podemos tentar entender por que alguém em particular, eu ou você, estaríamos ligados ou nos reconhecemos em determinado tipo de problema e não em outro? O que é a afinidade de alguém com um tipo de problema? Parecem-me os maiores mistérios do pensamento. Nós nos consagramos a problemas. E não é qualquer problema, isso também vale para os cientistas. A afinidade de alguém para determinado problema e não para outro. E uma filosofia é um conjunto de problemas com consistência própria, mas não pretende cobrir todos os problemas. Ainda bem! Eu me sinto ligado aos problemas que procuram meios para acabar com o sistema do juízo e colocar outra coisa no lugar. Dentre os grandes nomes dos que buscam isso, você tinha razão em falar de oposição, estão Spinoza, Nietzsche e, em Literatura, há Lawrence, e guardo um dos maiores para o final: Artaud. Todos para acabar com o juízo de Deus. Isso é muito importante, não é loucura: acabar com o sistema do juízo. Todas estas coisas fariam com que eu não tivesse tanto… Mas, por baixo disso tudo, e, como sempre, é preciso buscar os problemas que se escondem sob os conceitos. E Kant traz problemas impressionantes, são maravilhas. Ele foi o primeiro a ter feito uma inversão de conceitos impressionante. É por isso que tanto me entristece quando vejo ensinarem aos jovens, mesmo no nível de vestibular, uma filosofia tão abstrata sem tentar fazer com que participem de problemas, que são fantásticos e muito interessantes. Posso dizer que até Kant o tempo derivava do movimento. Ele era secundário em relação ao movimento. Ele era considerado como número ou medida do movimento. O que fez Kant? Não importa como, pois há criação de um conceito. Em tudo o que digo, só tem isso! Estamos sempre avançando no tema “o que é um conceito”. Ele criou um conceito porque inverteu a subordinação. Para ele, é o movimento que depende do tempo. De repente, o tempo muda de natureza, deixa de ser circular. Porque quando o tempo está subordinado ao movimento, por razões longas demais para explicar agora, é o grande movimento periódico, é o movimento de rotação periódica dos astros. Portanto, o movimento é circular. Mas quando o tempo se liberta do movimento e que este passa a depender do tempo, o tempo se torna uma linha reta. Sempre me faz pensar na frase de Borges, apesar de ele ter alguma coisa a ver com Kant: “O labirinto mais terrível do que um labirinto circular é um labirinto em linha reta”. Isso é uma maravilha, mas é Kant! É ele que destaca o tempo. Além do mais, estas histórias de tribunal que medem o papel de cada faculdade em função de tal finalidade… Até que, no final de sua vida, ele foi um dos raros a ter escrito já muito velho um livro onde reviu tudo. A crítica da faculdade do juízo. Ele chega à idéia de que é preciso que as faculdades se relacionem desordenadamente, que se oponham e se reconciliem, mas que haja uma batalha das faculdades e não mais as medidas que justifiquem um tribunal. Ele lançou sua teoria sobre o sublime em que as faculdades entram em discordância, em acordos discordantes. Aí, eu gosto muito disso, destes acordos discordantes, deste labirinto em linha reta, sua inversão da relação. Toda a filosofia moderna veio daí, de que não era mais o tempo que provinha do movimento e, sim, o contrário. É uma criação de conceitos fantásticos. E toda a concepção do sublime com os acordos discordantes das faculdades me tocam profundamente. É claro que ele é um grande filósofo. Um grande filósofo. Ele tem um embasamento que me entusiasma, mas o que está construído em cima disso não me toca em nada. Não estou julgando. É apenas um sistema de juízo que gostaria de ver acabado. Mas não julgo.
CP: E a vida de Kant?
GD: A vida de Kant… Isso não estava previsto!
CP: Há outro aspecto que poderia ter lhe interessado em Kant que é relativo a Thomas de Quincey, aquela fantástica vida regrada por hábitos, aquele passeio matinal… A vida do filósofo como se pode imaginar popularmente. Algo muito particular no qual também podemos imaginar você, com esta vida mais regrada. O hábito sendo muito importante.
GD: Acho que…
CP: Na vida de trabalho.
GD: Entendo o que quer dizer. O texto de Quincey a entusiasma e a mim também, é uma obra-prima. Mas diria que isso pertence a todos os filósofos. Eles não têm os mesmos hábitos, mas são criaturas com hábitos. Pode parecer que eles não saibam… Mas é preciso que sejam criaturas com hábitos. Acho que Spinoza não tinha uma vida muito cheia de imprevistos. Ele tinha a vidinha dele, com as lentes dele, polindo as lentes. Ele recebia algumas visitas, etc. Ganhava a vida polindo lentes. Não era uma vida agitada, a não ser pelos acontecimentos políticos. Kant também passou por fatos políticos intensos. Tudo o que dizem sobre aparelhos que Kant inventava para levantar as calças ou as meias, etc. faz dele um personagem com muito charme. Mas todos os filósofos são um pouco, como diz Nietzsche, castos, pobres, etc. Mas ele acrescenta: “Mas tentem adivinhar para que serve isso?” Para que serve a castidade, a pobreza e tudo o mais? Kant tinha seu passeio diário, mas isso não é nada. O que acontecia durante este passeio diário? O que ele olhava? Era bom saber. Se os filósofos são seres com hábitos é porque o hábito é contemplar. O hábito é a contemplação de alguma coisa. No verdadeiro sentido da palavra, “hábito” é contemplar. O que ele contemplava em seus passeios? Não sei. Os meus hábitos… Sim, sou cheio de hábitos. Meus hábitos são as contemplações. Eu saio para contemplar. Às vezes, são coisas que sou o único a ver. Este seria um hábito.
CP: Agora, L de Literatura.
GD: Vamos ao L?
L de Literatura
CP: L de Literatura. Um filósofo cria conceitos e um romancista cria personagens. Mas os grandes personagens de romance são pensadores. Elementar, meu caro Watson! L de Literatura.
GD: Chegamos ao L.
CP: Já?
GD: Sim!
CP: A Literatura povoa seus livros de filosofia e a sua vida. Você lê e relê muitos livros de literatura, do que chamam de “Grande Literatura”. Sempre tratou os grandes escritores como pensadores. Entre Kant e Nietzsche, você escreveu Proust e os signos, que é um livro famoso. Lewis Caroll, Émile Zola, Masoch, Kafka, a Literatura inglesa e americana… Parece que é mais através da Literatura do que da história da filosofia que você inaugura um novo pensamento. Gostaria de saber se você sempre leu muito.
GD: Sim. Houve uma época em que li muito mais filosofia, pois fazia parte da minha profissão, do meu aprendizado, e não tinha muito tempo para ler romances. Mas a vida inteira, eu li grandes romances. Cada vez mais, aliás. Mas será que me é útil para a filosofia? Claro que sim. Por exemplo, a Fitzgerald, que é, por que não?, um romancista bastante filósofo, eu devo muito. O que eu devo a Faulkner também é muito grande. Estou esquecendo muitos outros. Mas tudo isso se explica em função do que já dissemos. Avançamos muito, como você já percebeu. É aquela história: o conceito não existe sozinho. O conceito, ao mesmo tempo que cumpre sua tarefa, ele faz ver coisas, está ligado aos perceptos. E o percepto, a gente o encontra em um romance. Há uma comunicação perpétua entre conceito e percepto. Há problemas de estilo que são os mesmos em Filosofia, como em Literatura. É uma questão muito simples: os grandes personagens da Literatura são grandes pensadores. Eu acabo de reler vários livros de Melville. Está claro que o Capitão Ahab é um grande pensador, que Bartleby é um pensador. É um outro tipo de pensador, mas, mesmo assim, é um pensador. Eles nos fazem pensar. De maneira tal que uma obra literária tanto traça conceitos, de forma implícita, quanto traça perceptos . Isso é certo. Mas não cabe ao literato, pois ele não pode fazer tudo ao mesmo tempo. Está tomado pela questão do percepto, em nos fazer ver e perceber e em criar personagens! Imagine o que é criar personagens! É uma coisa impressionante! O filósofo cria conceitos. Mas acontece que estes transmitem muito, porque o conceito, sob alguns aspectos, é um personagem. E o personagem tem a dimensão de um conceito. Pelo menos, eu acho. O que há de comum entre as duas atividades, a grande filosofia e a grande literatura, é que ambas testemunham em favor da vida. É o que chamei de potência há pouco. É por isso que os grandes autores não têm muito boa saúde. Existiram algumas exceções, como o caso de Victor Hugo. Eu não devia dizer que não têm boa saúde, pois alguns tinham uma saúde excelente. Mas por que existem literatos com saúde fraca? São os mesmos pelos quais passa uma enxurrada de vida. É justamente por isso. Em relação à saúde fraca de Spinoza ou à de Lawrence, o que os unia? Era quase o que eu dizia sobre a queixa: eles viram alguma coisa grande demais para eles. Eram visionários. Viram algo grande demais e não foram capazes de suportá-lo. Deixou-os arrasados. Tchekov seria um deles. Por que Tchekov ficou tão arrasado? Ele viu alguma coisa. Filósofos e literatos estão no mesmo ponto. Há coisas que se consegue ver e das quais não se pode mais voltar. Que coisas são estas? Varia muito de um autor a outro. Em geral, são perceptos no limite do suportável ou conceitos no limite do pensável. É isso. Entre a criação de um grande personagem e a criação de um conceito, eu vejo muitas ligações. É como se fosse a mesma empreitada.
CP: Você se considera um escritor em Filosofia? Um escritor literariamente falando?
GD: Não sei se me considero um grande escritor em Filosofia, mas sei que todo grande filósofo é um grande escritor.
CP: Não há uma nostalgia da obra romanesca quando se é um grande filósofo?
GD: Não, porque é como se dissesse a um pintor: “Por que não faz música?” Pode-se conceber um filósofo que também escreva romances. Sartre tentou fazer isso. Não foi nenhum… Para mim, Sartre não era um romancista, mas ele tentou. Será que houve outros grandes filósofos que escreveram romances importantes? Nenhum que eu conheça. Mas sei de filósofos que criaram personagens. Isso já aconteceu. Platão criou personagens. Nietzsche criou personagens, como Zaratustra. Aí estão os tais cruzamentos dos quais estamos sempre falando. A criação de Zaratustra, tanto poética quanto literariamente, foi um grande sucesso, assim como os personagens de Platão. São pontos em que não se sabe mais o que é conceito e o que é personagem. Estes talvez sejam os momentos mais bonitos.
CP: E seu amor por autores menores, como Villiers de I’Isle-Adam ou Restif de la Bretonne? Sempre cultivou este afecto?
GD: É muito estranho ouvir dizer que Villiers de I’Isle-Adam é um autor menor. Vamos à pergunta. Respondendo a esta pergunta… É uma coisa vergonhosa, uma vergonha mesmo. Quando era muito jovem, eu tinha a seguinte atitude: gostava de ler a obra completa de um autor. Assim, eu acabava me apegando, não por autores menores — mas muitas vezes coincidia —, por autores que tinham escrito muito pouco. Isso porque Victor Hugo me parecia grande demais, me parecia tão inacessível que eu chegava ao ponto de dizer que Victor Hugo era ruim, mas que Paul-Louis Courier era… Eu conhecia perfeitamente Paul-Louis Courier. Ele tinha escrito muito pouco. Eu tinha esta preferência por autores chamados “menores”. Villiers de I’Isle-Adam não era um autor menor.
CP: Não, é um autor fabuloso, mas menor em relação aos grandes da época.
GD: Joubert! Eu conhecia a obra de Joubert perfeitamente. Além do mais, o que era vergonhoso, me dava um certo prestígio conhecer autores desconhecidos ou pouco conhecidos. Eram manias… Levei muito tempo para aprender que Victor Hugo era grandioso e que a imensidão da obra não era pejorativa. Meu amor por autores menores… Mas é verdade que a Literatura russa não consiste apenas em Dostoiévski e Tolstoi. Quem ousa chamar Leskov de autor menor? Há coisas muito impressionantes na obra de Leskov. Autores como ele são geniais. Não tenho muita coisa a dizer sobre isso, mas esta busca por autores menores já acabou. O que eu gosto muito é de encontrar em um autor pouco conhecido alguma coisa que me parece um conceito ou um personagem extraordinário. Isso sim! Mas não é uma busca sistemática.
CP: Fora Proust, que é um grande livro seu sobre um autor, a Literatura está tão presente na sua filosofia que ela é uma referência. Mas você nunca dedicou um livro à Literatura, um livro de pensamento sobre a Literatura.
GD: Não tive tempo, mas vou fazê-lo. Vou fazê-lo porque tenho vontade.
CP: De crítica?
GD: Sim, sim… Sobre o problema… Sobre o que significa escrever na Literatura. Para mim. Com tudo o que tenho pela frente, vamos ver se tenho tempo.
CP: Queria fazer uma última pergunta. Você lê e relê os clássicos, mas parece que conhece pouco os autores contemporâneos ou que não gosta de descobrir a Literatura contemporânea. Você prefere ler ou reler um grande autor a ver o que está sendo lançado ou o que é contemporâneo.
GD: Não é que não goste. Entendo o que quer dizer e vou responder muito rápido. Não é que eu não goste. É por ser uma atividade especial e muito difícil. Precisa ter uma formação. Em uma produção contemporânea é muito difícil ter gosto. É exatamente como quem conhece novos pintores. É algo que se aprende. Admiro muito as pessoas que freqüentam galerias e dizem ou sentem que naquele trabalho existe de fato um pintor. Eu não sou capaz disso. Preciso de tempo. Para você ter uma idéia, eu precisei de cinco anos para entender a novidade de Robbe-Grillet. Beckett, eu vi logo! Quando falavam de Robbe-Grillet, eu era tão burro quanto os mais burros falando de Robbe-Grillet. Não entendia nada! Precisei de cinco anos. Não sou um descobridor. Em filosofia, eu me sinto mais confiante, sou sensível aos novos tons e também ao que é repetição de coisas já ditas mil vezes! Nos romances, sou muito sensível e seguro o suficiente para reconhecer o que já foi dito ou não tem interesse algum, mas saber se é novo… Uma vez, eu senti isso. Foi com Farrachi. Descobri do meu modo alguém que me pareceu ser um ótimo romancista jovem, que é Armand Farrachi. Para esta pergunta que você me fez é totalmente pertinente, mas eu lhe respondo dizendo que não se deve achar que se possa sem experiência julgar o que se faz. Mas o que eu prefiro e acontece com freqüência — e muito me alegra — é quando o que eu faço tem alguma repercussão no trabalho de um jovem escritor ou pintor. Não quero dizer que, por isso, ele ou eu somos bons. Não é isso. Mas é assim que tenho algum tipo de encontro com o que se faz atualmente. A minha insuficiência radical relativa ao julgamento é compensada por estes encontros com pessoas que fazem coisas que batem com o que eu faço e vice-versa.
CP: Na pintura e no cinema, estes encontros são favoráveis, pois você vai até lá. Mas não imagino você entrando numa livraria à procura de livros lançados nos últimos meses.
GD: Sim, é verdade. Talvez esteja ligado ao fato de que a Literatura não anda bem hoje em dia. Não é uma idéia só minha, nem preconcebida. Está evidente para todos. É uma literatura tão corrompida pelo sistema de distribuição, prêmios, etc. que nem vale a pena.
CP: Então, vamos para a letra M.
M de Maladie [Doença]
GD: Doença.
CP: Logo após terminar o manuscrito de Diferença e repetição em 1968, você foi hospitalizado por causa de uma gravíssima tuberculose. Você, que falou sobre o fato de Nietzsche e Spinoza e os grandes pensadores terem saúde fraca, foi obrigado a conviver desde 1968 com a doença. Você sabia que a tuberculose estava aí há muito tempo? Ou sabia que seu mal estava aí há muito tempo?
GD: O mal, sim. Sabia que eu tinha algum mal há muito tempo. Mas acho que sou como a maioria das pessoas, não tinha muita vontade de saber o que era. E, como a maioria, estava certo de que era um câncer. Então, não tinha pressa de saber. Eu não sabia que era tuberculose até o momento em que comecei a cuspir sangue. Sou um filho da tuberculose, mas foi num momento em que esta doença não apresentava mais perigo algum, pois já havia os antibióticos. Se tivesse sido dez ou três anos antes, teria sido bem mais grave. Se tivesse sido alguns anos antes, eu não teria sobrevivido. Mas não houve problema algum. Além do mais, é uma doença que não comporta dor. Posso dizer que estive muito doente, mas é um grande privilégio ter uma doença sem sofrimento, que é curável, sem dor… Quase não é uma doença. É uma doença, sim, é verdade. Mas, antes, eu nunca fui um homem saudável. Sempre me cansei facilmente. A questão é saber se isso facilita. Se alguém que se propõe, — nem estou falando do sucesso desta empreitada — mas alguém que quer, que gosta e tem como proposta pensar ou tentar pensar, saber se o fato de ter uma saúde fraca lhe é favorável. Não é que se esteja à escuta de sua própria vida, mas pensar é para mim estar à escuta da vida. Não é o que acontece com si próprio. Estar à escuta da vida é muito mais do que pensar em sua própria saúde. Mas acho que uma saúde fraca favorece este tipo de escuta. Há pouco, disse que grandes autores como Lawrence ou Spinoza viram alguma coisa grande, tão grande que era demais para eles. É verdade que não se pode pensar sem estar em uma área que exceda um pouco as suas forças, que o torne mais frágil. Eu sempre tive uma saúde fraca e isso ficou mais claro a partir do momento em que fui tuberculoso. Aí, eu adquiri todos os direitos de uma saúde fraca. Sim, é como você diz.
CP: Mas a sua relação com médicos e medicamentos mudou a partir daí. Você teve que ir a médicos e tomar remédios regularmente, o que foi uma obrigação! Ainda mais você que não gosta muito de médicos.
GD: Não é uma questão pessoal, pois eu conheci muitos médicos encantadores. Mas é um tipo de poder ou a forma como eles manipulam este poder que me parecem detestáveis. Voltamos ao que já falei. É como se a metade das letras comportasse o todo. A maneira como manipulam o seu poder é detestável. Como médicos, eles são detestáveis. Tenho um profundo ódio, não pela pessoa dos médicos que, em geral, são encantadores, mas pelo poder médico e pela maneira como usam este poder. Mas uma coisa me deixou feliz e, ao mesmo tempo, é o que os chateia. Os médicos trabalham cada vez mais com aparelhos e testes, em geral muito desagradáveis para o paciente e que parecem não ter interesse algum, a não ser o de confirmar o diagnóstico. Mas se são médicos talentosos, estes já sabem o diagnóstico e estas provas cruéis só vêm reforçá-lo. Eles fazem uso destas provas de uma forma inadmissível. O que me deixou feliz foi que, sempre que eu tive de passar por um daqueles aparelhos, meu fôlego era fraco demais para ser registrado pela máquina. E quando tiveram de me fazer um… Não sei mais como se chama, mas é um exame do coração que não conseguiram fazer.
CP: Uma ecografia.
GD: Sim, é isso, e tive de passar por este aparelho aí. A minha alegria foi vê-los furiosos naquele momento. Acho que eles odeiam o pobre paciente neste momento. Eles aceitam errar o diagnóstico, mas não aceitam que alguém não possa ser visto pela máquina. Além do mais, eles são muito incultos. Eles são muito… Como diria? Quando eles se metem na cultura, é uma catástrofe. A classe médica é uma gente estranha. O que me consola é que ganham muito dinheiro, mas não têm tempo para gastá-lo ou aproveitá-lo, pois levam uma vida extremamente difícil. É verdade que os médicos não me atraem muito. É claro que isso independe da personalidade deles, mas quando exercem a sua função, tratam as pessoas como cães. Aí, há de fato uma luta de classes, pois se o paciente é rico, eles já são bem mais educados. Menos em cirurgia, que é um caso à parte. Mas os médicos precisariam de uma reforma, pois há de fato um problema.
CP: E os remédios que precisa tomar o tempo todo?
GD: Até que eu gosto. Remédios não me aborrecem. Mas cansam, claro.
CP: Mas não é uma chatice tomar remédios?
GD: Quando são muitos, como atualmente, sim. Aquele monte de remédios de manhã cedo parece uma besteira. Mas eu também sinto que é muito útil. Eu sempre fui a favor dos remédios, até na área de psiquiatria. Sempre fui a favor da farmácia.
CP: E este cansaço do qual falou, que está ligado à doença, e que já existia antes da doença, me faz pensar no texto de Blanchot sobre o cansaço na amizade. O cansaço ocupa grande parte de sua vida. Às vezes, parece que o usa como desculpa para o que o está chateando. Você usa o cansaço. O cansaço lhe é útil.
GD: Eu acho o seguinte… Voltamos ao tema da potência. O que é realizar um pouco de potência, fazer o que se pode, fazer o que está na minha potência? É uma noção bem complexa, pois o que nos torna impotentes, como uma saúde fraca ou uma doença…, precisa-se saber como utilizá-las para, por meio delas, recuperar um pouco da potência. É claro que a doença deve servir para alguma coisa, como todo o resto. Não estou falando apenas em relação à vida, na qual ela deve dar um sensação. Para mim, a doença não é uma inimiga, pois não é uma coisa que dá a sensação da morte, e sim, que aguça a sensação da vida. Não é no sentido de: “Ah, como gostaria de viver e quando estiver curado, vou começar a viver!” Não é nada disso. Não há nada de mais abjeto no mundo do que um bon vivant. Ao contrário, os grandes vivos são pessoas de saúde muito fraca. Voltando à questão da doença, ela aguça uma visão da vida, uma sensação da vida. Quando falo em visão da vida, em vida ou em ver a vida, é ser tomado por ela. A doença aguça e dá uma visão da vida. A vida em toda a sua potência, em toda a sua beleza! Estou seguro disso. Mas como ter benefícios secundários da doença? É muito simples. É preciso usá-la para ser mais livre. Tem de usá-la, senão é muito chato, pois a gente se estafa e isso não deve acontecer. Estafar-se trabalhando para realizar alguma potência vale a pena, mas estafar-se socialmente, eu não entendo. Não entendo um médico estressado porque tem clientes demais. Tirar partido da doença é se libertar das coisas das quais não se liberta na vida normal. Por exemplo, eu nunca gostei de viajar. Nunca pude, nem soube viajar. Respeito os que viajam, mas o fato de ter uma saúde tão frágil me dava muita segurança para recusar qualquer viagem. Sempre foi muito difícil deitar-me muito tarde. A minha saúde não me permitia deitar tarde demais. Não estou falando em relação aos amigos, mas às tarefas sociais. A doença me libera muito. É ótima neste sentido.
CP: Você vê esta fadiga como a doença?
GD: A fadiga é outra coisa. Para mim é: “Hoje, fiz o que pude”. A fadiga é biológica. O dia acabou, pronto. Ele pode durar mais por razões sociais, mas a fadiga é a formulação biológica do fim do dia. Não dá para tirar mais nada de você. Visto desta forma, não é um sentimento desagradável. É desagradável se não se faz nada. Aí, é angustiante. Do contrário, é bom. Eu sempre fui sensível aos estados suaves. Estas fadigas suaves. Gosto deste estado quando ele vem no final de alguma coisa. Isso deveria ter um nome em música. Não sei como chamariam isso. É uma coda. A fadiga é uma coda.
CP: Gostaria de que falássemos de sua relação com a comida.
GD: A velhice… A velhice, não. A comida?
CP: Sim, porque você gosta de comidas que parecem lhe dar força e vitalidade, como miolo, lagosta, etc. Mas tem uma relação particular com a comida. Não gosta muito de comer.
GD: Sim, para mim, comer é uma coisa… Se eu tentasse definir a qualidade de comer seria muito chato. Para mim, comer é a coisa mais chata do mundo. Beber, sim! Mas a letra B já passou. Beber é extremamente interessante. Comer nunca me interessou e acho chatíssimo. Comer sozinho é terrível. Comer acompanhado muda tudo, mas não transforma a comida, só me permite suportar comer, mesmo que eu não diga nada, e faz com que seja menos chato. Comer sozinho… Muita gente é assim. Aliás, a maioria das pessoas admite que comer é uma tarefa abominável. Mas é claro que tenho os meus pratos prediletos. Mas são especiais, pois causam um nojo universal. Mas, afinal, eu bem que suporto o queijo dos outros.
CP: Você não gosta de queijo.
GD: Dentre as pessoas que não suportam queijo, eu sou um dos raros a ser tolerante, pois não expulso aquele que come queijo. Sempre suportei este gosto que me parece igual ao canibalismo. Parece-me o horror absoluto. Quando me perguntam de que é composta a minha refeição predileta, que seria uma festa para mim, eu sempre falo de três coisas que me parecem sublimes e, no entanto, são nojentas: língua, miolo e tutano. São coisas muito ricas e seria difícil engolir tudo isso. Mas há alguns restaurantes em Paris que servem tutano. Mas, depois, não posso comer mais nada, pois servem uma grande quantidade. Aliás, é fascinante. O miolo e a língua… Se eu tentasse relacionar com o que dissemos, há uma espécie de trindade. Poderíamos dizer — e seria anedótico — que o cérebro é Deus, é o Pai. Que o tutano é o Filho, já que está ligado às vértebras, que são pequenos crânios, e Deus é o crânio. Pequenos crânios, vértebras… Portanto, o tutano é Jesus. E a língua é o Espírito Santo, que é a própria potência da língua. Eu também poderia arriscar assim: o miolo é o conceito, o tutano é o afecto e a língua é o percepto. Não me pergunte por quê, mas sinto que são trindades. É, esta seria uma refeição fantástica para mim. Não sei se já tive os três ao mesmo tempo. Talvez em algum aniversário. Alguns amigos teriam feito uma refeição destas para mim. Uma festa!
CP: Mas não pode comer as três coisas…
GD: Seria demais!
CP: … pois fala de sua velhice todos os dias.
GD: A velhice! Alguém soube falar da velhice. Foi Raymond Devos. Muitas outras coisas foram ditas, mas ele disse o melhor para mim. Acho que a velhice é uma idade esplêndida. Claro que há algumas chateações, tudo fica mais lento, nos tornamos lentos. O pior é quando alguém lhe diz: “Mas não é tão velho assim!” Não entende o que é uma queixa. Estou me queixando dizendo “Ah, estou velho!”. Ou seja, invoco as potências da velhice. E aí, alguém me diz, com a intenção de me consolar: “Não está tão velho assim”. Eu daria uma bengalada nele! Logo quando estou em plena queixa da minha velhice, não venham me dizer: “Até que não é tão velho assim”. Pelo contrário, deviam dizer: “Está velho mesmo!” Mas é uma alegria pura. Fora esta lentidão, de onde vem esta alegria? O que é terrível na velhice? Não é brincadeira. É a dor e a miséria. Não é a velhice em si. O que é patético, o que torna a velhice algo triste são as pessoas pobres que não têm dinheiro para viver, nem um mínimo de saúde necessário e que sofrem. Isso é que é terrível. E não a velhice! A velhice não é um mal em si. Com dinheiro suficiente e um mínimo de saúde, é formidável. E por que é formidável? Primeiro, porque, na velhice, sabe-se que chegou lá. O que é muito! Não é um sentimento de triunfo, mas chegou lá. Chegou lá em um mundo cheio de guerras, de vírus malditos e tudo o mais. Mas conseguiu atravessar tudo isso, os vírus, as guerras e todas estas porcarias. Esta é a hora em que só há uma coisa: ser! O velho é alguém que é. Ponto final. Podem dizer que é um velho rabugento, etc. Mas ele é. Ele adquiriu o direito de ser. Afinal, um velho pode dizer que tem projetos. É verdade e não é. São projetos, mas não da forma como alguém de 30 anos tem projetos. Espero escrever estes dois livros, um sobre a Literatura e outro sobre a Filosofia. Mas, mesmo assim, estou livre de qualquer projeto. Estou livre de projetos. Quando se é velho, deixa-se de ser suscetível. Não há mais suscetibilidades, não há mais decepções fundamentais. Estamos muito mais desinteressados. Amamos as pessoas de fato pelo que elas são. Acho que afina a percepção. Vejo coisas que não via antes, percebo elegâncias às quais eu não era sensível. Agora, eu as vejo melhor, porque olho para alguém pelo que ele é, quase como se eu quisesse carregar comigo uma imagem dele, um percepto ou tirar da pessoa um percepto. Tudo isto torna a velhice uma arte. Os dias passam numa velocidade impressionante com a escansão, a fadiga. A fadiga não é uma doença, é outra história. E também não é a morte. Eu repito: é um sinal de que o dia acabou. Com a velhice, existem algumas angústias, mas basta evitá-las. Elas são fáceis de serem esconjuradas. Elas são como os lobisomens ou os vampiros, é só não estar na frente de um. Gosto desta idéia. Não se deve estar sozinho à noite quando começa a esfriar, pois somos lentos demais para poder fugir. Então, são coisas a evitar. A grande maravilha é que as pessoas deixam a gente de lado, a sociedade deixa a gente de lado. Ser deixado de lado pela sociedade é uma alegria tamanha! Não que a sociedade tenha me importunado muito, mas quem não tem a minha idade ou não está aposentado não sabe a alegria que é ser deixado de lado pela sociedade. Os velhos que eu ouço se lamentando são aqueles que não queriam ser velhos, que não suportam a aposentadoria. Não sei por quê. Que leiam romances! Pelo menos, descobririam alguma coisa. Eles não suportam. Eu não acredito, com exceção de alguns casos japoneses, naqueles aposentados que não conseguem encontrar alguma ocupação. É uma maravilha ser deixado de lado. Basta sacudir-se um pouco para que tudo caia. Caem todos os parasitas que você carregou a vida inteira. E o que resta à sua volta? Só as pessoas que ama e que o suportam e o amam também. O resto deixou você de lado. Estou falando de mim. Mas fica muito difícil quando querem trazê-lo de volta. Não suporto isso. Eu só conheço a sociedade através do aviso de chegada da aposentadoria todo mês. Do contrário, sei que sou um desconhecido para a sociedade. O problema é quando alguém acredita que eu ainda faço parte dela e que me pede uma entrevista. No nosso caso atual, é diferente, pois faz parte de um sonho de velhice. Mas quando alguém quer me entrevistar, tenho vontade de dizer: “Tá maluco? Você não sabia que sou um velho e fui deixado de lado pela sociedade?” Mas é bom. Acho que estão confundindo as coisas: o problema não é a velhice, mas a miséria e o sofrimento. Mas quando se é velho, miserável e sofredor, aí, não há palavras para dizer o que é. Mas um velho simplesmente, que é apenas velho, é o ser.
CP: Mas como está doente, cansado e velho, fazendo a devida distinção entre as três coisas, deve ser difícil para aqueles que o cercam e que não estão doentes, cansados, nem velhos como você. Para seus filhos e sua mulher?
GD: Meus filhos… Meus filhos, não há muito problema. Poderia haver algum problema se eles fossem menores, mas como já são grandes, vivem a sua vida e eu não dependo deles, não há problema algum, a não ser problemas afetivos quando eles pensam: “Ele parece cansado mesmo”. Mas acho que não há um problema grave com os filhos. E com Fanny, acho que também não é um problema. Mesmo se para ela… Não sei… É difícil imaginar o que teria feito a pessoa que ama se tivesse vivido outra vida. Suponho que Fanny teria gostado de viajar. Ela certamente não viajou como talvez tenha desejado. Mas o que ela descobriu que não teria descoberto se tivesse viajado? Como ela teve uma formação literária muito forte, quantas coisas ela descobriu em romances esplêndidos que valem por mil viagens? Claro que há problemas, mas estão acima da minha compreensão.
CP: Para terminar, quando fala de seus projetos, como o livro sobre a Literatura e o seu último livro O que é a Filosofia?, o que há de divertido em abordá-los estando velho? Você disse que talvez não os realizasse, mas que era divertido.
GD: É uma coisa maravilhosa, sabe? Primeiro, há uma evolução. Quando se é velho, a idéia do que deseja fazer fica cada vez mais pura, no sentido de que fica cada vez mais refinada. É exatamente como as famosas linhas de um desenhista japonês. Linhas muito puras. Parece não ter nada, só uma linha muito fina. Eu só posso conceber isso como o projeto de um velho. Algo que seja tão puro, tão nada, mas, ao mesmo tempo, seja tudo, seja tão maravilhoso! Para conseguir alcançar esta sobriedade, só depois de muito tempo de vida. O que é a filosofia? Acho muito divertido, na minha idade, a idéia de sair em busca do que é a Filosofia, de ter a sensação de que sei e de que sou o único a saber. Se eu morrer atropelado amanhã, ninguém vai saber o que é a Filosofia. São coisas muito agradáveis para mim. Mas eu poderia ter escrito um livro sobre o que é a Filosofia há 30 anos. Eu sei que teria sido muito… Teria sido um livro muito…
CP: Pesado?
GD: Muito diferente do que aquele que concebo agora, em que busco uma certa sobriedade. Poderia ser bom, como poderia não ser. Mas sei que é agora que devo concebê-lo. Antes, eu não saberia. Agora, acho que sou capaz. Mas, de qualquer forma, não seria…
N de Neurologia
CP: N de Neurologia. Um pensamento é um produto da mente e um mecanismo cerebral. Demonstração. Então, N é neurologia e cérebro.
GD: Neurologia e cérebro… A neurologia é muito difícil.
CP: Seremos breves.
GD: É verdade que a neurologia sempre me fascinou, mas por quê? É o que acontece na cabeça de alguém ao ter uma idéia. Prefiro quando alguém tem uma idéia, senão é como um flipperama. O que acontece? Como se dá a comunicação dentro da cabeça? Antes de falar de comunicação, como ela acontece dentro da cabeça? Ou então na cabeça de um idiota. Quem tem uma idéia e um idiota são a mesma coisa. Eles não procedem por caminhos pré-traçados, por associações já feitas. O que acontece? Se soubéssemos, acho que entenderíamos tudo. Isso me interessa. Por exemplo, as soluções têm de ser muito variadas, quer dizer, duas extremidades nervosas no cérebro podem entrar em contato. É isso que chamamos de processos elétricos nas sinapses. Há outros casos bem mais complexos, talvez, que são descontínuos, nos quais há uma falha a saltar. Acho que o cérebro é cheio de fendas, que há saltos que obedecem a um regime probabilista, que há relações de probabilidade entre dois encadeamentos, que é algo muito mais incerto, muito incerto. As comunicações dentro de um mesmo cérebro são fundamentalmente incertas, submetidas a leis de probabilidade. O que faz com que eu pense em algo? Você dirá: “Ele não está dizendo nada de novo, é a associação de idéias”. Seria quase necessário se perguntar se, quando um conceito é dado… Ou um quadro, uma obra de arte é contemplada, olhada… Teríamos de tentar fazer o mapa cerebral correspondente. Quais seriam as comunicações contínuas, as comunicações descontínuas de um ponto a outro. Há uma coisa que chamou muito a minha atenção. Assim chegamos onde você queria. O que me impressionou foi uma história… algo de que os físicos se utilizam muito sob o nome de “transformação do padeiro”. Pega-se um quadrado de massa, faz-se um retângulo, dobra-se, estica-se novamente etc. São feitas transformações. Ao final de x transformações, dois pontos contíguos, sem dúvida, estarão muito distantes. Não há pontos distantes que, após x transformações, não sejam contíguos. Eu me pergunto: ao procurarmos algo na cabeça, será que não acontecem misturas desse tipo? Será que não há dois pontos que, num dado momento, num estágio do pensamento, eu não sei como aproximar e que, ao final dessa transformação, estão um do lado do outro? Eu quase chegaria a dizer que, entre um conceito e uma obra de arte, ou seja, entre um produto da mente e um mecanismo cerebral, há semelhanças que são muito comoventes. Acho que a questão “como pensamos?” ou “o que significa pensar?” diz respeito, ao mesmo tempo, ao pensamento e ao cérebro, tudo misturado. Acredito mais no futuro da biologia molecular ou do cérebro do que no futuro da informática ou de todas as teorias da comunicação.
CP: Você sempre abriu espaço para a psiquiatria do século 19, que se ocupava muito de neurologia e ciência do cérebro em comparação com a psicanálise. Você manteve essa prioridade da psiquiatria sobre a psicanálise justamente devido à sua atenção à neurologia?
GD: Sim, sem dúvida.
CP: E isso continua?
GD: É o que eu estava dizendo. A farmacologia também tem relações com… A farmacologia e sua ação possível sobre o cérebro e as estruturas cerebrais que poderíamos encontrar em nível molecular nos casos de esquizofrenia, tudo isso me parece um futuro mais seguro do que a psiquiatria espiritualista.
CP: Essa é uma questão de método. Não é segredo, é uma questão aberta às ciências. Você é um autodidata. Quando você lê uma revista de neurobiologia, ou uma revista científica, você não é muito bom em matemática, ao contrário dos filósofos que você estudou. Bergson era formado em matemática, Spinoza era bom em matemática, Leibniz também. Como você faz para ler quando tem uma idéia, precisa de algo que lhe interessa e que você não necessariamente entende tudo? Como você faz?
GD: Tem uma coisa que me reconforta muito. Acho que há várias leituras de uma mesma coisa e acredito piamente que não é preciso ser filósofo para ler filosofia. A filosofia é suscetível, ou melhor, precisa de duas leituras ao mesmo tempo. É absolutamente necessário que haja uma leitura não-filosófica da filosofia, senão não haveria beleza na filosofia. Ou seja, não-especialistas lêem filosofia e a leitura não-filosófica da filosofia não carece de nada, possui sua suficiência. É simplesmente uma leitura. Isso talvez não valha para todos os filósofos. Vejo com dificuldade uma leitura não-filosófica de Kant, por exemplo. Mas um camponês pode ler Spinoza. Não me parece impossível que um comerciante leia Spinoza.
CP: Nietzsche.
GD: Nietzsche mais ainda. Todos os filósofos de que gosto são assim. Acredito que não haja necessidade de compreensão. É como se a compreensão fosse um nível de leitura. É como se você me dissesse que, para apreciar Gauguin ou um grande quadro, é preciso conhecê-lo profundamente. O conhecimento profundo é melhor, mas também há emoções extremamente autênticas, extremamente puras e violentas na ignorância total da pintura. É claro que alguém pode ficar abalado com um quadro e não saber nada a seu respeito. Podemos ficar muito emocionados com a música ou com uma certa obra musical sem saber uma palavra. Eu, por exemplo, fico emocionado com LuluWozzeck. Nem falo do Concerto em memória de um anjo, que acredito que seja o que mais me emociona no mundo. Sei que seria ainda melhor ter uma percepção competente, mas digo que tudo que é importante no campo mental é suscetível a uma dupla leitura, desde que não façamos essa dupla leitura casualmente enquanto autodidatas. É algo que fazemos a partir de problemas vindos de outro lugar. É como filósofo que tenho uma percepção não-musical da música, que talvez seja para mim extraordinariamente comovente. Da mesma forma, é como músico, pintor etc. que alguém pode ter uma leitura não-filosófica da filosofia. Não ter essa segunda leitura, que não é exatamente a segunda, não ter duas leituras simultâneas… São como as duas asas de um pássaro, não é muito bom não ter as duas leituras simultâneas. Até um filósofo tem de aprender a ler um grande filósofo não-filosoficamente. O exemplo típico para mim é mais uma vez Spinoza. Ter um livro de bolso de Spinoza e lê-lo assim… Para mim, tem-se tanta emoção quanto numa obra musical. De certa forma, a questão não é mais compreender. Nos meus cursos, nos cursos que dei, era evidente que as pessoas compreendiam uma parte e não compreendiam outra. Um livro é assim para todos: compreendemos uma parte, outra, não. Volto à sua pergunta sobre a ciência. Acho que é verdade, o que faz que, de certo modo, estejamos no limite da própria ignorância. É aí que temos de nos posicionar. Temos de nos posicionar no limite do próprio saber ou da própria ignorância para ter algo a dizer. Se espero saber o que vou escrever, e se espero saber, literalmente, do que estou falando, o que eu disser não terá nenhum interesse. Se não me arrisco e falo com ar de sábio do que não sei, também não haverá nenhum interesse. Mas estou falando da fronteira que separa o saber do não-saber. É aí que temos de nos posicionar para ter algo a dizer. Quanto à ciência, para mim é a mesma coisa. E a confirmação para mim é que sempre tive relações surpreendentes. Eles nunca me consideraram um cientista, acham que não entendo muita coisa, mas me dizem: “Funciona”. Quer dizer, alguns me disseram: “Funciona”. Quando eu uso… Seria necessário… Sou sensível aos ecos, não sei como chamar isso. Vou tentar dar um exemplo bastante simples. Um pintor do qual gosto muito é Delaunay. O que Delaunay faz? Se eu tentar resumir em fórmulas, o que Delaunay faz? Ele percebe uma idéia prodigiosa. Isso nos faz voltar ao início: o que é ter uma idéia? Qual é a idéia de Delaunay? A sua idéia é que a luz sozinha forma figuras, há figuras de luz. É algo muito novo. Talvez, muito antes, tivessem já tido essa idéia. O que aparece com Delaunay é a criação de figuras formadas pela luz, figuras de luz. Ele pinta figuras de luz e não os aspectos assumidos pela luz ao encontrar um objeto, o que seria muito diferente. É assim que ele se afasta de todos os objetos. Sua pintura não tem mais objetos. Li coisas muito bonitas que ele disse. Ao julgar severamente o cubismo, ele disse: “Cézanne tinha conseguido quebrar o objeto, quebrar a compoteira, e os cubistas ficam tentando colá-la”. Portanto, o importante é eliminar o objeto, substituir as figuras rígidas, geométricas, com figuras de luz pura. Essa é uma coisa: evento pictórico e evento Delaunay. Não sei as datas, mas isso não importa. Há uma maneira ou um aspecto da relatividade, da teoria da relatividade. Conheço só um pouco, não preciso muito disso. Não precisamos saber grande coisa. Ser autodidata é que é perigoso, mas não precisamos saber grande coisa. Sei apenas que um dos aspectos da relatividade é exatamente que, em vez de submeter as linhas geométricas… Não. Em vez de submeter as linhas de luz, as linhas seguidas pela luz, às linhas geométricas, a partir da experiência de Michaelson, acontece o inverso. São as linhas de luz que vão condicionar as linhas geométricas. Entendo que, cientificamente, é uma inversão considerável. Isso mudou tudo, pois a linha de luz não tem a constância da linha geométrica. Tudo mudou. Não digo que tenha sido tudo, que o aspecto da relatividade tenha sido o mais importante da experiência de Michaelson. Não vou dizer que Delaunay tenha aplicado a relatividade. Eu celebraria o encontro entre uma tentativa pictórica e uma tentativa científica, as quais devem ter alguma relação. Eu estava dizendo a mesma coisa. Por exemplo: não conheço muito bem os espaços reimannianos, não conheço os detalhes. Conheço apenas o necessário para saber que se trata de um espaço construído pedaço por pedaço e cujas ligações das partes não são predeterminadas. Mas, por razões totalmente diferentes, preciso de um conceito de espaço que é construído por ligações que não são predeterminadas. Eu preciso disso. Não vou passar cinco anos tentando entender Riemann, pois, ao final desses cinco anos, não terei avançado no meu conceito filosófico. Vou ao cinema, vejo um espaço estranho, que todos conhecem como o espaço dos filmes de Bresson, onde o espaço é raramente global, é construído pedaço por pedaço. Vemos um pedaço de espaço, um pedaço de cela. Em O condenado à morte, a cela, do que me lembro, nunca é vista inteira, apesar de ser um pequeno espaço. Não falo da estação de Lyon em Pickpocket, onde pequenos pedaços de espaço se ligam. Essa ligação não é predeterminada, e é por isso que será manual. Daí a importância das mãos para Bresson. É a mão que vai… De fato, em Pickepocket, é a velocidade na qual os objetos roubados são passados que vai determinar a ligação de pequenos espaços. Não vou dizer que Bresson aplica um espaço riemanniano. Digo que pode haver um encontro entre um conceito filosófico, uma noção científica e um percepto estético. É perfeito. Digo que sei apenas o necessário de ciência para avaliar encontros. Se eu soubesse mais, faria ciência e não filosofia. Portanto, falo do que não sei, mas falo do que não sei em função do que sei. E, se tudo isso tem a ver com tato, sei lá, não devemos mistificar, não devemos parecer que sabemos quando não sabemos. Assim como eu tive encontro com pintores… Foi o dia mais bonito da minha vida. Tive um certo encontro, não um encontro físico, mas, no que escrevo, tive encontros com pintores. O maior deles foi com Hantaï. Hantaï me disse: “Sim, há alguma coisa”. Não foi em nível de elogio. Hantaï não é do tipo que vai me fazer elogios. Não nos conhecemos, mas havia algo. O que foi meu encontro com Carmelo Bene? Nunca fiz ou entendi de teatro. Tenho de crer que havia algo. Há pessoas de ciência com quem isso também funciona. Conheço matemáticos que, quando gentilmente lêem meu trabalho, dizem: “Para nós, isso funciona”. É um pouco chato porque parece que estou fazendo um elogio a mim mesmo, mas é para responder à pergunta. Para mim, a questão não é se eu sei muita ciência ou não, ou se sou capaz de aprender muita ciência. O importante é não falar besteira, é estabelecer os ecos, esses fenômenos de eco entre um conceito, um percepto, uma função, já que as ciências não procedem com conceitos, mas com funções. Quanto a isso, preciso dos espaços de Riemann. Sim, sei que isso existe, não sei bem o que é, mas isso me basta.
O de Ópera
CP: O de Ópera. Acabamos de saber que Ópera é um tema um pouco… É um tema um pouco de brincadeira porque exceto WozzeckLulu, de Berg, a ópera não faz parte dos seus interesses. Você pode falar de novo sobre a exceção feita a Berg, mas ao contrário de Foucault ou de Châtelet, que gostavam muito da ópera italiana, você nunca escutou muita música nem ópera. O que lhe interessa mais é a canção popular. A canção popular e, mais especificamente, Edith Piaf. Você é apaixonado por Edith Piaf. Fale um pouco disso.
GD: Você foi um pouco severa. Primeiro, escutei muita música numa certa época, há muito tempo. Depois, parei porque pensei: “Não é possível. Isto é um abismo, toma tempo demais”. É preciso ter tempo, e eu não tenho. Tenho muito a fazer. Não estou falando de obrigações sociais. Tenho vontade de fazer, escrever algumas coisas e não tenho tempo para ouvir música ou para ouvir bastante.
CP: Châtelet, por exemplo, trabalhava ouvindo ópera.
GD: Bem, isso é um método. Eu não poderia fazer isso. Ele ouvia ópera. Não sei se ele fazia isso enquanto trabalhava. Talvez quando recebia alguém, assim cobria o que lhe diziam quando ele já estava cheio. Mas esse não é o meu caso. No máximo seria o que eu entendo… Preferiria que você me perguntasse, que você transformasse a pergunta em: o que faz com que haja uma comunhão entre uma canção popular e uma obra-prima musical? Isso me fascina. Acho que Edith Piaf foi uma grande cantora, ela tinha uma voz extraordinária e, além disso, ela tinha a característica de sair do tom e de recuperar a nota fora de tom, uma espécie de sistema em desequilíbrio no qual sempre recuperamos algo. Esse me parece o caso de todos os estilos. Gosto muito porque é o que me pergunto sobre tudo em relação à música popular. Eu sempre me pergunto: “O que isso tem de novo?”. Sobre tudo, sobre todas as produções a primeira pergunta a ser feita é: “O que isso tem de novo?”. Se já foi feito 10 ou 100 vezes, pode ser muito bem feito, mas compreendo perfeitamente quando Robbe-Grillet diz: “Balzac é evidentemente um grande gênio, mas qual é o interesse hoje de fazer romances como os que Balzac fazia?”. Isso mancha os romances de Balzac porque… Isso serve para tudo. O que me tocava em Edith Piaf era no que ela inovava em relação à geração anterior, em relação a Fréhel e à outra grande… Damian. Em relação a Fréhel e a Damian. As inovações que ela trouxe, como ela inovou até no traje das cantoras. Eu era extremamente sensível à voz de Piaf. Nos cantores mais modernos, é necessário pensar, para entender o que vou dizer, em Trénet. Qual foi a inovação das canções de Trénet? Literalmente, nunca tínhamos ouvido aquele modo de cantar. Insisto muito nesse ponto porque para a filosofia, a pintura, tudo, para a arte, seja a música popular ou o resto, ou para o esporte… Veremos quando falarmos sobre esporte que é a mesma coisa. O que há de novo? Se interpretarmos isso em termos de moda, é exatamente o contrário. O novo não está na moda, que talvez estará, mas que não está na moda porque é inesperado. Por definição, é inesperado. É algo que surpreende as pessoas. Quando Trénet começou a cantar, dissemos: “É um louco”. Hoje, ele não é mais considerado louco, mas ficou marcado para sempre que ele era um louco. Edith Piaf me parecia grandiosa.
CP: Você também gostou muito de Claude François.
GD: Claude François, porque pensei ter visto, com razão ou não, que ele também trazia algo de novo. Há muitos, não quero citar nomes. É muito triste porque cantaram assim centenas, milhares de vezes. Além disso, eles não têm voz nenhuma e não buscam nada. É a mesma coisa inovar e buscar algo. O que Edith Piaf buscava? Tudo o que posso dizer sobre a saúde frágil e a grande vida… O que ela viu, a força da vida é o que acabou com ela. Ela é o próprio exemplo. Poderíamos citar Edith Piaf em tudo o que já dissemos. Quanto a Claude François, ele buscava algo. Ele buscava um tipo novo de espetáculo, um espetáculo musical. Ele inventou essa espécie de canção dançada, que implica obviamente em playback. Azar ou não. Assim, ele pôde fazer pesquisas sonoras. Até o fim, ele não estava satisfeito porque suas letras eram idiotas e isso é importante numa canção. As letras eram fracas. Ele não parou de tentar mudar as letras para chegar a letras melhores, como a de Alexandrie Alexandra, que era uma boa canção. Hoje, não sei quem… Mas, quando ligamos a TV… É o direito do aposentado. Quando estou cansado, posso ligar a TV. Quanto mais canais temos, mais eles se parecem e são de uma nulidade radical. O regime da concorrência… Fazer concorrência, seja no que for, é produzir a mesma nulidade eterna. Isso é a concorrência. Saber o que fará o espectador assistir este canal e não aquele é espantoso. Não podemos mais chamar isso de canto porque a voz não existe mais, não há a mínima voz. Mas, enfim, não vamos reclamar. O que me toca é um campo comum e, contudo, tratado, pela canção popular e pela música, de duas maneiras respectivamente diferentes. E do que se trata? Acho que aí fizemos um bom trabalho, Félix e eu, pois se me perguntassem: “Que conceito filosófico você produziu, já que você fala sobre criar conceitos?” Criamos ao menos um conceito muito importante: o de ritornelo. Para mim, o ritornelo é esse ponto comum. De que se trata? Digamos que o ritornelo é uma pequena ária. Quando é que digo tra-la-lá? Agora estou fazendo filosofia… Eu me pergunto: “Quando é que cantarolo?” Cantarolo em três ocasiões: quando dou uma volta pelo meu território e tiro o pó dos móveis. O rádio está ao fundo. Ou seja, quando estou na minha casa. Cantarolo quando não estou em casa e estou voltando para casa ao anoitecer, na hora da angústia. Procuro meu caminho e me encorajo cantarolando. Estou a caminho de casa. E cantarolo ao me despedir e levo no meu coração… Tudo isso é canção popular: “Vou embora e levo no coração…” Quando saio da minha casa, mas para ir aonde? Em outros termos, para mim, o ritornelo está totalmente ligado – e isso me remete ao A de Animal – ao problema do território, da saída ou entrada no território, ou seja, ao problema da desterritorialização. Volto para o meu território, que eu conheço, ou então me desterritorializo, ou seja, parto, saio do meu território. Você vai perguntar: “O que isso tem a ver com a música?” É preciso progredir ao criar um conceito, por isso uso a imagem do cérebro. Neste momento, estou pensando num lied. O que é um lied? Um liedlied. Seja em Schumann ou em Schubert, é fundamentalmente isso. Eu acho que isso que é o afecto. Quando eu disse “A música é a história dos devires e da potência do devir”, estava falando de algo assim. Pode ser genial ou medíocre. O que é então a verdadeira grande música? Parece-me uma operação “artista da música”. Eles partem do ritornelo. Estou falando dos músicos mais abstratos. Entendo que cada um tem seu próprio tipo de ritornelo. Eles partem de pequenas árias e ritornelos. É preciso ver Vinteuil e Proust. Três notas, depois, duas. Há um pequeno ritornelo na base de todo Vinteuil, na base do septeto. É um ritornelo. Temos de achá-lo sob a música. É algo prodigioso. O que acontece? Um grande músico não coloca um ritornelo depois do outro, mas ele funde ritornelos num ritornelo mais profundo. São todos os ritornelos, quase territórios, um território e outro, que vão se organizar no interior de um imenso ritornelo, que é um ritornelo cósmico. Tudo o que Stockhausen conta sobre a música e o cosmo, toda essa maneira de retomar temas que eram correntes na Idade Média e no Renascimento… Sou a favor dessa idéia de que a música está ligada ao cosmo de uma maneira… Um músico que admiro muito e que me emociona é Mahler. O que são os Cantos da terra? Não podemos dizer melhor. E perpetuamente, como elemento de gênese, temos um pequeno ritornelo, às vezes, baseado em dois sinos de vacas. Em Mahler, é muito comovente a maneira como todos esses ritornelos, que já são obras musicais geniais, ritornelos de taverna, de pastores etc., se compõem numa espécie de grande ritornelo que será o Canto da terra. Mais um exemplo seria Bartok, que, para mim, evidentemente, é um grande músico, um grande gênio. O modo como os ritornelos locais, os ritornelos de minorias nacionais são retomados numa obra que não acabamos de explorar… Acho que a música é… Para uni-la à pintura, é exatamente a mesma coisa. Klee disse: “O pintor não representa o visível, ele torna visível”. Aí subentendem-se “as forças que não são visíveis”. É a mesma coisa com o músico. Ele torna audíveis forças que não são audíveis, que não são… Ele não representa o que é audível, mas torna audível o que não o é, as forças… Ele torna audível a música da terra, ele torna audível ou a inventa. Quase como o filósofo, que torna pensáveis forças que não são pensáveis, que têm uma natureza bruta, uma natureza brutal. É essa comunhão de pequenos ritornelos com o grande ritornelo que, para mim, parece definir a música. Para mim, seria isso. Esse é o seu poder. O poder de levar para um nível cósmico. É como se as estrelas começassem a cantar uma pequena ária de sinos de vacas, uma pequena ária de pastor. É o inverso, os sinos de vacas são de repente elevados ao estado de ruído celeste ou de ruído infernal. É isso que…
CP: Mesmo assim, tenho a impressão, não sei por quê, com tudo o que você me disse e toda essa erudição musical, que o que você procura na música é algo visual. O que lhe interessa é o visual, muito mais… Entendo até que ponto o audível está ligado às forças cósmicas como o visual. Você não vai a concertos, não escuta música, mas vai a exposições ao menos uma vez por semana e tem uma prática.
GD: É questão de possibilidade e de tempo. Só posso dar uma resposta. Uma única coisa me interessa na literatura: o estilo. O estilo é algo puramente auditivo. É puramente auditivo. Eu não faria a distinção que você faz entre visual… É verdade que raramente vou a concertos, porque é mais difícil reservar um lugar. Tudo isso faz parte da vida prática. Numa galeria, numa exposição de pintura, não precisamos reservar lugar. Sempre que vou a um concerto, acho longo demais porque sou pouco receptivo, mas sempre tive emoções. Acho, mas não tenho certeza, que você está enganada. Acho que você está errada. Não é verdade. Sei que a música me proporciona emoções. Só que é ainda mais difícil. Falar de música é ainda mais difícil do que falar de pintura. É quase o ápice falar de música.
CP: Muitos filósofos falaram de música.
GD: Mas o estilo é sonoro e não visual. Nesse nível, só me interessa a sonoridade.
CP: A música está ligada à filosofia, ou seja, muitos filósofos, sem mencionar Jankélévitch, falaram sobre música.
GD: Sim, é verdade.
CP: Além de Merleau-Ponty, poucos falaram de pintura.
GD: Você acha que foram poucos? Não sei.
CP: Não tenho certeza, mas Barthes falou de música, Jankélévitch também.
GD: Ele falou bem.
CP: Foucault falou.
GD: Quem?
CP: Foucault.
GD: Foucault não falou muito de música. Era um segredo seu. Sua relação com a música era um segredo.
CP: Mas ele esteve muito ligado a músicos.
GD: Tudo isso eram segredos. Ele não falava…
CP: Sim, mas ele ia a Bayreuth, era íntimo do mundo musical, mesmo sendo um segredo. E a exceção Berg, como sugere Pierre-André…
GD: Isso me faz lembrar… Isso faz parte também… Por que você se dedica a algo? Não sei por quê. Descobri ao mesmo tempo que as peças para orquestra de… Está vendo o que é ser velho e não se lembrar dos nomes? As peças para orquestra do seu mestre.
CP: Schönberg.
GD: De Schönberg. Lembro-me de que, naquele momento, não faz tanto tempo, eu podia escutar as peças para orquestras quinze vezes seguidas. Quinze vezes seguidas, e eu conhecia os momentos que me comoviam. Foi no mesmo momento que encontrei Berg e ele me fazia… Eu podia escutá-lo o dia todo. Por quê? Acho que tinha a ver com a relação com a terra. Só fui conhecer Mahler muito depois. É a música e a terra. Retomar isso nos músicos mais antigos… A música e a terra estão muito presentes. Mas o fato de a música estar relacionada à terra na época de Berg e Mahler foi comovente para mim. Tornar sonoros os poderes da terra. Era isso, Wozzeck é, para mim, um grande texto porque é a música da terra. É uma grande obra.
CP: E os dois gritos? Você gostava dos gritos de Marie.
GD: Para mim, há uma forte relação entre o canto e o grito. Toda essa escola soube reapresentar o problema. Os dois gritos… Não me canso do grito. O grito horizontal que toca a terra em Wozzeck e o grito vertical, totalmente vertical da condessa. Era condessa ou baronesa? Não sei mais.
CP: Condessa.
GD: Da condessa em Lulu. São dois ápices do grito, mas a relação entre… Tudo isso me interessa porque, em filosofia, há cantos e gritos. Os conceitos são verdadeiros cantos em filosofia. E também há gritos na filosofia. Há gritos repentinos. Aristóteles: “É preciso parar”. Ou um outro que dirá: “Nunca vou parar”. Spinoza: “O que um corpo pode fazer? Nem sabemos”. Esses são gritos. Mas a relação grito/canto ou conceito/afecto é parecida. Gosto disso, é algo que me toca.
P de Professor
CP: Então, P é de Professor. Hoje, você tem 64 anos e, durante quase 40 anos, você foi professor, primeiro do ensino médio, depois, na universidade. Este ano é o primeiro sem aulas. Você sente falta das aulas? Você disse que dava aula com paixão. Você sente falta de dar aula hoje?
GD: Não, absolutamente. É verdade que foi a minha vida, que foi uma parte muito importante da minha vida. Eu gostava muito de dar aula, mas, quando me aposentei, foi uma alegria porque eu já não tinha tanta vontade de dar aula. A questão das aulas é muito simples. Acho que as aulas têm equivalentes em outras áreas. Uma aula é algo que é muito preparado. Parece muito com outras atividades. Se você quer 5 minutos, 10 minutos de inspiração, tem de fazer uma longa preparação. Para ter esse momento de… Se não temos… Eu vi que, quanto mais fazia isso… Sempre fiz isso, eu gostava. Eu me preparava muito para ter esses momentos de inspiração. Com o passar do tempo, percebi que precisava de uma preparação crescentemente maior para obter uma inspiração cada vez menor.
Então, estava na hora… Não me sinto privado porque gostei de dar aula, mas era algo de que eu precisava menos. Resta-me escrever, o que comporta outros problemas. Não me arrependo. Mas gostei profundamente de dar aulas.
CP: Preparar muito significava quanto tempo de preparação?
GD: Tenho de refletir. Como tudo, são ensaios. Uma aula é ensaiada. É como no teatro e nas cançonetas, há ensaios. Se não tivermos ensaiado o bastante, não estaremos inspirados. Uma aula quer dizer momentos de inspiração, senão não quer dizer nada.
CP: Você não ensaiava diante do espelho, não é?
GD: Não, cada atividade tem seus modos de inspiração. Mas não há outra palavra a não ser pôr algo na cabeça e conseguir achar interessante o que é dito. Se o orador não acha interessante o que está dizendo… Nem sempre achamos interessante o que dizemos. E não é vaidade, não é se achar interessante ou fascinante. É preciso achar a matéria da qual tratamos, a matéria que abraçamos, fascinante. Às vezes, temos de nos açoitar. Não que seja desinteressante, a questão não é essa. É necessário chegar ao ponto de falar de algo com entusiasmo. O ensaio é isso. Eu precisava menos disso. E as aulas são algo muito especial. Uma aula é um cubo, ou seja, um espaço-tempo. Muitas coisas acontecem numa aula. Nunca gostei de conferências porque se trata de um espaço-tempo pequeno demais. Uma aula é algo que se estende de uma semana a outra. É um espaço e uma temporalidade muito especiais. Há uma seqüência. Não podemos recuperar o que não conseguimos fazer. Mas há um desenvolvimento interior numa aula. E as pessoas mudam entre uma semana e outra. O público de uma aula é algo fascinante.
CP: Vamos recomeçar do início. Você lecionou primeiro no ensino médio. Você tem uma boa lembrança?
GD: Sim, mas isso não significa nada porque o ensino médio não era o que é hoje. Penso nos jovens professores que ficam desanimados. Eu lecionei no ensino médio durante a Liberação, não muito tempo depois. Era totalmente diferente.
CP: Onde?
GD: Estive em duas cidades do interior. Gostei muito de uma e menos da outra. Gostei muito de Amiens porque havia uma liberdade absoluta. Era uma cidade muito livre. Orléans era uma cidade mais severa. Ainda era a época em que o professor de filosofia era recebido com muita complacência, perdoavam-lhe muitas coisas porque ele era uma espécie de louco, de idiota da aldeia. Eu podia praticamente fazer tudo que quisesse. Eu ensinava meus alunos a tocar serrote porque eu tocava e todos achavam normal. Acho que, hoje, isso não seria mais possível…
GD: Pedagogicamente, queria explicar o quê com o serrote? Em que momento ele entrava em cena?
GD: As curvas. O serrote, como você sabe, tem de ser curvado e obtemos o som num ponto da curva. São curvas móveis que lhes interessavam muito.
CP: Já era sobre a variação infinita.
GD: Mas eu não fazia só isso. Eu seguia o currículo, era muito consciencioso.
CP: E foi aí que você conheceu Poperen?
GD: Sim, conheci bem Poperen. Ele viajava mais do que eu, ficava muito pouco em Amiens. Ele tinha uma malinha e um despertador enorme porque não gostava de relógios. Seu primeiro gesto era tirar o despertador. Ele dava aula com o despertador. Ele era encantador.
CP: E quem eram seus amigos na sala dos professores?
GD: Eu gostava muito de ginástica. Eu gostava dos professores de ginástica. Não me lembro muito bem. As salas dos professores nas escolas devem ter mudado. Era algo de…
CP: Quando alunos, imaginamos a sala dos professores como algo misterioso e solene.
GD: Não, é o momento em que… Há gente de todo tipo, solene, brincalhona, de tudo. Eu não ia muito à sala.
CP: Depois de Amiens e Orléans, você deu aulas preparatórias em Louis-le-Grand?
GD: Sim.
CP: E se lembra de bons alunos que não deram em grande coisa?
GD: Que deram ou não em grande coisa. Não me lembro bem… Sim, lembro-me deles, eles se tornaram… Pelo que sei, se tornaram professores. Nunca tive alunos que se tornaram ministros. Tive um que se tornou policial. Não, nada de especial. Eles seguem seu caminho e são gente boa.
CP: Depois, vieram os anos de Sorbonne. Parece que esses anos correspondem a anos de história da filosofia. Depois, Vincennes, que foi uma experiência determinante após a Sorbonne. Pulei Lyon depois da Sorbonne. Você ficou contente por entrar para a universidade depois de ter sido professor de ensino médio?
GD: Contente, não é bem assim nesse nível… Era uma carreira normal. Se eu tivesse voltado ao ensino médio eu teria ficado… Não teria sido dramático, anormal, uma derrota. Era normal. Não tive nenhum problema. Não tenho nada a dizer.
CP: As aulas da faculdade são preparadas de outra maneira?
GD: Para mim, não.
CP: Para você, era igual?
GD: Totalmente. Sempre preparei aulas da mesma forma.
CP: A preparação era tão intensa na escola quanto na faculdade?
GD: Certamente. É preciso estar totalmente impregnado do assunto e amar o assunto do qual falamos. Isso não acontece sozinho. É preciso ensaiar, preparar. É preciso ensaiar na própria cabeça, encontrar o ponto em que… É muito divertido, é preciso encontrar… É como uma porta que não conseguimos atravessar em qualquer posição.
CP: Já que estamos falando de sua carreira universitária, fale-me da sua tese. Quando você a defendeu?
GD: Eu a defendi… Acho que escrevi muitos livros antes para não fazê-la. É uma reação comum. Eu trabalhava muito e pensava: “Tenho de fazer minha tese. Tenho de fazer isso, que é urgente”. Adiei ao máximo e, finalmente, a apresentei em… Acho que foi uma das primeiras teses defendidas depois de 68.
CP: 69?
GD: Sim, deve ter sido em 69. Foi uma das primeiras. Isso me proporcionou uma situação privilegiada porque a banca só tinha uma preocupação: evitar os bandos que ainda circulavam na Sorbonne. Eles estavam com medo. Era a volta, o início da volta. Eles se perguntavam o que ia acontecer. Lembro-me que o presidente da banca me disse: “Há duas possibilidades: ou fazemos sua tese no térreo da Sorbonne. A vantagem é que tem duas saídas. Se acontecer algo, a banca pode cair fora. O único inconveniente é que, no térreo, os bandos circulam mais facilmente. Ou então vamos para o 1º andar. A vantagem é que os bandos sobem com menos freqüência, mas o inconveniente é só ter uma entrada e uma saída. Se acontecer algo, como vamos sair?”. Quando defendi minha tese, nunca vi o olhar do presidente da banca, que estava fixo na porta.
CP: Quem era?
GD: Para saber se tinha algum bando chegando.
CP: Quem foi o presidente da banca?
GD: Não vou dizer seu nome, é segredo.
CP: Posso fazer você dizer.
GD: Ele estava angustiado. E ele era muito simpático. Ele estava mais emocionado do que eu. É raro a banca estar mais emocionada do que o candidato, mas foram circunstâncias excepcionais.
CP: Você já era mais conhecido do que três quartos da banca.
GD: Não, eu não era muito conhecido.
CP: Foi Diferença e repetição?
GD: Sim.
CP: Você já era conhecido por seus trabalhos sobre Proust e Nietzsche.
Vamos falar de Vincennes, a menos que você tenha algo a dizer sobre Lyon depois da Sorbonne.
GD: Não. Vincennes foi quase… Lá houve uma mudança, você tem razão, não no que eu chamo de preparação e ensaio das aulas, nem no seu estilo, mas, a partir de Vincennes, parei de ter um público de estudantes. Esse foi o esplendor de Vincennes, a mudança. Não foi algo geral em todas as faculdades, mas em Vincennes, ao menos em filosofia, porque não era toda a universidade, havia um novo tipo de público, completamente novo, que não era mais composto de estudantes, que misturava todas as idades, pessoas de atividades muito diferentes, inclusive doentes de hospitais psiquiátricos. Era o público talvez mais variado e que encontrava uma unidade misteriosa em Vincennes. Ao mesmo tempo, o mais variado e o mais coerente em função de Vincennes. Vincennes dava uma unidade a esse público desarmônico. Para mim, era um público… Depois, deveria ter sido transferido, mas construí minha vida de professor em Vincennes. Se tivesse ido para outras faculdades, não me reconheceria. Quando ia a outra faculdade, eu parecia viajar no tempo, voltar ao século 19. Em Vincennes, eu falava na frente de pessoas que eram uma mistura de tudo, jovens pintores, pacientes psiquiátricos, músicos, drogados, jovens arquitetos, gente de muitos países. Tudo isso variava de um ano para outro. Num ano, apareciam de repente cinco ou seis australianos. No ano seguinte, não estavam mais lá. Os japoneses eram uma constante, de 15 a 20 todos os anos. Os sul-americanos, os negros, tudo isso é um público inestimável, é um público fantástico.
CP: Pela primeira vez, era dirigido aos não-filósofos. Quer dizer, essa prática…
GD: Acho que era filosofia plena, dirigida tanto a filósofos quanto a não-filósofos, exatamente como a pintura se dirige a pintores e a não-pintores. A música não se dirige necessariamente a especialistas de música. É a mesma música. É o mesmo Berg e o mesmo Beethoven que se dirigem a quem não é especialista em música e também a músicos. Para mim, a filosofia deve ser exatamente igual, dirigir-se tanto a não-filósofos quanto a filósofos, sem mudar. Quando dirigimos a filosofia a não-filósofos, não temos de simplificar. É como na música. Não simplificamos Beethoven para os não-especialistas. É a mesma coisa com a filosofia. Para mim, a filosofia sempre teve uma dupla audição: uma audição não-filosófica e uma filosófica. Se não houver as duas ao mesmo tempo, não há nada. Senão a filosofia não valeria nada.
CP: Explique uma sutileza: há não-filósofos em conferências, mas você odeia conferências.
GD: Odeio as conferências porque são artificiais e por causa do antes e do depois. Adoro aulas, é uma maneira de falar, mas odeio falar. Para mim, falar é uma atividade… E nas conferências, temos de falar antes, depois etc. Não há a pureza de uma aula. E as conferências têm um lado circense. As aulas também, mas é um circo que me faz rir e que é mais profundo. As conferências têm um lado artificial. As pessoas vão para… Nem eu sei bem por quê. O fato é que não gosto de conferências. Não gosto de dar conferências. É tenso demais, difícil, angustiante demais, não sei. Conferências não me parecem muito interessantes.
CP: Vamos voltar ao querido público variado de Vincennes. Nos anos de Vincennes, havia loucos e drogados que faziam intervenções selvagens, que tomavam a palavra. Isso parece nunca ter incomodado você. Todas as intervenções aconteciam no meio da aula, que permanecia magistral, e nenhuma intervenção tinha valor de objeção para você. Ou seja, sua aula sempre foi magistral.
GD: Sim. Precisamos inventar outro termo. O termo “aula magistral” é o usado nas universidades. Temos de buscar outro termo. Acho que existem duas concepções de aula: uma concepção segundo a qual uma aula tem como objetivo obter reações imediatas de um público sob forma de perguntas e interrupções. É uma corrente, uma concepção de aula. E há a concepção dita magistral, do professor que fala. Não é uma questão de preferência, não tenho escolha. Sempre usei a segunda, a concepção dita magistral. É preciso achar outro termo porque… Digamos que é mais uma concepção musical. Para mim, uma aula é… Não interrompemos a música, seja ela boa ou ruim. Interrompemos se ela é muito ruim. Não interrompemos a música, mas podemos muito bem interromper palavras. O que significa uma concepção musical de aula? Acho que são duas coisas, na minha experiência, sem dizer que essa é a melhor concepção. É o meu modo de ver as coisas. Conhecendo um público, o que foi meu público, penso: “Sempre tem alguém que não entende na hora. E há o que chamamos de efeito retardado”. Também é como na música. Na hora, você não entende um movimento, mas, três minutos depois, aquilo se torna claro porque algo aconteceu nesse ínterim. Uma aula pode ter efeito retardado. Podemos não entender nada na hora e, dez minutos depois, tudo se esclarece. Há um efeito retroativo. Se ele já interrompeu… É por isso que as interrupções e perguntas me parecem tolas. Você pergunta porque não entende, mas basta esperar.
CP: Você achava as interrupções tolas porque ninguém esperava?
GD: Sim. Há esse primeiro aspecto. Se você não entende algo, pode ser que entenda depois. Os melhores alunos perguntam uma semana mais tarde. No final, eu tinha um sistema inventado por eles, não por mim: eles me mandavam notas sobre a semana anterior. Eu gostava muito. Eles diziam: “Temos de voltar a esse ponto”. Eles haviam esperado. Eu não voltava, não fazia diferença, mas havia essa comunicação. O segundo ponto importante na minha concepção de aula… Eram aulas que duravam duas horas e meia. Ninguém consegue escutar alguém por duas horas e meia. Para mim, uma aula não tem como objetivo ser entendida totalmente. Uma aula é uma espécie de matéria em movimento. É por isso que é musical. Numa aula, cada grupo ou cada estudante pega o que lhe convém. Uma aula ruim é a que não convém a ninguém. Não podemos dizer que tudo convém a todos. As pessoas têm de esperar. Obviamente, tem alguém meio adormecido. Por que ele acorda misteriosamente no momento que lhe diz respeito? Não há uma lei que diz o que diz respeito a alguém. O assunto de seu interesse é outra coisa. Uma aula é emoção. É tanto emoção quanto inteligência. Sem emoção, não há nada, não há interesse algum. Não é uma questão de entender e ouvir tudo, mas de acordar em tempo de captar o que lhe convém pessoalmente. É por isso que um público variado é muito importante. Sentimos o deslocamento dos centros de interesse, que pulam de um para outro. Isso forma uma espécie de tecido esplêndido, uma espécie de textura.
CP: Isso quanto ao público, mas, para esse “concerto”, você inventou os termos ” pop filosofia” e ” pop filósofo”.
GD: É o que eu queria dizer.
CP: Pode-se dizer que sua figura, como a de Foucault, era muito especial, seu chapéu, suas unhas, sua voz. Você sabe que havia uma certa mitificação dessa figura por parte dos alunos. Eles mitificaram Foucault, assim como mitificaram a voz de Wahl. Você tem consciência de que tem uma figura e uma voz singulares?
GD: Sim, sem dúvida. Sem dúvida, porque a voz, numa aula… Se a filosofia, como já falamos… A filosofia mobiliza e trata de conceitos. É normal que haja a vocalização dos conceitos numa aula, assim como há um estilo de conceitos por escrito. Os filósofos não escrevem sem elaborar um estilo. São como artistas, são artistas. Uma aula implica vocalizações, implica até uma espécie de – eu falo mal alemão – Sprechgesang. Evidentemente. Há mitificações, “Viu as unhas dele?”, etc. Faz parte de todos os professores. Desde o primário é assim. O mais importante é a relação entre a voz e o conceito.
CP: Mas seu chapéu era como o vestidinho preto de Piaf. Era uma postura muito precisa.
GD: Mas eu não o usava por isso. Se produzia esse efeito, ótimo.
CP: Faz parte do papel de professor?
GD: Se faz parte do papel de professor? Não. É um suplemento. O que faz parte do papel do professor é o que eu disse sobre o ensaio anterior e a inspiração. Esse é o papel do professor.
CP: Você nunca quis nem escola nem discípulos. Essa recusa de discípulos é algo muito profundo em você?
GD: Eu não os recuso. Geralmente, uma recusa é recíproca. Ninguém quer ser meu discípulo. Eu não quero ter nenhum. Uma escola é terrível por uma simples razão: consome muito tempo, nos tornamos administradores. Veja os filósofos que fazem escola. Os wittgenteinianos são uma escola. Não é uma diversão. Os heideggerianos são uma escola. Isso implica acertos de contas terríveis, exclusividades, organização do tempo, toda uma administração. Uma escola é administrada. Assisti a rivalidades entre os heideggerianos franceses, liderados por Beaufret, e os heideggerianos belgas, liderados por Develin. Foi uma briga de foice. Tudo isso é abominável. Isso não me interessa nem um pouco. Mesmo no nível das ambições, ser chefe de uma escola… Lacan era chefe de uma escola, mas é terrível, causa muitas preocupações. É preciso ser maquiavélico para lidar com tudo isso. Eu detesto tudo isso. A escola é o contrário do movimento. Dou um exemplo simples: o surrealismo é uma escola. Acerto de contas, tribunais, exclusões etc. Breton fez uma escola. Dada era um movimento. Se eu tivesse um ideal, não digo que não consegui, seria participar de um movimento. Participar de um movimento, sim. Mas ser o chefe de uma escola não me parece um destino invejável. Um movimento no qual o ideal não seja ter noções garantidas, assinadas e repetidas pelos discípulos. Para mim, duas coisas são importantes: a relação que podemos ter com os estudantes é ensinar que eles fiquem felizes com sua solidão. Eles vivem dizendo: “Um pouco de comunicação. Nós nos sentimos sós, somos todos solitários”. Por isso eles querem escolas. Eles não poderão fazer nada em relação à solidão. Temos de ensinar-lhes os benefícios da sua solidão, reconciliá-los com sua solidão. Esse era o meu papel de professor. O segundo aspecto é um pouco a mesma coisa. Não quero lançar noções que façam escola. Quero lançar noções e conceitos que se tornem correntes, que se tornem não exatamente ordinárias, mas que se tornem idéias correntes, que possam ser manejadas de vários modos. Isso só é possível se eu me dirigir a solitários que vão transformar as noções ao seu modo, usá-las de acordo com suas necessidades. Tudo isso são noções de movimento, não de escola.
CP: Você acha que, na universidade hoje, a era dos grandes professores acabou?
GD: Não sei bem porque não faço mais parte disso. Saí em um momento aterrorizador. Eu não entendia como os professores podiam dar aulas. Eles tinham se tornado administradores. Quanto à universidade, a política atual é muito clara. Isso tem a ver com a adoção de disciplinas que nada têm a ver com disciplinas universitárias. Meu sonho seria que as universidades continuassem a ser locais de pesquisa e que, ao lado das universidades, se multiplicassem as escolas. Escolas técnicas, onde aprendemos Contabilidade, Informática etc. Mas a universidade só interviria na Informática e na Contabilidade no nível da pesquisa. Haveria acordos entre uma escola e uma universidade. A escola enviaria seus alunos para fazer cursos de pesquisa. A partir do momento em que admitimos na universidade matérias de escola, a universidade está acabada, não é mais um local de pesquisa. Somos cada vez mais corroídos por problemas administrativos. O número de reuniões nas universidades… Por isso não sei como os professores conseguem preparar um curso. Suponho que façam o mesmo todos os anos, ou que nem os façam mais. Talvez eu esteja enganado, tomara que sim. A tendência parece ser o desaparecimento da pesquisa, o aumento de disciplinas não inovadoras na universidade, que não são disciplinas de pesquisa. É o que chamamos de adaptação da universidade ao mercado de trabalho. Esse não é o papel da universidade, mas das escolas.
Q de Questão
CP: Q de Questão. Há falsos problemas, às vezes, verdadeiros, isso já sabemos. Mas também há questões verdadeiras e falsas. A filosofia serve para propor questões e problemas e as questões são fabricadas. Como você diz, o objetivo não é tanto responder, mas livrar-se dessas questões. Livrar-se da história da filosofia é propor questões, mas aqui, numa entrevista, não fazemos questões. Não são realmente questões. Como eu e você vamos nos livrar disso? Vamos fazer uma escolha forçada? Qual é a diferença entre uma pergunta na mídia e uma pergunta em filosofia?
GD: É difícil dizer… Na mídia, na maior parte do tempo e nas conversas correntes, não há questões, não há problemas. Há interrogações. Se eu digo “Como vai você?”, isso não é um problema, mesmo se você estiver mal. Se eu digo “Que horas são?”, isso não é um problema. Tudo isso são interrogações. No nível da televisão habitual, mesmo em programas muito sérios, temos interrogações. “O que você acha disso?”. Isso não é um problema. É uma interrogação, queremos a sua opinião. É por isso que a TV não é muito interessante, é a opinião das pessoas. Isso não me parece muito interessante. Se dizemos “Você acredita em Deus?”, isso é uma interrogação. Onde estão o problema e a questão? Não existem. Se apresentássemos questões ou problemas num programa de TV… Precisaria acontecer mais. Temos Océaniques, certo, mas não é muito freqüente. Os programas políticos não discutem nenhum problema, mas poderiam fazê-lo. Poderíamos perguntar sobre a questão chinesa. Não perguntamos, convidamos especialistas da China que nos dizem coisas que nós mesmos poderíamos ter dito sem saber nada sobre a China. É surpreendente. Não faz parte de um domínio… Volto ao meu exemplo porque ele é grande: Deus. Qual é o problema ou a questão sobre Deus? Não é saber se você acredita ou não em Deus, isso não interessa muita gente. O que queremos dizer com a palavra “Deus”? O que isso quer dizer? Imagino as questões. Pode querer dizer: “Você será julgado após a morte?”. Por que isso é um problema? Porque estabelece uma relação problemática entre Deus e o momento do julgamento. Deus é um juiz? Isso é uma questão. Vamos supor que nos falem de Pascal. Pascal tem um texto célebre, uma aposta: “Deus existe ou não?” Apostamos e, lendo o texto de Pascal, percebemos que não se trata bem disso. Por quê? Ele levanta uma outra questão. A questão de Pascal não é se Deus existe ou não, que também não seria uma questão muito interessante, mas sim qual é o melhor modo de existência; o modo de existência de quem acredita que Deus existe ou o modo de existência de quem não acredita? Apesar de a questão de Pascal não dizer respeito à existência ou não de Deus, ela diz respeito à existência de quem acredita ou não na existência de Deus. Pelas razões desenvolvidas por Pascal, e que são as dele, mas que são muito claras, ele acha que quem acredita que Deus existe tem uma existência melhor do que quem não acredita. É o problema pascaliano. Aí há um problema, uma questão. Mas já não é a questão de Deus. Há uma história subjacente das questões, uma transformação das questões em outras. A frase de Nietzsche: “Deus está morto”. Não significa a mesma coisa que “Deus não existe”. Se eu digo “Deus está morto.”, a que outra questão isso remete, que não é a mesma de quando eu digo “Deus não existe.”? Depois, vemos que a Nietzsche não importa se Deus está morto. É uma outra questão que ele levanta. Se Deus está morto, não há razão para o homem também não estar morto. Temos de encontrar outra coisa que não o homem. Não lhe interessa a morte de Deus, mas a chegada de outra coisa que não o homem. Essa é a arte das questões e dos problemas. Acho que pode-se fazer isto na televisão ou na mídia, mas seria um tipo de programa muito especial, é essa história subjacente dos problemas e das questões. Nas conversas correntes e na mídia, ficamos no nível das interrogações. Basta ver, não sei… Podemos citar? Sim, é póstumo. L’heure de vérité era só interrogações. “Sra. Veil, a senhora acredita na Europa?” O que quer dizer acreditar na Europa? O interessante é… Qual é o problema da Europa? Vou dizer qual é o problema da Europa, assim farei uma previsão uma vez na vida. É a mesma coisa da China atual. Todos pensam em preparar e uniformizar a Europa. Eles se perguntam como uniformizar os seguros etc. Depois, aparece na Praça da Concórdia um milhão de pessoas da Holanda, da Alemanha etc., e eles não dominam o assunto. Então, eles chamam especialistas: “Por que há holandeses na Praça da Concórdia?”. “É porque fizemos…”. Eles ignoraram as questões quando tinham de levantá-las. É um pouco confuso.
CP: Mas, durante anos, você leu jornal. Parece que você não lê mais jornais. Há algo no nível da imprensa para que não se levantem mais essas questões?
GD: Tenho menos tempo, sei lá.
CP: Eles o enojam?
GD: Ah, sim! Parece que aprendemos cada vez menos. Estou pronto, quero aprender coisas. Não sabemos nada, não sabemos… Como os jornais também não dizem nada… Não sei…
CP: Mas, assistindo ao telejornal… Ao assistir ao telejornal, que é o único programa que você nunca perde, você tem sempre uma questão a formular, que não foi formulada, esquecida pela mídia?
GD: Não sei. Não sei.
CP: Mas você acha que nunca as colocamos?
CP: As questões? Acho que não poderíamos colocá-las. No caso Touvier, não poderíamos propor questões. Esse é um caso recente. Touvier foi preso. Por que agora? Todo mundo pergunta por que ele foi protegido, mas todos sabem que deve ter havido algo. Ele foi o chefe do serviço de informação, devia ter informações sobre a conduta dos altos dignitários da Igreja na época da guerra. Todos sabem do que ele estava a par, mas ficou acertado que não levantaríamos questões. Isso é o que chamamos de consenso. Um consenso é o acordo, a convenção com a qual substituiremos as questões e os problemas por simples interrogações. Interrogações do tipo “Como vai você?”, ou seja… “Esse convento o escondeu! Por quê?”. Sabemos que essa não é a questão. Todo mundo sabe… Vou dar outro exemplo recente. Os renovadores da direita e os aparatos da direita. Todos sabem do que se trata, os jornais dizem que… Eles não dizem uma palavra. Não sei… Parece-me evidente que, entre os renovadores da direita, há um problema muito interessante. São indivíduos não particularmente jovens. Trata-se do seguinte: é uma tentativa da direita de abalar as estruturas partidárias, que ainda estão centralizadas em Paris. Eles querem uma independência das regiões. Isso é muito interessante. É muito interessante, mas ninguém insiste nesse aspecto. Eles não querem uma Europa de nações, mas de regiões, querem que uma verdadeira unidade seja regional e inter-regional e não nacional e internacional. Isso é um problema. E os socialistas, por sua vez, terão esse problema entre tendências regionalistas e tendências… Mas as estruturas partidárias, as federações de província nos sindicatos, quer dizer, nos partidos, ainda são um método antigo. Tudo é trazido a Paris e o peso é muito centralizado. Os renovadores de direita são um movimento antijacobino que a esquerda também terá. Então, eu penso: “De fato, eles deveriam falar sobre isso”. Mas eles não o farão, se recusarão a falar disso. Recusarão porque estarão se expondo. Eles sempre responderão apenas a interrogações. As interrogações não são nada, são apenas conversa, não têm interesse algum. As conversas e as discussões nunca tiveram interesse algum. A TV, salvo casos excepcionais, está condenada a discussões e interrogações. Isso não vale nada. Não é nem mentiroso, é insignificante, não tem interesse algum.
CP: Sou menos otimista do que você, acho que Anne Sinclair não nota, ela acha que faz boas perguntas, que não faz interrogações.
GD: Isso é problema dela. Ela deve estar satisfeita consigo mesma. Sem dúvida, mas isso é problema dela.
CP: Você nunca aceita ir à televisão. Foucault e Serres foram. Trata-se de uma retirada à la Beckett? Você odeia a televisão? Por que você não aparece na televisão?
GD: Aqui, estou aparecendo. Minha razão para não ir é tudo o que acabei de dizer. Não tenho vontade de conversar ou discutir com as pessoas. Não suporto as interrogações. Isso não me interessa. Não suporto discussões. Discutir algo se ninguém sabe de que problema se trata… Volto à minha história sobre Deus. Trata-se da inexistência de Deus ou da morte do homem? Da inexistência de Deus, de quem acredita em Deus? Isso é muito cansativo. Cada um fala na sua vez… É a domesticidade em estado puro e com um apresentador idiota ainda por cima. Tenha piedade.
CP: O principal é que você está aqui hoje respondendo nossas interrogações.
GD: A título póstumo.
R de Resistência
CP: R de Resistência e não de Religião.
GD: Sim.
CP: Como você disse recentemente numa conferência na FEMIS [École Nationale Supérieure des Métiers de l’Image e du Son], “A filosofia cria conceitos e, se criamos conceitos, resistimos”. Os artistas, os cineastas, os músicos, os matemáticos, os filósofos, toda essa gente resiste. Mas resistem a que exatamente? Vamos ver caso por caso. A filosofia cria conceitos. A ciência cria conceitos?
GD: É uma questão de terminologia, Claire. Se convencionarmos usar a palavra “conceito” para a filosofia, as noções e idéias científicas terão de ser designadas por outra palavra. Não dizemos que um artista cria conceitos. Um pintor, um músico não cria conceitos, mas outra coisa. Para a ciência, teríamos de encontrar outra palavra. Um cientista é alguém que cria funções, digamos. Não digo que seja a melhor palavra. Ele cria funções. Funções também são criadas. Criar novas funções… Einstein, Gallois, os grandes matemáticos, mas não apenas matemáticos, físicos, biólogos criam funções. E o que é resistir? Criar é resistir… É mais claro para as artes. A ciência está numa posição mais ambígua, mais ou menos como o cinema. Ela está presa a problemas de programa, de capital. As partes resistem, mas… Os grandes cientistas também são uma grande resistência. Quando penso em Einstein, em muitos físicos, em muitos biólogos hoje, é claro que… Eles resistem antes de tudo ao treinamento e à opinião corrente, ou seja, a todo tipo de interrogação imbecil. Eles exigem seu… Eles têm realmente a força para exigir seu próprio ritmo. Não os faremos desistir de algo prematuramente, assim como não mudaremos um artista. Ninguém tem direito de mudar um artista. Mas acho que tudo isso, que a criação como resistência… Recentemente, li um autor que me chamou a atenção. Acho que um dos motivos da arte e do pensamento é uma certa vergonha de ser homem. Acho que o artista, o escritor, que falou mais profundamente sobre isso foi Primo Levi. Ele soube falar dessa vergonha de ser um homem num nível extremamente profundo, porque foi logo após sua volta dos campos de extermínio. Ele sobreviveu com… Ele disse: “Quando fui libertado, o que me dominava era a vergonha de ser um homem”. É uma frase ao mesmo tempo esplêndida e bela e… Não é abstrata, é muito concreta a vergonha de ser um homem. Mas ela não quer dizer… Associamos muita besteira. Não quer dizer que somos todos assassinos. Não quer dizer que somos todos culpados diante do nazismo. Primo Levi diz admiravelmente que isso não significa que carrascos e vítimas são iguais. Não nos farão acreditar nisso. Muitos dizem que todos somos culpados. Nada disso, não confundamos carrascos e vítimas. A vergonha de ser homem não significa que somos todos iguais, comprometidos etc. Acho que quer dizer muitas coisas. É um sentimento complexo e não unificado. A vergonha de ser um homem significa: como alguns homens puderam fazer isso, alguns homens que não eu, como puderam fazer isso? E, em segundo lugar, como eu compactuei? Não me tornei um carrasco, mas compactuei para sobreviver. E uma certa vergonha por ter sobrevivido no lugar de alguns amigos que não sobreviveram. É um sentimento muito complexo. Acho que, na base da arte, há essa idéia ou esse sentimento muito vivo, uma certa vergonha de ser homem que faz com que a arte consista em liberar a vida que o homem aprisionou. O homem não pára de aprisionar a vida, de matar a vida. A vergonha de ser homem… O artista é quem libera uma vida potente, uma vida mais do que pessoal. Não é a vida dele.
CP: Volto ao artista e à resistência. Quer dizer que essa vergonha de ser um homem… A arte liberta a vida dessa prisão, dessa prisão de vergonha. É muito diferente da sublimação. A arte não é… É realmente uma resistência.
GD: É uma liberação da vida, uma libertação da vida. E não são coisas abstratas. O que é um grande personagem de romance? Um grande personagem de romance não é tirado da realidade e exagerado. Charlus não é Montesquieu. Não é Montesquieu exagerado pela imaginação genial de Proust. São potências de vida fantásticas. Por pior que a coisa fique, um personagem de romance integrou em si… É uma espécie de gigante. É uma espécie de gigante, uma exageração da vida. Não é uma exageração da arte. A arte é a produção dessas exagerações. Só a sua existência já é uma resistência. Ou, como dizíamos, no nosso primeiro tema, na letra A, sempre escrevemos pelos animais, ou seja, no seu lugar. Os animais não escreveriam, porque não sabem escrever. Liberar a vida das prisões que o homem…. E isso é resistir. Isso é resistir, não sei. Vemos isso claramente no que fazem os artistas. Quer dizer, não há arte que não seja uma liberação de uma força de vida. Não há arte da morte.
CP: Às vezes, a arte não basta. Primo Levi se suicidou muito tempo depois.
GD: Ele se suicidou como pessoa. Ele não pôde agüentar. Ele suicidou sua vida pessoal. Há 4 páginas, 12 ou 100 páginas de Primo Levi, que sempre serão uma resistência eterna ao que aconteceu. Quando falo de vergonha de ser um homem, não é nem no sentido grandioso de Primo Levi. Se ousamos dizer algo assim… Para cada um de nós, na nossa vida cotidiana, há acontecimentos minúsculos que nos inspiram a vergonha de ser um homem. Assistimos a uma cena na qual alguém é vulgar demais. Não vamos fazer uma cena. Ficamos incomodados por ele. Ficamos incomodados por nós porque parecemos suportar. Assumimos uma espécie de compromisso. E se protestássemos dizendo: “O que você disse é ignóbil”, faríamos um drama. Estamos encurralados. Então, sentimos essa vergonha. Não se compara a Auschwitz, mas, mesmo nesse nível minúsculo, há uma pequena vergonha de ser um homem. Se não sentimos essa vergonha, não há razão para fazer arte. Não posso dizer mais do que isso.
CP: Mas, quando você cria, quando você é um artista, você sente esses perigos o tempo todo à sua volta? Há perigos por toda parte?
GD: Claro que sim. Na filosofia, também. É o que Nietzsche dizia. Uma filosofia que não prejudicasse a besteira seria… Prejudicar a besteira, resistir à besteira. E se não houvesse a filosofia? As pessoas agem como… Afinal, é bom para as conversas depois do jantar. Se não houvesse filosofia, não questionaríamos o nível da besteira. A filosofia impede que a besteira seja tão grande. Esse é seu esplendor. Não imaginamos como seria. Se não existissem as artes, a vulgaridade das pessoas seria… Quando dizemos… Criar é resistir efetivamente. O mundo não seria o que é sem a arte. As pessoas não agüentariam. Elas não estudaram filosofia, mas a simples existência da filosofia as impede de ser tão estúpidas e imbecis quanto seriam se ela não existisse.
CP: Quando se anuncia a morte do pensamento… Há quem anuncie a morte do pensamento, do cinema, da literatura. Você acha isso engraçado?
GD: Não há mortes, há assassinatos. É muito simples. Talvez assassinemos o cinema, isso é possível, mas não há morte natural. Por uma razão simples: enquanto algo não tiver e não assumir a função da filosofia, a filosofia terá razão de subsistir. Se outra coisa assumir a função da filosofia, não vejo por que essa outra coisa não seria filosofia. Se dissermos que a filosofia consiste em criar conceitos e prejudicar, impedir a imbecilidade, por que você quer que ela morra? Podemos impedi-la, censurá-la, assassiná-la, mas ela tem uma função. Ela não vai morrer. A morte da filosofia sempre me pareceu uma idéia imbecil, idiota. Não é que eu… Fico contente por ela não morrer. Nem entendo o que significa a morte da filosofia. Parece-me uma idéia um pouco débil, engraçadinha.
CP: Pueril.
GD: As coisas mudam, não há mais razão para… O que vai substituir a filosofia? O que vai criar conceitos? Podem dizer que não precisamos mais criar conceitos. E a besteira reinará. Tudo bem, os idiotas querem acabar com a filosofia. Quem vai criar conceitos? A informática? São os publicitários? Eles usam a palavra conceito. Tudo bem, teremos os conceitos publicitários, conceitos de uma marca de macarrão. Não será um grande rival para a filosofia. Acho que a palavra conceito não é usada da mesma maneira. Mas hoje é a publicidade que se apresenta como rival direto da filosofia porque eles dizem que são eles que inventam conceitos. Mas os conceitos da informática, dos computadores… O que eles chamam de conceito nos faz rir. Não devemos nos preocupar.
CP: Podemos dizer que você, Félix e Foucault formam redes de conceitos como redes de resistência, uma máquina de guerra contra um pensamento dominante e lugares-comuns.
GD: Sim, por que não? Seria bom se fosse verdade. Mas a rede é o único… Se não formarmos escolas, e as escolas não me parecem algo muito bom, só há o regime das redes, das cumplicidades. Claro, sempre foi assim em todas as épocas. O que chamamos de romantismo, por exemplo, o romantismo alemão ou em geral, é uma rede. O que chamamos de dadaísmo é uma rede. Tenho certeza de que há redes hoje em dia.
CP: Redes de resistência?
GD: Óbvio, a função da rede é resistir e criar.
CP: Você se sente célebre e clandestino? Você gosta dessa noção de clandestinidade.
GD: Gosto, mas não me sinto célebre. Não me sinto clandestino. Gostaria de ser imperceptível. Muita gente gostaria. Isso não significa que eu não o seja. Ser imperceptível é bom porque podemos… Mas essas são questões quase pessoais. O que eu quero é fazer meu trabalho, que não me perturbem e não me façam perder tempo. Ao mesmo tempo, ver pessoas. Sou como todo mundo. Gosto das pessoas, de um pequeno número de pessoas. Gosto de vê-las, mas, quando as vejo, não quero que seja um problema. Relações imperceptíveis com pessoas imperceptíveis é o que há de mais bonito no mundo. Todos nós somos moléculas. Uma molécula numa rede, uma rede molecular.
CP: Há uma estratégia da filosofia? Quando você escreve sobre Leibniz este ano, você escreve estrategicamente sobre Leibniz?
GD: Acho que depende do que “estratégia” quer dizer. Quer dizer que não escrevemos sem uma certa necessidade. Se quem escreve um livro não sente necessidade de escrevê-lo, é melhor não o fazer. Escrevi sobre Leibniz porque me era necessário. Por quê? Porque chegou o momento para mim. Demoraria demais explicar. Falar não de Leibniz, mas da dobra. A dobra, para mim, naquele momento, estava ligada a Leibniz. Eu poderia dizer de todos os meus livros qual foi a necessidade da época.
CP: Fora a necessidade que o leva a escrever, o retorno a um filósofo, à história da filosofia, após o livro sobre o cinema ou Mil platôs e O anti-Édipo…
GD: Não houve retorno a um filósofo. Minha resposta estava certa. Não escrevi sobre Leibniz. Não escrevi um livro sobre Leibniz porque, para mim, havia chegado o momento de estudar o que era uma dobra. Escrevo sobre a história da filosofia quando preciso, ou seja, quando encontro e sinto uma noção que já estava ligada a um filósofo. Quando me apaixonei pela noção de expressão, escrevi um livro sobre Spinoza porque ele foi um filósofo que elevou a noção de expressão a um ponto extremamente alto. Quando encontrei por conta própria a noção de dobra, me pareceu óbvio que seria através de Leibniz que… Também encontro noções que não são dedicadas a um filósofo… Então, não faço história da filosofia. Para mim, não há diferença entre escrever um livro de história da filosofia e escrever um livro de filosofia. É nesse sentido que digo que sigo o meu caminho.
S de Style [Estilo]
CP: S de Style [Estilo].
GD: Essa é boa.
CP: O que é o estilo? Em Diálogos, você diz que é a propriedade daqueles que não têm estilo. Disse isso sobre Balzac, se não me engano. O que é um estilo?
GD: Essa não é uma perguntinha à toa.
CP: Foi por isso que perguntei tão rápido.
GD: Eu acho o seguinte: para entender o que é um estilo, não se deve saber nada de linguística. A linguística causou muito mal. Por quê? Porque há uma oposição da qual Foucault falou muito bem. Há uma oposição entre a linguística e a literatura. Ao contrário do que dizem, elas não combinam. Para a linguística, uma língua é sempre um sistema em equilíbrio, portanto, da qual existe uma ciência. E o resto, as variações, vão para o lado da fala e não da língua. Quando se escreve, sabe-se que uma língua é, na verdade, um sistema que está longe do equilíbrio, é um sistema em perpétuo desequilíbrio. Tanto que não há diferença de nível entre língua e fala, mas a língua é feita de todo tipo de correntes heterogêneas em desequilíbrio umas com as outras. Mas o que é o estilo de um grande autor? Eu acho que existem duas coisas em um estilo. Vou responder clara e rapidamente, e tenho vergonha de ser tão breve! Um estilo é composto de duas coisas: a língua que falamos e escrevemos passa por um tratamento que é um tratamento artificial, voluntário. É um tratamento que mobiliza tudo: a vontade do autor, assim como seus desejos, suas necessidades, etc. A língua sofre um tratamento sintático original. Nisso encontramos novamente o tema do animal. Pode ser fazer a língua gaguejar. Não estou falando de você mesmo gaguejar, mas de fazer a língua gaguejar. Ou fazer a língua balbuciar, o que não é a mesma coisa. Vejamos exemplos de grandes estilistas: o poeta Ghérasim Luca. A grosso modo, ele faz gaguejar, não sua própria fala, mas a língua. Péguy! É engraçado, porque as pessoas acham que Péguy tem uma personalidade estranha, mas esquecem que, acima de tudo, como todo grande artista, é um louco total. Nunca ninguém escreveu, nem escreverá como Charles Péguy. Ele faz parte dos grandes estilistas da língua francesa, das grandes criações da língua francesa. O que ele faz? Não se pode dizer que seja um gaguejar. Ele faz a frase crescer pelo meio. É fantástico! Em vez de fazer frases que se seguem, ele repete a mesma frase com um acréscimo no meio dela, o qual, por sua vez, vai gerar outro acréscimo, etc. É um processo no qual ele faz a frase proliferar pelo meio através de inserções. Um grande estilo é isso. Este é o primeiro aspecto: fazer com que a língua passe por um tratamento, mas um tratamento incrível. É por isso que um grande estilista não é um conservador da sintaxe. É um criador de sintaxe. Eu mantenho a bela fórmula de Proust: “As obras-primas são sempre escritas em uma espécie de língua estrangeira”. Um estilista é alguém que cria em seu idioma uma língua estrangeira. Isso vale para Céline, para Péguy. É assim que se reconhece um estilista. Ao mesmo tempo que, sob o primeiro aspecto, a sintaxe passa por um tratamento deformador, contorcionista, mas necessário, que faz com que a língua na qual se escreve se torne uma língua estrangeira, sob o segundo aspecto, faz-se com que se leve toda a linguagem até um tipo de limite. É o limite que a separa da música. Produz-se uma espécie de música. Quando se conseguem essas duas coisas e se há necessidade para tal, é um estilo. Os grandes estilistas fazem isso. É verdade para todos: cavar uma língua estrangeira na própria língua e levar toda a linguagem a uma espécie de limite musical. Ter um estilo é isso.
CP: E você acha que tem um estilo?
GD: Que perfídia!
CP: Mas seu estilo mudou desde o seu primeiro livro.
GD: A prova de um estilo é a variabilidade. E, em geral, vai se tornando cada vez mais sóbrio. Mas isso não quer dizer menos complexo. Penso em um dos autores que muito admiro do ponto de vista estilístico: Jack Kerouac. No final, Kerouac é uma linha japonesa. Seu estilo é um desenho japonês, uma pura linha japonesa. Tornar-se mais sóbrio, mas isso sempre implica a criação de uma língua estrangeira na própria língua. Eu também penso em Céline. As pessoas costumavam dizer que Céline introduziu a língua falada na escrita. É uma besteira, pois, na verdade, há um tratamento escrito na língua, é preciso criar uma língua estrangeira na própria língua para se obter por escrito a equivalência da língua falada. Ele não introduziu o falar na escrita. Mas quando o elogiam por isso, ele sabe muito bem que está muito longe do que ele queria. E vai ser no segundo romance, em Mort à crédit, que ele vai se aproximar mais. Quando Mort à credit foi publicado, disseram que ele havia mudado. E ele sabe novamente que está longe do que quer. Ele vai obter o que quer em Guignol’s bande, no qual ele realmente leva a linguagem a um limite tal que a aproxima da música. Não é mais o tratamento da língua que a torna estrangeira, mas o fato de toda a linguagem ser levada a um limite musical. Por natureza, um estilo muda, ele tem variações.
CP: É verdade que se pensa muito em Steve Reich, com sua música repetitiva, quando se lê Péguy.
GD: Sim, só que Péguy tem mais estilo do que Steve Reich.
CP: Não respondeu à minha perfídia. Você acha que tem estilo?
GD: Eu gostaria de ter. O que posso dizer? Para ser um estilista, dizem que é preciso viver o problema do estilo. Se é assim, para responder com mais modéstia, eu vivo o problema do estilo. Nunca escrevo sem pensar no estilo. Sei que eu não obteria o movimento dos conceitos que eu desejo sem passar pelo estilo. Sou capaz de refazer dez vezes a mesma página.
CP: O estilo é como uma necessidade de composição do que você escreve. A composição entra em jogo de forma primordial.
GD: Acho que tem toda razão. O que está dizendo: será que a composição de um livro já é uma questão de estilo? Acho que é sim. A composição de um livro é algo que não se resolve previamente. Ela acontece ao mesmo tempo em que o livro é escrito. Por exemplo, vejo em livros que eu escrevi, se me permite citar o que eu fiz… Há dois livros meus que me parecem compostos. Sempre dei importância à composição. Penso em um livro chamado Lógica do sentido que é composto por séries. Para mim, é uma composição serial. E Mil platôs é uma composição por platôs. Para mim, são duas composições musicais, sim. A composição é um elemento fundamental do estilo.
CP: Em sua expressão, você acha que, hoje, está mais próximo do que queria fazer há vinte anos atrás? Ou não é nada disso?
GD: Atualmente, tenho a impressão de estar me aproximando, sim. No que ainda não foi feito, acho que estou me aproximando. Detenho algo que eu buscava e não tinha encontrado.
CP: O estilo não é só literário. É sensível a ele em todas as outras áreas. Você vive com a elegante Fanny e seu amigo Jean-Pierre também é muito elegante. É muito sensível a esta elegância?
GD: Sim, eu me sinto… Eu gostaria de ser muito elegante, mas sei que não sou. Mas, para mim, a elegância é uma coisa… Quero dizer que existe uma elegância que consiste em se perceber o que é uma elegância. Do contrário, há pessoas que não entendem nada e o que chamam de elegância não é nada elegante. Uma certa compreensão da elegância já faz parte da elegância. Isso me impressiona muito. É uma área que, como todas as outras, exige um certo aprendizado, um certo talento… Mas por que perguntou isso?
CP: Por causa do estilo.
GD: Sim, claro. Mas este aspecto não é nada valioso. O que talvez se deveria…
CP: Deveria?
GD: Não sei. Acho que não depende apenas da elegância, que é uma coisa que admiro muito, mas o importante no mundo é tudo o que emite signos. A não-elegância e a vulgaridade também emitem signos. É muito mais isso que me importa. São as emissões de signos. É certamente por isso que gostei tanto e ainda gosto de Proust. O mundanismo, as relações mundanas são emissões de signos fantásticas. O que chamam de gafe é uma não-compreensão de um signo. São signos que as pessoas não entendem. A mundanidade como um meio fértil de signos vazios, absolutamente vazios, sem interesse algum, mas são as velocidades, a natureza das emissões. Isso tem a ver com o mundo animal, pois ele também é um emissor de signos fantásticos. Os animais e os mundanos são mestres em signos.
CP: Você não sai muito, mas sempre preferiu noites mundanas a conversas entre amigos.
GD: Sim, porque nos meios mundanos, não se discute, não há esta vulgaridade. E a conversa é totalmente supérflua, leve, com evocações extremamente rápidas. São emissões de signos muito interessantes.
T de Tênis
CP: T de Tênis.
GD: Tênis!
CP: Você sempre gostou de tênis. Há uma famosa história em que você, criança, foi pegar um autógrafo de um grande jogador sueco e viu que pegou o autógrafo do rei da Suécia.
GD: Mas eu já sabia que era ele! Ele já era centenário. Tinha um monte de seguranças. Eu fui pedir um autógrafo ao rei da Suécia. O jornal Le Figaro tinha me fotografado. Havia uma foto onde um menino pedia um autógrafo ao velho rei da Suécia. Era eu.
CP: E quem era o grande jogador sueco?
GD: Era Borotra. Não era um grande jogador sueco. Era o guarda-costas do rei, que jogava tênis com ele e o treinava. Ele me chutava para eu não me aproximar do rei. Mas o rei foi muito bonzinho. Borotra também ficou bonzinho. Não é um momento brilhante na vida de Borotra.
CP: Houve outros ainda piores de Borotra. É o único esporte que assiste na TV?
GD: Não, eu adorava futebol também. O que mais? Acho que é só: tênis e futebol.
CP: Você jogou tênis?
GD: Sim, muito. Até a guerra. Sou uma vítima da guerra.
CP: O que muda em seu corpo quando pratica tênis e depois deixa de praticar? Muda alguma coisa?
GD: Não sei, acho que não. Para mim, não mudou nada, Não era um profissional. Eu tinha 14 anos em 1939. Eu parei de jogar tênis aos 14 anos e não foi um drama.
CP: Você foi uma revelação?
GD: Até que eu jogava bem para a minha idade. Só fazia isso.
CP: Estava classificado?
GD: Não, só tinha 14 anos. Além do mais, não havia o desenvolvimento que há hoje.
CP: Praticou outro esporte, o boxe francês, não?
GD: Lutei um pouco de boxe, mas me machucaram e parei logo. Mas fiz um pouco.
CP: Acha que o tênis mudou muito desde sua juventude?
GD: Todos os esportes! São meios de variações. E voltamos ao problema do estilo. O esporte é muito interessante porque está ligado às atitudes do corpo. Há uma variação das atitudes do corpo, as quais se estendem ao longo de períodos de tempo relativamente prolongados. É claro que não se pulam arbustos hoje como se pulavam há 50 anos. Arbustos ou outra coisa… É preciso classificar as variáveis na história dos esportes, pois há variáveis de tática. No futebol, as táticas mudaram muito desde a minha infância. Há variáveis de atitude, de posturas de corpo. Há variáveis que geram implicações. Houve uma época em que me interessei por lançamento de peso. Não para praticá-lo, mas porque os gabaritos dos lançadores de peso evoluíram rapidamente. Tratava-se de força, mas como recuperar velocidade com lançadores muito fortes? Tratava-se também de gabaritos rápidos, mas, usando a velocidade como primeiro elemento, como recuperar a força? É muito interessante. O sociólogo Mauss havia lançado um estudo sobre as atitudes do corpo nas civilizações. O esporte é uma área fundamental das variações das atitudes. No tênis, antes da guerra, — eu me lembro bem dos campeões da época —, as atitudes eram muito diferentes. O que me interessava muito — e voltamos à questão do estilo — eram os campeões que são realmente criadores. Há dois tipos de campeões que não têm o mesmo valor para mim: os criadores e os não-criadores. Os não-criadores são aqueles que usam um estilo já existente como uma força inigualável, como Lendl, por exemplo, que não é criador em tênis. E os grandes criadores. Esses são os que inventam novas jogadas e introduzem novas táticas. E nisso tudo, há uma série de seguidores. Os grandes estilistas são os inventores. Eles também existem nos esportes. Qual foi a grande virada do tênis? Foi a sua proletarização, mas com a devida relatividade. Tornou-se um esporte popular… Mais para jovens executivos do que proletários, mas, mesmo assim, vou falar em proletarização do tênis. Havia movimentos profundos que justificavam o ocorrido, mas isso não teria acontecido sem a existência de um gênio. Borg foi o responsável. Por quê? Porque trouxe o estilo de um tênis popular. Foi preciso que ele o criasse. Depois, outros campeões o seguiram, mas não eram criadores, como Vilas, etc. Mas Borg me convém perfeitamente, por causa de sua cara de Cristo. Ela tinha aquela expressão crística, aquela extrema dignidade, o fato de ser respeitado por todos os jogadores.
CP: Você estava dizendo: “Eu assisti…”.
GD: Sim, eu assisti muita coisa em tênis, mas quero fechar sobre o Borg. Borg é um personagem crístico. Garante o esporte popular, cria o tênis popular. Isso implica na total invenção de um novo jogo. Há uma série de campeões de valor como Vilas, mas que vieram impor um jogo soporífico. Mas sempre voltamos àquela lei: “Vocês estão me elogiando e estou a cem léguas do que queria fazer”. Pois Borg muda. Quando sente que deu certo, ele muda, não o interessa mais e ele evolui. O estilo de Borg evoluiu, enquanto que os “burocratas” mantinham a mesma coisa. O anti-Borg era o McEnroe.
CP: Qual era o estilo proletário de Borg?
GD: Um estilo de fundo de área, recuo total, e o liftage… e a proximidade da rede. Qualquer proletário ou executivo menor pode entender este jogo. Mas não disse que poderia jogar assim. O princípio do jogo de Borg é o contrário dos princípios aristocráticos. São princípios populares, só que faltava um gênio para revelá-los. Borg é exatamente como Jesus Cristo. É um aristocrata que se dirige ao povo. Estou dizendo besteiras… Borg foi impressionante. Muito curioso. Um grande criador no esporte. E havia McEnroe, que era um aristocrata puro, um aristocrata meio egípcio, meio russo. Saque egípcio, alma russa. Inventava jogadas que ele sabia que ninguém poderia fazer igual. De fato, ele inventava jogadas prodigiosas. Ele inventou uma que é colocar a bola. Não bate nela, só a coloca. Ele fez uma série de saques-cortadas que eram conhecidos, mas os de McEnroe foram renovados por completo. Poderia falar de muitos outros. Mas há outro grande, mas que não tem a mesma importância. É outro americano, esqueci o nome dele.
CP: Connors.
GD: Sim, nele vemos o princípio aristocrático da bola sem efeito e dando uma rasante na rede. Este é um princípio aristocrático. E o toque de raquete em desequilíbrio. Nunca ninguém teve tanto gênio quanto ele em desequilíbrio. São jogadas muito curiosas. Há uma história dos esportes, mas isso vale para todos. É exatamente como na Arte. Existem os criadores, os seguidores, as mudanças, as evoluções, a história e há o devir do esporte.
CP: Você começou dizendo “Eu assisti…”.
GD: É mais um detalhe. Às vezes é difícil determinar a origem de uma jogada. Antes da guerra, havia os australianos. Aí, existem questões de nações. Porque foram os australianos que trouxeram a rebatida cruzada com duas mãos. No início, só os australianos o faziam, pelo que me lembro. É uma invenção australiana. Por que os australianos? Não sei, mas deve ter um motivo. Mas eu me lembro de uma jogada que tinha me impressionado quando menino porque não tinha efeito nenhum. Víamos que o adversário geralmente errava e pensávamos: “Por quê?”. Era uma jogada sem graça. Mas, pensando bem, percebíamos que era na rebatida. O adversário sacava e o jogador rebatia a bola. Ele rebatia com pouca força, mas tinha a propriedade de cair exatamente na ponta dos dedos do pé daquele que sacou e que recebia a bola de volta. Ele não conseguia pegá-la. Era uma jogada estranha. Nós pensávamos: “Mas o que é isso?”. Não entendíamos bem por que era uma jogada tão bem-sucedida e impressionante. Acho que o primeiro a ter sistematizado esta jogada foi um grande jogador australiano que se chamava Brownwich. Ele devia ser do pós-guerra. Não me lembro bem. Foi um grande jogador e um criador de jogadas. Quando rapaz, eu me lembro bem disso, era impressionante. Hoje, é uma jogada clássica, todos fazem isso. Mas é o caso de uma invenção de jogada; a geração de Borotra não conhecia este tipo de rebatida.
CP: Para fechar o assunto, quando McEnroe reclama e insulta o juiz, aliás, ele xinga a si próprio mais do que ao juiz, é uma questão de estilo porque não gostou de sua expressão?
GD: Não, é uma questão de estilo porque faz parte do estilo dele. É uma descarga nervosa. Como um orador pode ficar furioso, mas há oradores glaciais. Sim, faz parte do estilo. É a alma. Como se diria em alemão, é a Gemüt.
CP: Agora, U de Uno.
GD: Uno!
U de Uno
CP: U, V, W, X, Y, Z. É o fim e vamos ser rápidos. U de Uno; V de Viagem; W de Wittgenstein, X, o Desconhecido, Y vamos deixar para os neo-platonicianos e Z fecha e ilumina. U é Uno.
GD: Uno.
CP: Sim, Uno. A Filosofia ou a Ciência cuidam do universal. No entanto, você diz que a Filosofia deve manter contato com as singularidades. Existe um paradoxo?
GD: Não há paradoxo, porque a Filosofia, e até mesmo a Ciência, não tem nada a ver com o universal. São idéias preconcebidas de opiniões. A opinião sobre a Filosofia é que ela cuida do universal. E a opinião sobre a Ciência é que ela cuida de fenômenos universais que podem se repetir. Mesmo se pegar a fórmula de que todo corpo cai, o importante não é que todos os corpos caem e, sim, a queda e as singularidades da queda. Que as singularidades científicas como as da matemática, da física ou da química, como ponto de congelamento, sejam reproduzíveis, tudo bem, mas e daí? São fenômenos secundários, processos de universalização. Mas a Ciência não cuida de universais, mas de singularidades. Quando é que um corpo muda de estado e passa do líquido para o sólido, etc.? A Filosofia não cuida do Uno, do ser, nada disso.Tudo isso é besteira! Também ela cuida de singularidades. Seria preciso perguntar o que são as multiplicidades. As multiplicidades são conjuntos de singularidades. A fórmula da multiplicidade é “n menos 1”. Ou seja, o 1 é sempre o que deve ser subtraído. Acho que há dois erros que não devem ser cometidos. A Filosofia não cuida de universais. Há três universais. Poderíamos relacioná-los. Há os universais de contemplação, as Idéias, com um I maiúsculo. Há os universais de reflexão e os universais de comunicação. É o último refúgio da Filosofia dos universais. Habermas gosta muito dos universais de comunicação. Isso implica definir a Filosofia como contemplação, como reflexão ou como comunicação. Os três casos são cômicos. É uma palhaçada. O filósofo que contempla, tudo bem, é muito engraçado. O filósofo que reflete não é engraçado. É pior, porque ninguém precisa de um filósofo para refletir. Os matemáticos não precisam de um filósofo para refletir, um artista não precisa procurar um filósofo para refletir sobre a pintura ou a música. Boulez não precisa dele para refletir sobre música. Dizer que a Filosofia é uma reflexão segura é desprezar a Filosofia e o motivo de sua reflexão. Não precisa de Filosofia para refletir. Quanto à comunicação, nem se fala! A idéia de que a Filosofia seja um consenso para comunicar a partir dos universais da comunicação é a idéia mais divertida que já vi. A Filosofia não tem nada a ver com comunicação. A comunicação se basta. É uma questão de opinião e de consenso de opinião. É a arte das interrogações. A Filosofia não tem nada a ver. Como já disse, a Filosofia cria conceitos. Não é comunicar. A Arte não é comunicativa, não é reflexiva, nem a Ciência, nem a Filosofia. Não é contemplativa, nem reflexiva, nem comunicativa. É criativa. Nada mais. A fórmula é “n menos 1”, eliminar a unidade, eliminar o universal.
CP: Então, os universais não têm nada a ver com Filosofia?
GD: Não, nada a ver.
V de Viagem
CP: Vamos à letra V. V de Viagem. É a demonstração de que um conceito é um paradoxo, porque você inventou um conceito que é o nomadismo, mas você odeia viajar. A esta altura da nossa entrevista, podemos dizer que você odeia as viagens. Por que as odeia?
GD: Não odeio as viagens, odeio as condições em que um pobre intelectual viaja. Talvez se eu viajasse de outra maneira, eu adorasse viagens. Mas entre os intelectuais, o que quer dizer viajar? É fazer uma conferência do outro lado do mundo com tudo o que implica antes e depois: falar antes com pessoas que o recebem, falar depois com pessoas que o ouviram. Falar, falar… A viagem de um intelectual é o contrário da viagem. Ir para o outro lado do mundo para falar o que poderia falar em casa e para ver gente antes e depois de falar. É uma viagem monstruosa. Assim, é verdade que não tenho simpatia por viagens. Isso não é um princípio. Não pretendo ter razão, mas eu fico pensando: “O que existe na viagem?”. Há sempre um lado de falsa ruptura. Este é o primeiro aspecto. O que torna a viagem antipática para mim? Primeiro é o fato de ser uma ruptura barata. Eu sinto exatamente o que dizia Fitzgerald: “Não basta uma viagem para haver uma ruptura”. Se querem ruptura, faça outra coisa que não seja viajar. As pessoas que viajam muito têm orgulho disso e dizem que vão em busca de um pai. Há grandes repórteres que fazem livros sobre isso. Foram ao Vietnã, Afeganistão, etc. e dizem friamente que sempre estiveram em busca de um pai. A viagem me parece muito edipiana neste sentido. Não, assim não dá. A segunda razão é… Há uma frase maravilhosa que me toca muito, de Beckett, que faz um de seus personagens dizer o seguinte: “Somos idiotas, mas não ao ponto de viajar por prazer”. Esta frase me parece totalmente satisfatória. Sou idiota, mas não ao ponto de viajar por prazer. Isso não. E o terceiro aspecto da viagem… Você falou em nômade. Sim, os nômades sempre me fascinaram, exatamente porque são pessoas que não viajam. Quem viaja são os imigrantes. Há pessoas obrigadas a viajar: os exilados, os imigrantes. Mas estas são viagens das quais não se deve rir, pois são viagens sagradas, são forçadas. Mas os nômades viajam pouco. Ao pé da letra, os nômades ficam imóveis. Todos os especialistas concordam: eles não querem sair, eles se apegam à terra. Mas a terra deles vira deserto e eles se apegam a ele, só podem “nomadizar” em suas terras. É de tanto querer ficar em suas terras que eles “nomadizam”. Portanto, podemos dizer que nada é mais imóvel e viaja menos do que um nômade. Eles são nômades porque não querem partir. É por isso que são tão perseguidos. E, finalmente, o último aspecto da viagem… Há uma bela frase de Proust que pergunta o que fazemos quando viajamos. Sempre verificamos algo. Verificamos se aquela cor com que sonhamos está ali. Mas ele acrescenta algo muito importante: “Um mau sonhador é aquele que não vai ver se a cor com a qual sonhou está lá. Mas um bom sonhador vai verificar, ver se a cor está lá”. Esta é uma boa concepção da viagem. Do contrário…
CP: Acha que é uma regressão fantástica?
GD: Não, há viagens que são verdadeiras rupturas. Por exemplo, a vida de Le Clézio me parece uma coisa onde se opera uma ruptura.
CP: Lawrence?
GD: Sim, Lawrence. Há muitos grandes escritores pelos quais tenho grande admiração e que têm um sentido da viagem. Stevenson. As viagens de Stevenson são enormes. Eu digo por minha conta que quem não gosta de viagens é por estes quatro motivos.
CP: Seu ódio por viagens está ligado à sua lentidão natural?
GD: Não, porque pode haver viagens lentas. Não preciso sair. Todas as intensidades que tenho são imóveis. As intensidades se distribuem no espaço ou em outros sistemas que não precisam ser espaços externos. Garanto que, quando leio um livro que acho bonito, ou quando ouço uma música que acho bonita, tenho a sensação de passar por emoções que nenhuma viagem me permitiu conhecer. Por que iria buscar estas emoções em um sistema que não me convém quando posso obtê-las em um sistema imóvel, como a música ou a filosofia? Há uma geo-música, uma geo-filosofia. São países profundos. São os meus países.
CP: Terras estrangeiras?
GD: Minhas terras estrangeiras que não encontro em viagens.
GD: Você é a perfeita ilustração de que o movimento não é locomoção, mas já esteve no Líbano, para conferências, no Canadá, nos Estados Unidos…
GD: Sim, estive lá, mas eu sempre fui levado. Hoje, não faço mais isso. Não deveria ter feito isso. Já fiz demais. Eu gostava de andar naquela época. Hoje, ando menos bem. Então, nem entra em questão. Gostava de andar. Eu fazia caminhadas da manhã à noite, sem saber para onde ia. Andava por uma cidade a pé, mas isso acabou.
W de Wittgenstein
CP: Vamos ao W.
GD: Não tem nada em W.
CP: Tem sim: Wittgenstein. Sei que não é nada para você…
GD: Não quero falar disso. Para mim, é uma catástrofe filosófica. É uma regressão em massa de toda a filosofia. O caso Wittgenstein é muito triste. Eles criaram um sistema de terror, no qual, sob o pretexto de fazer alguma coisa nova, instauraram a pobreza em toda a sua grandeza. Não há palavras para descrever este perigo. E é um perigo que volta. É grave, pois os wittgensteinianos são maus, eles quebram tudo! Se eles vencerem, haverá um assassinato da filosofia. São assassinos da filosofia.
CP: É grave, então?
GD: Sim, é preciso ter muito cuidado!
X de Desconhecido
CP: X é Desconhecido.
Y de Indizível
CP: Y é Indizível.
Então, passamos direto para a última letra do alfabeto, a letra Z.
GD: Que bom!
Z de Ziguezague
CP: Não é o Z de Zorro, o justiceiro, como já vimos através deste alfabeto, mas o Z da bifurcação, do raio. O Z que existe no nome dos grandes filósofos: Zen, Zaratustra, Leibniz, Spinoza, Nietzsche, “Bergzon” e, é claro, Deleuze.
GD: Você foi muito espirituosa com “Bergzon” e muito boazinha comigo. Z é uma letra formidável, que nos faz voltar ao A. O ZZZZ da mosca, o ziguezague da mosca. O Z é o ziguezague. É a última palavra. Não há palavras depois de ziguezague. É bom terminar em cima disso. O que acontece com o Z? O Zen é o inverso de nez [nariz], que também é um ziguezague. É o movimento… a mosca… O que é isso? Talvez seja o movimento elementar, o movimento que presidiu a criação do mundo. Neste momento, estou lendo sobre o Big-Bang, a criação do universo, a curvatura infinita, como tudo se fez… A base de tudo não é o Big-Bang, mas o Z.
CP: Você falava do Z da mosca, do Big-Bang, a bifurcação…
GD: O Big-Bang deveria ser substituído pelo Z, que é o Zen, que é o trajeto da mosca. O que significa isso? Para mim, o ziguezague lembra o que dizíamos sobre universais e singularidades. A questão é como relacionar as singularidades díspares ou relacionar os potenciais. Em termos físicos, podemos imaginar um caos, cheio de potenciais, mas como relacioná-los? Não sei mais em que disciplina científica, mas li um termo de que gostei muito e tirei partido em um livro. Ele explicava que, entre dois potenciais, havia um fenômeno que ele definia pela idéia de um precursor sombrio. O precursor era o que relacionava os potenciais diferentes. E uma vez que o trajeto do precursor sombrio estava feito, os dois potenciais ficavam em estado de reação e, entre os dois, fulgurava o evento visível: o raio! Havia o precursor sombrio e o raio. Foi assim que nasceu o mundo. Sempre há um precursor sombrio que ninguém vê e o raio que ilumina. O mundo é isso. Ou o pensamento e a filosofia deveriam ser isso. E o grande Z é isso. A sabedoria do Zen também. O sábio é o precursor sombrio e as pauladas – já que o mestre Zen vive dando pauladas – constituem o raio que ilumina as coisas. Assim, chegamos ao fim…
CP: Gosta de ter um Z em seu nome?
GD: Adoro! Pronto.
CP: Fim.
GD: Que alegria ter feito este… Pronto! Póstumo, póstumo!
CP: PóZtumo!
GD: Obrigado pela gentileza de todos.
Notas
1. O Abecedário de Gilles Deleuze é uma realização de Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. No Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da Educação. Tradução e Legendas: Raccord [com modificações].
2. A série de entrevistas, feita por Claire Parnet, foi filmada nos anos 1988-1989. Como diz Deleuze, em sua primeira intervenção, o acordo era de que o filme só seria apresentado após sua morte. O filme acabou sendo apresentado, entretanto, com o assentimento de Deleuze, entre novembro de 1994 e maio de 1995, no canal (franco-alemão) de TV Arte. Deleuze morreu em 4 de novembro de 1995. A primeira intervenção de Claire Parnet foi feita na ocasião da apresentação (1994-1995), enquanto a primeira intervenção de Deleuze é da época da filmagem (1988-1989).
Fonte: Machine Deleuze
Sem comentários:
Enviar um comentário