domingo, 16 de abril de 2023

Boaventura: Em nome dos nossos valores, não!


Sobre o Me Too fui expondo esperanças num movimento emancipatório e receios pelos riscos para o direito à defesa e à presunção de inocência. “A vítima tem sempre razão” é um argumento que nunca me conquistou porque não pode conquistar quem acredite no Estado de Direito. O estatuto de vítima não é prévio. Uma portuguesa, uma belga e uma norte-americana, que têm em comum a passagem pelo CES de Coimbra, publicaram um artigo em que, não identificando a instituição ou os alegados assediadores, tornaram facílimo lá chegar. Levantam-se dúvidas quanto ao “anonimato frágil” que permitiu identificar sem consequências, à mistura de casos vividos pelas próprias com a reprodução de “rede de murmúrios”, a pouca clareza da natureza dos vários assédios e abusos ou tudo isto ser feito a coberto de um artigo académico. Mas é impossível ignorar. 
A Academia é um espaço propenso ao abuso de poder. Por ser fortemente hierarquizada, pelo domínio intelectual e funcional do “mestre”, pela crescente precariedade e porque a fratura geracional e de poder tende a coincidir com a de género. O CES já anunciou uma comissão independente. Sabem que os efeitos de uma reação menos do que exemplar não serão os que se sentiram perante o comportamento vergonhoso da FDUL. A cultura é outra, é outra a exigência e serão outras as consequências. A inclinação política do Boaventura Sousa Santos e do CES tornou este episódio interessante, mesmo para os que têm mostrado desprezo pelo Me Too. É inevitável. Também somos julgados pela incoerência. É um dos elementos centrais do artigo: “o fosso entre a teoria e a prática”. Mas só escrevo sobre o tema por causa da utilização que BBS fez, na resposta ao DN, das suas convicções políticas para se defender de acusações que não são políticas. Não resiste a desacreditar uma das autoras. Socorrendo-me da sua linguagem, sabe bem a "linha abissal" que o separa daquela que, como subalterna, chama “insolente”. 
Depois, tenta puxar a esquerda para o seu lado: “O objetivo é lançar lama sobre quem se distingue e luta por um mundo melhor. O neoliberalismo está a roubar a alma da solidariedade e da coesão social e criar subjetividades que canalizam os seus ressentimentos para acusações de que sabem não poder haver contraditório eficaz.” Apesar das suspeitas sobre ele parecerem mais generalizadas do que este artigo, BSS é tão inocente como qualquer outro e assim tenho tratado todos os casos (incluindo os padres suspeitos de abusos, que apenas têm de ser suspensos por causa da idade das suas potenciais vítimas). Já vi alguns inocentes serem crucificados e, no fim, ninguém lhes pedir desculpa. 
Mas a defesa de Boaventura é de Boaventura. Só sua. Se usa as causas da esquerda e o neoliberalismo para se defender de uma acusação de abuso, faz dos que estão nestes combates seus reféns. E aí, desculpem-me, tenho de dizer: em nosso nome, não! Pelo menos não em meu nome. Até porque não há qualquer indício de uma motivação política para a acusação que lhe é feita. Se existe, é em sentido inverso: a vontade de construir um pensamento verdadeiramente “pós-abissal”.

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