domingo, 6 de fevereiro de 2022

“Se não mudarmos de comportamento não vai sequer haver futuro.” Grande entrevista a Jane Goodall

Amiga dos chimpanzés e militante da esperança, despediu-se da sua amada Gombe, na Tanzânia. Deixa para trás a descoberta de um mundo novo para agarrar-se à missão de salvar o que ainda existe.


Fonte: Expresso, 5.2.22


O que se esperava era um ecrã escuro e a voz idosa de Jane Goodall do outro lado do computador para uma conversa virtual entre o Expresso e a amante dos chimpanzés. Mas Jane foi generosa e do escuro fez imagem. Surgiu então o rosto conhecido da mulher de 87 anos, o cabelo branco preso num rabo de cavalo baixo. Explicou que tinha pensado em não ligar a câmara porque lhe aparecera um rubor incómodo no rosto, mas, afinal, mudara de ideias. Que bom. Como cenário, a biblioteca da casa de família em Bournemouth, na costa sul da Inglaterra, onde vive com a família desde que a pandemia a impediu de viajar.

Por trás de Jane, as estantes cheias de livros com lombadas antigas, fotografias de outras eras, de uma mulher recostada numa cadeira de lona, com a vegetação típica de África ao fundo; de uma Jane adolescente com “Rusty”, o cão e companheiro. Foi ali que passou a infância, descobriu a felicidade de uma guerra terminada, ouviu os pássaros que já lhe não cantam à janela. Uma casa habitada, não um espaço concebido para ser visto por estranhos. E, apesar da distância digital, quase cheirava às rosas patológicas que florescem no inverno.

A conversa foi sobre o passado, sobre os amigos chimpanzés, para quem Jane Goodall conquistou um estatuto nunca antes reconhecido: o de utilizadores de artefactos. Uma pedrada no charco da tradição que remetia os animais para a escuridão da subalternidade. Jovem, loira e bonita, foi desacreditada e só conquistou credibilidade quando a “National Geographic” a enviou novamente para a Tanzânia, para o amado refúgio de Gombe, acompanhada por um fotógrafo que viria a se tornar o seu primeiro marido, e as imagens falaram por ela. A partir dali foi se tornando um mito, entrou para a universidade de Cambridge sem ter uma licenciatura, deu a volta ao mundo para falar dos animais e escreveu dezenas de livros. No último, “O Livro da Esperança”, lançado este mês em Portugal, defende a delicadeza como arma para convencer os mais reticentes em abraçar a causa ambiental. Na conversa com o Expresso fala ainda de “Roots & Shoots”, projeto que lançou em dezenas de países, inclusive Portugal, para educar os jovens.

Falou ainda do que acredita ser um erro do Papa, dos estragos causados por Bolsonaro, da zanga que Greta carrega no coração. E falou de “Leo”, o amigo Leonardo Di Caprio, que lhe pediu para ver o seu último filme. A mulher que viajava 300 dias por ano até ser travada por um vírus está de volta ao ponto de origem e diz que não quer ter na amada Gombe a sua última morada. Porque o mundo mudou, mesmo que ela seja a mesma.

Porque está preocupada em falar de esperança? Não deveria fazer alertas sobre a gravidade da situação?

Obviamente que temos de falar sobre os problemas, é muito importante, mas se apenas falarmos sobre o que está errado, as pessoas vão pensar que não há nada que possam fazer. E se você não tem alguma esperança, então porque se vai importar com o que quer que seja? Se não é para ajudar a resolver os problemas, porque se vai incomodar? Se não tiverem esperança, as pessoas não se sentem inspiradas a tomarem uma atitude de mudança. Mas é preciso saber como se define esperança. Para mim, é como se estivéssemos num túnel muito, muito escuro e, no fim, víssemos uma pequena estrela luminosa. Esta luz é a esperança. Mas não podemos ficar sentados no fundo do túnel, à espera que a luz venha ter connosco. Não, temos de endireitar os ombros e ir à luta. Dar a volta a todos os obstáculos, passar por cima de pedras, sejam a destruição do ambiente e da biodiversidade ou a existência de governos corruptos. Temos de lutar e lutar juntos.

A sua noção de esperança não é lírica nem estática. Não é um sonho, mas exige luta. Esperança é ação?

Sim! Esperança é ação. E nós não agimos em parceria. Ainda não temos as pessoas suficientes, preparadas para lutar. É verdade que em alguns lugares, a esperança parece ser algo absolutamente impossível. Não consigo deixar de pensar na situação das mulheres no Afeganistão.

Não tem qualquer esperança face a esta situação?

Não consigo lidar com o que se passa no Afeganistão. É algo que está muito para lá de nós mesmos. Continuamos a pensar apenas no que se passa na Europa e nos Estados Unidos, mas temos de pensar em África e na América Latina e no que poderia ser feito se as populações destes locais se unissem e agissem.

Ou seja, é fácil ter esperança na Europa e nos Estados Unidos, mas muito difícil se estivermos em locais como o Afeganistão ou em África?

O que se passa no Afeganistão está para lá do imaginável. Assumo que não sei lidar com aquela situação. Mas, em África, estamos a dar esperança a milhões de pessoas através, por exemplo, dos programas em que trabalhamos com as comunidades locais. Falamos com elas, colocando-lhes nas mãos a autoria do que é feito e, desta forma, conseguimos preservar a floresta e a vida animal selvagem. Porque as pessoas decidiram por elas mesmas ao perceberem que esta é a decisão correta para o seu próprio futuro e não apenas para a vida selvagem.

Em algumas destas geografias, como o Afeganistão ou alguns países africanos, a única esperança das populações é partir. Este é um tipo distinto de esperança, associada à perda.

Sim, suponho que para uma mulher no Afeganistão, a única forma de ter esperança é acreditar que conseguirá sair do país. Penso nos refugiados ambientais, pessoas que fogem de uma seca que torna impossível continuarem a viver da forma como viviam tradicionalmente. E sim, nestes casos, a esperança está em procurar outro país. Há vários tipos de esperança, mas, também, cada vez mais, há formas de ajudarmos estas pessoas a lidarem com a situação, resistirem, encontrarem novas maneiras de cultivar a terra. Temos de procurar caminhos novos para ultrapassar os obstáculos que surgem. E, entretanto, temos de continuar a tentar fazer os líderes e os governos mudarem as políticas de emissões de gases. Temos de provocar a mudança, forçar que aconteça. E as pessoas comuns, como eu e você, temos de continuar, diariamente, a pensar nas escolhas que fazemos, no que compramos, se o que adquirimos contribui para a destruição do ambiente ou se resulta de atitudes cruéis face aos animais.

Não há sinais positivos?

A boa notícia é que cada vez mais empresários estão a mudar. Há algumas semanas, falei com o presidente executivo de um grande grupo internacional e ele me contou que nos últimos oito anos tem trabalhado para garantir que as empresas dele são cada vez mais responsáveis do ponto de vista social e ambiental. E as explicações dele para esta mudança foram simples. A primeira é que percebeu que se continuar a usar os recursos naturais ao mesmo ritmo, será o fim, não só do seu negócio, como de todos. Além disso, disse que há uma cada vez maior pressão dos consumidores, que não querem continuar a comprar produtos muito baratos, feitos à custa da miséria dos trabalhadores. Mas, o que realmente desequilibrou a balança, segundo este empresário, foi quando a filha de oito anos chegou a casa e o confrontou: “Paizinho, disseram-me na escola que o que fazes está a destruir o ambiente! Não é correto porque este é o meu planeta.” Este tipo de comentários vai direto ao coração. É por isso que continuo a contar histórias.

Porque é tão importante contar histórias?

Vou lhe dar um exemplo. Há muitos anos, quando pela primeira vez percebi o que acontecia com os chimpanzés utilizados em pesquisas médicas, recém-chegada da pesquisa de campo e de lidar com os chimpanzés como se fossem indivíduos, forcei-me a ir pessoalmente ver o que lhes acontecia. Encontrei cinco jaulas, alguns dos chimpanzés viviam ali, sozinhos, há 20 anos. São animais muito sociáveis mas não tinham ninguém com quem interagir, com quem crescer. O único contacto que tinham era com pessoas vestidas de branco que surgiam para lhes injetar qualquer coisa no corpo. Recordo-me que no primeiro encontro que tive com responsáveis do NHS (National Health System, o Serviço Nacional de Saúde inglês) que lideravam aquele programa, mostrei-me completamente chocada. Estava em frente a um grupo de homens sentados à volta de uma mesa, à espera que eu falasse, e o primeiro pensamento que me veio à cabeça foi que qualquer pessoa minimamente dotada de compaixão sentiria o mesmo que eu estava a sentir. Eles estavam silenciosos e comecei a lhes contar sobre a forma como os chimpanzés se comportavam em Gombe [Tanzânia]. Eu tinha algumas fotografias comigo e mostrei-lhes e percebi que eles compreenderam o que eu estava a sentir. Não é que eles fossem cruéis, mas o que lhes faltava era conhecimento, perceção da realidade. Se você quer que alguém mude, não é boa ideia acusá-la, discutir, mas fazê-la ouvir o que tem a dizer, encontrar uma forma de lhe chegar ao coração. Só assim se vai provocar uma mudança real.

Discorda da atitude zangada de Greta Thunberg? A nova geração é ativa e está preocupada com o ambiente, mas não fala ao coração.

Eles estão zangados, mas não os culpo. Greta conseguiu promover uma enorme onda de indignação por todo o mundo. Nós precisamos daquele tipo de atitude, assim como também precisamos de tocar o coração das pessoas. A situação do planeta é tão preocupante que precisamos de todos os contributos. A minha maneira de falar é essa, indo ao coração. Não sou agressiva. E é a mensagem que procuramos passar no nosso programa “Roots & Shoots”, que também existe em Portugal. Ensinamos os jovens a contarem histórias, a não presumirem à partida que as pessoas são más. Essa é a forma que acreditamos para alterar os comportamentos e ultrapassar a barreira das incompreensões.


Considera-se realisticamente otimista ou já perdeu o otimismo quanto ao futuro do planeta?

Não perdi o meu otimismo porque há muitos jovens que acreditam no nosso projeto. Estamos com o “Roots & Shoots” em 68 países e o número de participantes continua a aumentar. Estamos a crescer na Índia e na Turquia, onde é muito importante estarmos presentes. Em todos os locais, os jovens, quando percebem a situação e recebem as ferramentas para se empoderarem, comprometem-se com grande paixão e agem. São pessoas cheias de energia, que passam a mensagens aos pais e aos avós. Eles não vão desistir. Como no exemplo da menininha que confrontou o pai empresário.

É um mundo diferente da sua juventude.

Sim, a juventude de hoje não pode evitar estar preocupada com a preservação do ambiente. Quando eu era criança e vivia nesta mesma casa, tínhamos neve no inverno. Atualmente temos rosas a florir em dezembro, é ridículo! Tudo mudou. Mais de metade dos pássaros que existiam na região desapareceram. Não estão extintos, mas saíram daqui.

“Temos de procurar caminhos novos para ultrapassar os obstáculos. E levar os governos a mudarem as políticas. Temos de provocar a mudança”

Ainda se recorda do som destes pássaros, sente falta deles?

Oh, sim! Eu costumava colocar um alarme para ouvir o coro do canto dos pássaros ao amanhecer, mas já não existe. Há menos tordos, corvos, pombos, pardais e estorninhos. Mas, no entanto, temos bonitas raposas, que não tínhamos antes.

Que se aproximam mais dos seres humanos do que no passado?

Sim.

O que viu nos olhos dos chimpanzés? Que conexão é possível estabelecer através do olhar?

Quando se olha dentro dos olhos dos chimpanzés, apenas sentimos que estamos a olhar para alguém que está interessado no seu interlocutor.

Há entendimento naquele olhar?

Sim. Há algumas criaturas em que não se sente isso. Provavelmente estará lá, mas não se sente tanto. É muito diferente. Olhar para dentro dos olhos de um elefante ou, segundo as descrições de quem já o fez, olhar para o olho de uma baleia, há uma conexão. Mas eu não sinto esta ligação no olhar de um lobo. Os lobos parecem olhar através de nós, mas vejo esta ligação no olhar dos cães.

Jane com o inseparável cão “Rusty”, numa fotografia tirada em Bournemouth no ano de 1954. No verso, lê-se “Jane and Rusty the Inseperables”

E o que pode ver nos olhos dos seres humanos? É muito diferente?

Depende de quem for o ser humano. Se for uma pessoa simpática, é praticamente o mesmo.

Viu nos olhos dos chimpanzés uma inocência perdida que já não se encontra no olhar humano?

Não há nenhuma inocência perdida. Os chimpanzés não são inocentes, eles fazem coisas más, embora não saibam que o estão a fazer.

É essa a diferença: nós sabemos que estamos a fazer o mal?

Sim, porque nos foi ensinado um código moral. O interessante é que — e isso ocorreu-me recentemente — nós ensinamos as crianças a terem compaixão, empatia, saberem o que é certo e o que é errado, mas se você cresce num ambiente difícil, como na sociedade dos talibãs, você acaba por acreditar naqueles valores, que é certo explodir um inocente com uma bomba e que esta atitude será recompensada no paraíso. A educação que se recebe nas idades mais precoces é tremendamente importante.

Quando Jane revelou ao mundo que os chimpanzés também utilizavam artefactos, o seu mentor disse que a partir daquele momento teríamos de rever a definição de ser humano, de artefacto, ou teríamos de aceitar que os chimpanzés eram humanos.

Foi Louis Leakey que disse isso. Quando, em 1961, fui para Cambridge estudar, foi-me dito que éramos diferentes de todos os animais. Que estávamos totalmente separados. Disseram-me que eu não podia falar na existência de uma personalidade nos chimpanzés ou que eles tinham emoções ou intelecto. Que estes aspetos eram exclusivos dos seres humanos. E eu já tinha a experiência do meu cão “Rusty” — cuja fotografia está atrás de mim —, de uma compreensão da relação que foi enfatizada pelos chimpanzés. Eu sabia que aqueles professores universitários estavam errados, mas na altura não os confrontei, mantive-me calma e confiante. E continuei a falar do que eu sabia ser verdade, e quando a “National Geographic” me enviou de volta a África e eu trouxe fotografias que começaram a circular, eles foram obrigados a acreditar em mim. Na altura foi muito gratificante. Aqueles professores foram obrigados a mudar de opinião. Mas não foi através da agressividade que isso aconteceu, porque não é pela culpa que tal se consegue. Algumas pessoas têm um ego tão grande que o melhor é fazê-las pensar que chegaram lá sozinhas. Reforça-lhes a autoestima.

É verdade que os chimpanzés não se despedem? Não dizem adeus?

Sim, eles apenas se afastam.

Eles não sabem o que é perder alguém?

Eles têm uma forma própria de comunicar e penso que eles não se sentem realmente separados. O conceito de distância é diferente para eles. Parece que têm um sentido de comunidade. Mas os mais jovens ficam muito angustiados quando perdem as suas mães.

Jane enquanto escrevia as suas notas de campo, na sua tenda em Gombe

Para eles a vida não tem passado nem futuro, é só aquele momento?

Eles recordam-se do passado, têm uma boa memória. Eles planeiam o futuro, planeiam caçadas, mas é um futuro imediato. Eles não apontam, mas olham nos olhos de outros chimpanzés e avisam-nos sobre um outro macaco que esteja nas redondezas. Com o movimento dos olhos. E tocam-se para que o outro olhe novamente naquela direção. E, depois, saem para caçar aquele macaco que foi avistado.

Eles reconhecem o poder do toque? É importante para eles? Há imagens célebres suas, em que surge abraçada a chimpanzés.

Sim!

Acredita que estes dois anos em que todos nós tivemos o toque condicionado pela pandemia vai mudar a nossa forma de ser?

Para algumas pessoas, sim. Eu estive sempre aqui, com a minha família, estou bem, mas houve quem estivesse sozinho, à sua própria sorte. É por isso que os cães e os gatos são tão importantes. Fazem toda a diferença em termos de companhia e é o toque que está em causa. Faz-nos sentir amados.

O que nos define como espécie é a capacidade de destruirmos a nossa própria casa? Será esse o nosso legado para o futuro?

Se não mudarmos o nosso comportamento não vai sequer haver futuro. As crianças daqui a 20 anos vão se perguntar sobre o mundo em que vivíamos, porque o planeta será tão diferente, estará tão danificado… Daí agirmos agora é tão importante. Temos de parar já com as empresas que exploram os combustíveis fósseis, as minas de carvão. Temos de impulsionar as energias renováveis. Por isso a juventude é tão importante, porque tem a crença do que deve ser feito. Quando as pessoas se aproximam de mim, completamente sem esperança, dizendo que estão deprimidas perante a confusão em que está o mundo e dizendo que não podem fazer nada para mudar a situação, é porque pensam globalmente e tentam agir localmente. Mas este raciocínio está errado, porque quem pensa em termos globais é natural que fique deprimido. Todos devem ficar deprimidos se pararem para pensar no que está a acontecer. O que eu lhes digo é que temos de nos unir, temos de promover ações que nos façam sentir bem, e que isso será inspirador, que conquistará outras pessoas para o mesmo objetivo.

“Proteger o ambiente não diz respeito à vida selvagem. É um erro de compreensão que envolveu a conservação do ambiente. Estamos é a proteger o nosso futuro”

Viu animais a destruírem o ambiente em que vivem?

Não, mas se os chimpanzés estiverem confinados numa área da floresta, mesmo que esta seja grande, e se novos chimpanzés começam a chegar, eles destroem o espaço em que estão, porque começam a fazer ninhos nas árvores, a partir os galhos, é uma questão de sobrevivência. Por isso é tão importante combater a pobreza entre os humanos, porque se é necessário lutar pela sobrevivência, as pessoas destroem a natureza em busca de comida ou para vender a madeira e fazer dinheiro. Se você for pobre e viver numa cidade, vai ter de comprar a comida mais barata que encontrar, sem pensar em como foi produzida, se danificou o ambiente. Quem vive na pobreza não tem capacidade financeira para comprar comida produzida de forma orgânica. O crescimento da população é outro problema.

Mas nos países mais desenvolvidos, a taxa de natalidade é muito baixa. Há poucas crianças.

Sim, esta é uma dimensão que tem de ser equilibrada, sobretudo quando há tantos órfãos a necessitar de famílias que os recebam.

O que achou dos comentários do Papa Francisco sobre os casais que preferem ter cães e gatos a terem crianças? Acha que é possível fazer uma escolha ou não é esta a questão?

O que ele disse exatamente?

De forma simples, disse que as pessoas que preferiam ter cães e gatos não procriam e são egoístas.

A única explicação para alguém tomar esta decisão é porque os jovens casais têm medo de trazer crianças a um mundo que está a ser destruí­do. Penso que o Papa está errado, não é uma questão de escolha, mas sim que as pessoas estão assustadas. Muitas pessoas me dizem isso. Se alguém gosta de crianças, deve adotar, mas para promover a adoção temos de simplificar as leis, que demoram muito.

Mas temos de escolher entre os animais e os humanos? Temos de escolher entre proteger os mais desfavorecidos e preservar o ambiente?

Não, temos de proteger o ambiente, melhorar a vida das pessoas, tirando-as da pobreza, mas sem destruir a floresta. Proteger o ambiente não diz respeito à vida selvagem, este é um erro de compreensão que envolveu a conservação do ambiente durante muito tempo. O que estamos a proteger é o nosso próprio futuro.

Numa entrevista ao “El País”, disse ser ridículo exigir os mesmos direitos para animais e humanos.

Se olhar para a Carta de Direitos Humanos verá o que quero dizer. É preciso entender o animal e o que este precisa para viver uma boa vida e a importância de os humanos serem responsáveis pela forma como tratam os animais. Por isso a educação é tão importante.

A proximidade entre chimpanzés e humanos a surpreendeu mais nos gestos de ternura ou na agressividade latente?

Fiquei encantada com os gestos e posturas de comunicação, o vínculo entre mães e famílias. Fascinada pelas grandes exibições feitas pelos machos enquanto competiam por domínio. Fiquei chocada com a violência intercomunitária, a guerra primitiva. Mas percebi que os tornava ainda mais parecidos connosco. Eles não se aproximam de nós com ternura e quando às vezes passam por nós e batem ou arrastam, não é com a intenção de prejudicar, mas para mostrar domínio. Somos muito mais agressivos com os chimpanzés do que eles connosco. Destruímos o seu habitat, caçamos e traficamos para entretenimento, como animais de estimação, nos zoológicos. É ilegal — e o Jane Goodall Institute cuida de chimpanzés resgatados em dois santuários, um na República do Congo e outro na África do Sul.

Está preocupada com a situação da floresta amazónica? Ainda pode ser salva, apesar dos danos causados pelo atual Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro?

O que eu penso é que temos de assassinar Bolsonaro, metaforicamente, claro! Há tantas pessoas preocupadas com a conservação da Amazónia que em algumas zonas a situação já apresenta melhorias, mas obviamente em outras a velocidade da destruição é terrível. Mais uma vez, a solução passa pela educação, por ensinar as pessoas a não consumirem produtos que para serem feitos destroem a floresta. Comer carne causa danos enormes!

E a Europa pode ter um papel relevante neste processo, se não importar produtos brasileiros.

É mesmo isso. É por isso que ensinamos as crianças dos nossos projetos a pensarem antes de consumir.

Viu o filme “Não Olhem Para Cima”?

Sim! Leo pediu-me para o ver. Ele está realmente preocupado com a conservação do ambiente. Está mesmo assustado.

Leonardo Di Caprio pediu-lhe para ver o filme?

Sim, ele disse: “Veja, por favor.”

O que achou? As reações foram muito diversas, há quem diga que a mensagem da preservação ambiental não passa.

Eu achei o filme muito bom. E a mensagem é que algumas pessoas em posições importantes da sociedade, pessoas com poder, não querem saber o que está a acontecer. O meteoro de que falam no filme que vai atingir e destruir a Terra é como as alterações climáticas. E as pessoas não querem ouvir as consequências.

O filme também mostra os milionários a procurarem uma alternativa de vida fora da Terra, mas, como se viu, não é esta a solução.

Claro que não é a solução. A única solução é que mais pessoas tomem as ações em prol da preservação do ambiente, que façam escolhas nas compras que fazem, nos governos que elegem. Depende muito dos governos no poder e esta tendência de crescimento da extrema direita é muito preocupante.

Os chimpanzés têm uma forma própria de comunicar e, segundo Jane Goodall, que conviveu diretamente com eles, partilham connosco um forte sentido de comunidade (Tanzânia, década de 60)

Do que sente mais falta da sua juventude?

Quando eu era jovem não tinha consciência de todas estas questões. As alterações climáticas não eram um problema. Estávamos a recuperar da II Guerra Mundial e sentíamo-nos felizes porque a guerra tinha acabado. Os animais estavam à nossa volta. Era tão diferente!

Havia mais esperança?

Sim, tínhamos mais esperança, mesmo num tempo difícil. Durante cerca de um ano, a Inglaterra foi praticamente o único país livre da Europa. Os outros ou estavam em guerra ou ocupados, como a França. O país não estava preparado para a guerra. Tínhamos alguns rapazes corajosos na Força Aérea, mas não tínhamos um Exército ou uma Marinha bem preparados. Nem tínhamos dinheiro para os preparar porque Chamberlain [Neville Chamberlain, primeiro-ministro da Inglaterra em 1940] acreditava que não entraríamos em guerra.

Mas tinham um líder, tinham Churchill.

Exatamente, este é o ponto. Ele motivava na população o sentimento de que não poderíamos ser derrotados. Como naquele célebre discurso em que disse que lutaríamos nas praias, nos campos e nas ruas e nunca nos renderíamos. Diz-se que ele teria sussurrado que até lutaríamos com garrafas de cerveja partidas, se fossem as únicas coisas que tivéssemos.

“Aparentemente, sou uma pessoa de alto risco, devido à minha extrema idade, e aos problemas pulmonares resultantes de uma bronquite. Não me querem deixar viajar”

É o mesmo que está a tentar fazer agora: motivar as pessoas a lutar pelo planeta?

Tento passar a mensagem de que é preciso um espírito de luta e de resistência. Não adianta ficarmos deprimidos, mas não podemos desistir.

Vai voltar a viajar?

Assim que me permitam. Aparentemente, sou uma pessoa de alto risco, devido à minha extrema idade, e aos problemas pulmonares resultantes de uma bronquite. Não me querem deixar viajar. Eu tinha uma viagem planeada para a Tanzânia este mês, mas já foi cancelada.

Ainda quer regressar a Gombe?

Não, porque Gombe mudou muito. Não é mais a Gombe que conheci, está muito diferente. Eu tive aquela maravilhosa relação com os chimpanzés e eu sei que hoje não lhes podemos dar bananas porque os podemos fazer adoecer. Antes era normal. Naquele tempo eu sabia tantos detalhes deles, acompanhava o crescimento dos mais novos, das suas personalidades. Foi um tempo maravilhoso e nunca mais será o mesmo. Agora há restrições, há turistas. Temos de usar máscara…

Em Portugal dizemos que nunca devemos regressar a um local onde fomos felizes.

Sim, eu costumava ir duas vezes por ano a Gombe, sobretudo para encorajar as pessoas, para lhes mostrar que é preciso proteger a floresta e o lago, mas hoje os chimpanzés estão cercados por turistas. Não quero regressar.

Vai então ficar em Bournemouth?

Não, vou viajar, promover o “Roots & Shoots” e incentivar as pessoas a agir. E mesmo que viaje menos, vou fazer estas reuniões virtuais para o mundo todo.

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