terça-feira, 29 de março de 2022

A atual política de regadio é contra o interesse público

Ao longo das últimas décadas a política de regadio tem gerado desigualdades territoriais e socioeconómicas inaceitáveis. Na resposta aos interesses fundiários, da finança e do grande agronegócio tem sido motor do extrativismo, promovendo sistemas de produção de lógica mineira e em total desrespeito pelas populações locais e gerações futuras. Artigo de Ricardo Vicente


Em Portugal, apenas 16% da Superfície Agrícola Utilizada (SAU) é irrigável (terras equipadas), representando o regadio potencial 626 mil hectares em todo o país segundo o recenseamento agrícola de 2019 (INE), pelo que a esmagadora maioria da área agrícola não é regada, estando portanto ocupada com culturas de sequeiro. Esta é uma realidade que não se pode alterar substancialmente, dada a crescente escassez de água e os elevadíssimos custos económicos e ambientais que tal transformação implicaria. Contudo, a expressão territorial do regadio já foi muito diferente, quer ao nível da sua extensão (em 1989 representava 22% da SAU) quer ao nível da sua distribuição geográfica. Entre 1989 e 2019, as regiões de Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes e Beira Litoral perderam cerca de 60% da área irrigável. A Beira Interior perdeu 50%, o Algarve 34% e o Ribatejo e Oeste 12%. Apenas o Alentejo subiu, com um aumento de 106%. O gráfico que se segue (fig.1) espelha esta realidade em números absolutos. Não se pode desprezar o facto destas reduções resultarem também do abandono da atividade agrícola e consequente redução da SAU, que aconteceu de forma muito heterogénea no país, no entanto, conforme se verifica na figura dois, os dados do INE demonstram que com a exceção do Alentejo, em todas as regiões, proporcionalmente, as áreas irrigadas diminuíram mais do que a totalidade da SAU. Ainda segundo o INE, no caso das regiões de Entre Douro e Minho e Trás-os-Montes, em termos absolutos, as áreas irrigáveis diminuíram muito mais do que a totalidade da SAU, o que demonstra, que pelo menos nestas regiões houve uma forte conversão do regadio para sequeiro.

Fig.1 – Superfície Irrigável (ha) por Região (Fonte: INE)

Fig.1 – Superfície Irrigável (ha) por Região (Fonte: INE)



Em termos globais, no continente, nas últimas três décadas, a SAU irrigável diminuiu 244,8 mil hectares e a SAU 40,9 mil hectares.

Fig. 2 – Variação da  SAU e da SAU irrigável por região (1989-2019) em termos poporcionais (à esquerda) e em termos absolutos (à direita) (Fonte: INE)

Fig. 2 – Variação da SAU e da SAU irrigável por região (1989-2019) em termos proporcionais (à esquerda) e em termos absolutos (à direita) (Fonte: INE)

Apesar das conhecidas projeções que indicam um enorme crescimento dos riscos de seca e de escassez de água, com especial incidência no sul do país, o Alentejo é a única região onde o regadio está a ter uma forte expansão, essencialmente impulsionado pelo aproveitamento hidroagrícola do Alqueva. Esta situação poderia até ser compreensível se o regadio público estivesse a ser implementado no Alentejo, segundo uma estratégia de equidade e coesão territorial e de promoção da resiliência dos ecossistemas agrários às alterações climáticas, garantindo desta forma, entre outros, a manutenção dos sistemas de montado, a regeneração de solos e a preservação de biodiversidade que hoje estão fortemente ameaçados. Não é disso que se trata, antes pelo contrário. Além de representar uma política de privilégio sobre um reduzido número de explorações agrícolas, a água está a alimentar sistemas de produção danosos para o ambiente e em moldes prejudiciais ao desenvolvimento sustentável do território e às suas populações. É assim com as águas do Alqueva e o olival e amendoal intensivos, mas também em todo o Perímetro de Rega do Mira com os frutos vermelhos e as hortícolas em estufa.

Em tempos de alterações climáticas, os esforços da política pública devem focar-se urgentemente em promover sistemas de produção agrícolas, pecuários e florestais dotados de grande capacidade de resiliência e que contribuam para a coesão territorial e social. O regadio tem um papel relevante neste caminho, mas para isso a aplicação de dinheiros públicos no regadio tem de seguir critérios que respondam ao interesse público. Desde logo, deve ter em consideração critérios de equidade social e territorial, o que não aconteceu quando se decidiu drenar os meios financeiros disponíveis essencialmente a sul do Tejo, ignorando as agriculturas do norte onde o abandono e os riscos de incêndio andam de mãos dadas. Para agravar, o investimento público no regadio foi concretizado de forma a privilegiar um número muito reduzido de explorações agrícolas, deixando de fora 85% das explorações do Alentejo.

No âmbito da consulta pública do Plano Nacional de Investimentos – PNI2030, que previa 250 milhões de euros para a recuperação de regadios públicos degradados e 400 milhões de euros para construção de novos regadios, em abril de 2020, um conjunto de três investigadores da Universidade de Évora apresentou um parecer com vários contributos para a sua reformulação (ver anexo). Destaca-se a apreensão dos mesmos face ao previsto no Plano, que deixa “ao arbítrio dos grandes beneficiários das obras as escolhas e decisões técnicas e económicas”, alertando para os riscos de se repetirem práticas “predadoras dos recursos solo e água, da paisagem e dos ecossistemas”. Os especialistas alertam para a necessidade de dirigir os investimentos em regadio para as culturas onde a produtividade da água é maior, nomeadamente as culturas de outono/inverno e o complementos às culturas de sequeiro. Destacam também a necessidade de apostar no pequeno regadio privado, medida que pode ser menos dispendiosa e possibilitar maior distribuição territorial, social e ambiental dos benefícios da água. Salientam ainda a necessidade de recuperar os níveis de matéria orgânica do solo e a sua capacidade de drenagem, medida que é essencial como resposta às alterações climáticas e que a política de regadio tem de ter em consideração na definição de prioridades. Por fim, recomendam a revisão do programa, de forma a que seja enquadrado numa “proposta sólida e global de desenvolvimento rural, incluindo coerentemente o regadio e as outras atividades agrícolas, florestais e do ambiente”. As principais críticas apresentadas pelos autores foram recentemente replicadas (ver anexo) no âmbito da consulta pública do estudo realizado pela EDIA (ver anexo), “Regadio 2030”, onde se ensaia um investimento superior a 2 mil milhões de euros em regadios públicos para as próximas décadas, com destaque para o Projecto Tejo (assinalado a amarelo). O mapa que se segue reúne as intenções e demonstra que, mais uma vez, além de muita irracionalidade ecológica, as propostas não têm critérios de equidade social e territorial, nem se circunscrevem numa estratégica clara de desenvolvimento rural para o país, respondem apenas aos interesses fundiários, da finança e do grande agronegócio, na sombra do Estado.

Fig. 3 – Mapa de investimentos ensaiados pela EDIA, no estudo Regadio 2030, por econemnda do  Governo (Fonte: EDIA, Regadio 2030, dezembro de 2021)

Fig. 3 – Mapa de investimentos ensaiados pela EDIA, no estudo Regadio 2030, por encomenda do Governo (Fonte: EDIA, Regadio 2030, dezembro de 2021)
Como agravante há ainda o mau desenho da nova política agrícola comum, principal política pública destinada ao investimento privado, onde se inscrevem 10 mil milhões de euros com aplicação até 2027. Havendo mau uso de uma grande fatia deste dinheiro, com entrega de rendas injustificadas, no âmbito da resposta à seca destacam-se os seguintes problemas: há um elevado nível de financiamento público que é aplicado em sistemas de produção lesivos para os recursos naturais, nomeadamente hídricos, e para o interesse público; há um grande incentivo à prática de culturas de regadio com muito baixa produtividade da água, como é o caso do milho para grão; não há uma estratégia robusta de intervenção para melhorar os sistemas de produção baseados em culturas de sequeiro; existem medidas de sobrelucro destinadas a quem possui sistemas de rega mais evoluídos em vez de se aplicar essas verbas na adaptação ao novo clima; não há serviços de extensão rural capazes de apoiar a generalidade dos agricultores na gestão da água.

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