terça-feira, 6 de outubro de 2020

Crónica da Semana - Miguel Sousa Tavares



"(...) O resultado mais notável deste suicídio, o expoente maior deste miserável mundo novo, está à vista de todos: chama-se Donald J. Trump e, para desgraça de todos nós, está à frente da nação mais poderosa do mundo e está sentado em cima de um arsenal de armas capazes de destruir várias vezes o planeta e cuja guarda deveria estar estritamente confiada não só a alguém mentalmente são mas também moralmente decente. Mas Donald Trump não só não preenche nenhum desses dois requisitos como ultrapassa tudo o que os pesadelos mais sombrios se atreviam a imaginar: é provável que seja o ser mais destituído de qualidades humanas que a Humanidade já viu. É a verdadeira encarnação do mal absoluto, do mal sem contenção, nem escrúpulos, nem vergonha. É verdade que a Humanidade já experienciou outros — Hitler, Estaline, Pol Pot —, mas Trump só se distingue deles porque, apesar de tudo e por enquanto, tem a Constituição americana entre ele e os seus desejos mais profundos e porque chegou onde chegou porque foi votado por uma imensa legião, ainda que minoritária, de admiradores do seu estilo e da sua pessoa. E é justamente isso que é aterrorizador. Donald Trump é o resultado perfeito de uma experiência de alquimia social e política que juntou a manipulação e desinformação assumida das redes sociais à sem-vergonha de basear o sucesso de audiências televisivas no espectáculo degradante da canalhice humana. Sirvam-nos o espectáculo de um canalha em todo o seu esplendor, em part-time televisivo, e o povo vai adorar. E, em breve, não passará sem isso, e o canalha transforma-se num herói, o mal transforma-se em inveja e admiração por quem assume, sem dores de alma, que veio ao mundo para triunfar a qualquer preço, sem regras, sem limites éticos, sem dó nem piedade por quem tiver de espezinhar ao longo do caminho. Depois, apresente-se o canalha nas redes sociais como um verdadeiro líder, alguém de quem o país precisa para ser igualmente vencedor. E, no fim, para garantir a vitória, garanta-se o apoio do amigo Putin, que faz dos meios utilizados por Trump o seu objectivo final: desacreditar a superioridade moral das democracias e do Estado de direito.
Quatro anos passados, a mesma imprensa que começou por contemporizar e até aliar-se às redes sociais desgasta-se hoje em inúteis missões de fact-checking sobre elas, gritando para uma plateia surda que o homem já mentiu 3224 vezes desde que está na Casa Branca, que comprou com o dinheiro do pai a entrada em Harvard, ou que adquiriu um atestado médico para não ir para o Vietname, ou que, nos anos em que paga alguma coisa, paga 750 dólares de IRS, ou que tem dívidas a vencerem-se de 421 milhões de dólares de negócios no estrangeiro que o tornam, e à sua política externa, cativo dos credores.
Tudo em vão: a genialidade de Donald Trump, a razão do seu sucesso, não é o facto de tentar passar por um homem sério e um tipo decente e preo­cupado com os outros: é justamente o contrário, o facto de não ter vergonha alguma de ser aquilo que parece, de poder gabar-se de não pagar impostos porque é mais esperto do que os outros. Concedo que é um combate diferente e desigual: trata-se de enfrentar um adversário desprovido de vergonha própria. E um tipo desprovido de vergonha é difícil de enfrentar por gente decente. É coisa nunca vista, uma criatura amoral engendrada nas redes sociais e alimentada pelo pior da natureza humana, que elas cultivam e promovem. Para se consolar ou não ter de se arrepender, muitos justificam o triunfo deste canalha dizendo que metade da América é mesmo assim. E é verdade que é, metade é podre, metade é exuberante: é o único país do mundo capaz de votar tanto num Obama como num Trump. O problema é que o método sem-vergonha de Trump vem conquistando adeptos, devotos e admiradores em todo o mundo, desde o Brasil até Portugal. No “Observador”, suposto fórum da direita inteligente de Portugal, 90% dos comentários dos leitores à notícia das poucas-vergonhas fiscais de Trump eram de apoio a elas. Ou porque a notícia vinha de um jornal “esquerdista” como o “New York Times”, ou porque tínhamos cá igual ou pior do que ele (o que, automaticamente, o absolvia), ou porque não interessava se ele pagava ou não impostos, porque era um grande Presidente, o único capaz de enfrentar a “escumalha socialista”. Bem-vindos ao admirável mundo novo, numa rede social perto de si! Este é um novo tipo de adversários das democracias, este é o chão onde eles nascem e se alimentam, através de um cavalo de Tróia vindo para as destruir, ao alcance de um clique do seu computador.
Dos muitos comentários que li e ouvi sobre o debate em que um carroceiro enfrentou um cavalheiro (gasto e triste, é certo), um foi de uma jornalista da CNN: Trump não estava ali apenas para degradar o debate e torná-lo impossível — estava ali para degradar a própria ideia de democracia. Por isso é que se recusa antecipadamente a aceitar os resultados de 3 de Novembro, se não for ele o vencedor. E di-lo tranquilamente, sem pudor nem escrúpulos de pegar fogo à América, se tal for necessário. A América é ele, tudo o resto é um embaraço constitucional, em vias de ser resolvido. Incapaz de vencer e convencer, Nero pegou fogo a Roma e ficou a assistir da varanda do seu palácio. Trump fará o mesmo: pegará fogo aos Estados Unidos, se não conseguir ganhar a eleição. Mas se, como eu temo, conseguir um segundo mandato, então, sem necessidade de se conter um mínimo a pensar na reeleição, a América e o mundo terão de se preparar para enfrentar mais quatro anos de terror, com um louco narcísico e vingativo à solta, sem pudor em trair os aliados e aliar-se aos ditadores e com um Partido Republicano de alma vendida ao diabo e uma sólida maioria de apoiantes seus, e por ele nomeados, no Supremo Tribunal Federal e em todas as outras esferas de contrapoder. Será uma América irreconhecível e um mundo de respiração suspensa.
Porém, seja qual for o desfecho, o seu veneno já está espalhado pelo mundo. E não será o politicamente correcto a travá-lo nem os extremismos e populismos de sinal oposto, mas sim o regresso ao essencial: o amor à liberdade. Com tudo o que isso significa."

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