quinta-feira, 24 de abril de 2014

A Noite, de José Sarago


40 anos depois do “dia inicial inteiro e limpo”, li 𝑨 𝑵𝒐𝒊𝒕𝒆, de Saramago. Uma peça de teatro que se foca precisamente na noite que antecede à madrugada tão esperada por muitos. Na redacção de um jornal em Lisboa, onde decorre a ação, alguns jornalistas e tipógrafos emergiram do silêncio e puderam enfim manifestar-se e noticiar a verdade tão desejada. Outros, os do poder decisório, os que impunham notícias e artigos de conveniência, os que manipulavam a informação, e os lambe-botas que pretendiam aceder ao poder ficaram desconcertados, incrédulos, acreditando que seria um “outro 16 de Março”, duvidaram do boato que então surgiu de que a revolução já estava na rua.

Num texto organizado em dois actos, Saramago recorre a dezoito personagens envolvidas na produção do jornal que deverá sair na manhã seguinte, para desvendar a censura, o medo, a manipulação, mas também a esperança e o sonho de um novo dia.
Numa escrita clara e concisa com diálogos muito bem estruturados, pela voz de Manuel Torres, redactor de província, que luta pela verdade informativa em confronto com Valadares, chef da redacção, submisso ao poder, à ditadura, o autor traz à reflexão o impacto que a informação tem na sociedade. Os princípios de “objectividade, de ideal, de isenção, de respeito pelo público” tão defendidos hipocritamente por Valadares, estão quebrados quando os jornalistas se limitam ”a assinar um jornal que já vem feito dos coronéis da censura.” (p. 67)

Saramago é implacável, como sempre, e recorrendo à ironia, a sua arma poderosa, na minha opinião, desmonta os vários interesses que existem naquela redacção. No final do primeiro acto, Torres numa acesa discussão com o seu chefe tem uma tirada reveladora sobre a ética e a verdade no jornalismo.

“(…) Não torne a cantar-me as loas da objectividade, e da neutralidade, que é outra palavra que você usa muito. Digo-lhe eu que não há objectividade. Quantos acontecimentos importantes para o mundo se dão diariamente no mundo? Provavelmente milhões! Quantos deles são seleccionados, quantos passam pelo crivo que os transforma em notícias? Quem os escolheu? Segundo que critérios? Para que fins? Que forma tem essa espécie de filtro ao contrário, que intoxica porque não diz a verdade toda? E as notícias falsas, quantas circulam no mundo? Quem as inventa? Com que objetivos? Quem produz a mentira e a transforma em alimento de primeira necessidade? (…) Quem tem o poder, tem a informação que defenderá os interesses do dinheiro que esse poder serve. A informação que nós atiramos Para cima do leitor desorientado é aquela que, em cada momento, melhor convém aos donos do dinheiro. (…)” (pp. 60 e 61)

Hoje, passados 39 anos sobre a escrita deste texto (1979), receio que pouco se tenha alterado. O texto de Saramago continua actualíssimo, apenas mudaram os contextos. Continuamos mergulhados no caos da (des)informação porque o poder é quem mais ordena. Mudam-se os tempos, mas não se mudam as vontades.

Recomendo muito a leitura deste livro de apenas 124 páginas, mas que diz tanto!

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