segunda-feira, 20 de março de 2023

D. Matilde, a doce


Conheci a D. Matilde, nossa caseira (assim se chamavam antigamente os inquilinos) tinha ela 54 anos. Não sabia o ano de nascimento, porque os pais não a baptizaram, mas gostava de pensar que nasceu em 1918, no fim da Guerra. Não me falava muito dos seus pais. Sabia que o pai andou na Guerra e foi filha única. Uma infância triste, pois brincava sozinha todo o ano, à excepção de Agosto, em que a casa de infância se enchia de primos.

Jurou que quando casasse teria muitos filhos. E assim foi. Tinha 15 anos, cabelos loiros, morena, sorridente e olhos azuis, atraía muitos pretendentes. Rejeitou um militar, um polícia e até um estudante de filhos ricos. Conheceu o marido, pedreiro e fadista, de origem alfacinha, numa festa de baile. Dançava a valsa como ninguém. Foi amor assolapado. Tiveram 7 filhos, todos varões. Enviuvou cedo. Tinha apenas 35 anos. A doença dos mineiros, a silicose. Dos sete filhos, 4 zarparam para França.

Prometiam regressar no Natal, para a ver. Os anos passaram, nem telefonemas, nem cartas. Não sabia nada deles. Os outros 3 ficaram, mas só o Fernando a visitava. D. Matilde, agora era uma viúva, toda de escuro, que vivia numa casa-quarto muito escura. Sem electricidade nem água canalizada. Ia tomar banho a uma vizinha no andar de cima, mais ou menos uma vez por semana. Para entrar na casa dela, os meus olhos tinham que se adaptar à escuridão e só depois lá via a sua figura franzina. Cintinha de vespa (quem diria que nasceram 7 filhos?) e a cama, a candeia e a panela de ferro.

Fazia ensopados e sopas como ninguém. Trabalhou na agricultura. Agora, são as vizinhas que a socorrem. Está cansada. 45 anos de trabalho agrícola e de feirante esgotaram-na. Mas sempre que me via, tinha que provar os seus cozinhados. Fazia questão. E que saborosos eles eram. A sopa de favas, de ervilhas, de tomate, de abóbora e couves e feijão eram as minhas favoritas. Quando ela fazia ensopados de borrego ou de coelho, guardava para mim. Depois da Escola, passava por lá, interesseiro, mas ela gostava. Não se importava nada. Aquecia e dava-me o manjar dos deuses.

O Fernando era alto. Não saía à mãe em altura mas ostentava cabelos loiros. Meio-careca. Tinha problemas de álcool. A aldeia ficou em choque, certo dia. A má nova: Fernando, numa noite de muita chuva tinha morrido afogado numa poça num bosquete ali perto. Choramos todos.
D. Matilde nunca mais foi a mesma. Foi morrendo aos poucos. Deitava-se de acordo com as estações do ano. Às 17.00, durante o Inverno. Às 20.30 ou mais tarde um pouquinho, no Verão. No dia seguinte era ouvi-la a falar com os galos, logo às 6-7 horas da manhã. No dia 15 de Agosto de 1975, deitou-se às 18.30. Nunca mais acordou.
Pintura: Salvadore Mangione

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