Até 2030, é necessário acelerar a acção para as sociedades humanas se adaptarem às alterações climáticas causadas pelas emissões de gases com efeito de estufa, se queremos ter alguma oportunidade de limitar o aquecimento global a 1,5 graus acima dos valores anteriores à Revolução Industrial – uma meta ainda possível, mas que se torna cada vez mais distante.
Isto é o que se conclui ao ler o Relatório Síntese do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) divulgado nesta segunda-feira, na Suíça, que faz um resumo de todos os relatórios do 6º Ciclo de Avaliação que foram publicados entre 2018 e 2023, produzidos por um enorme grupo internacional de cientistas que trabalham sob a égide das Nações Unidas para avaliar as marcas das mudanças do clima.
O relatório baseia-se no conteúdo de seis outros: um baseado na Física das Alterações Climáticas, outro nos Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade, um terceiro na Mitigação das Alterações Climáticas. Há também três relatórios especiais: sobre os efeitos de um aquecimento global de 1,5 graus, os Solos e os Oceanos e a Criosfera.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que este relatório era um “guia de sobrevivência para a humanidade”. E acrescentou: “Este relatório é um apelo claro à intensificação de esforços climáticos de cada país e de cada sector e em qualquer período de tempo. O nosso mundo precisa de acção climática em todas as frentes: tudo, em todo o lado, tudo ao mesmo tempo”, disse, fazendo menção ao título do filme que venceu os Óscares este ano.
O resumo do relatório para os decisores políticos coloca nas nossas mãos a responsabilidade sobre o que já é o nosso presente e o nosso futuro: “As nossas escolhas e acções durante esta década terão impactos agora e durante milhares de anos”, lê-se.
“Manter o aquecimento em 1,5 graus Celsius acima dos valores pré-industriais exige reduções rápidas, profundas e sustentadas em todos os sectores. As emissões deviam estar já a reduzir-se e terão de ser cortadas em cerca de metade até 2030, se queremos limitar o aquecimento até 1,5 graus”, lê-se no relatório. É preciso cortar 43% nas nossas emissões de gases com efeito de estufa até 2030, em comparação com os valore de 2019.
Temos de correr em vez de andar
“Estamos a andar, quando devíamos estar a correr”, disse Hoesong Lee, presidente do IPCC, na conferência de imprensa transmitida online em que foi apresentado o documento.
O relatório apresenta as tendências, que não são animadoras. “As reduções até 2030 de gases com efeito de estufa que se deduzem das contribuições determinadas nacionalmente [NDC, a sigla em inglês, os compromissos de cada país para reduzir as suas emissões] anunciadas até Outubro de 2021 tornam provável que o aquecimento exceda 1,5 graus durante o século XXI e tornam mais difícil que o aquecimento fique abaixo de dois graus Celsius”, diz o relatório, que é assinado por 93 cientistas. “Sem um reforço das políticas projecta-se um aquecimento global de 3,2 graus até 2100 (previsão de média confiança)”, acrescentam.
“Há lacunas entre as emissões projectadas a partir das políticas postas em prática e as relatadas nos NDC, e os fluxos financeiros ficam aquém dos níveis necessários para cumprir os objectivos climáticos em todos os sectores e regiões”, escrevem os cientistas, numa avaliação a que é conferido um nível de elevada confiança.
Porém, o documento deixa uma mensagem de esperança: “Há múltiplas opções, eficazes e exequíveis, para reduzir as emissões de gases com efeito de estuda e adaptarmo-nos às alterações climáticas motivadas pela actividade humana, e estão disponíveis já”.
O relatório dá exemplos dessas medidas de adaptação, que podem ser por exemplo conservação dos solos, gestão dos recursos hídricos, diversificação na agricultura, aumentar a presença de espaços verdes nas cidades, restauro de zonas húmidas.
A questão é conseguir aplicar estas soluções com a rapidez e extensão necessárias para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, sublinhou Hoesong Lee. Para isso é preciso aumentar o financiamento da adaptação e mitigação, sobretudo dos países e comunidades mais vulneráveis. Os modelos usados pelo IPCC mostram que seria preciso aumentar três a seis vezes o nível actual de financiamento (público, privado, nacional e internacional) para limitar o aquecimento a 1,5 ou dois graus, em todos os sectores e regiões.
“O acesso ao financiamento permitiria acelerar a acção climática”, diz o relatório. “Pode funcionar como um catalisador para acelerar adaptação e mitigação e permitir o desenvolvimento com resiliência ao clima”, dizem os cientistas.
“Há liquidez e capital global suficiente, dadas as dimensões do sistema financeiro global, mas há barreiras à redirecção do capital para a acção climática, “tanto no sector financeiro como no contexto das vulnerabilidades económicas e da dívida que enfrentam os países em desenvolvimento”, realçam. Reduzir estas barreiras é uma tarefa para os Governos, sublinha o relatório do IPCC.
Actualmente, há mais financiamento a fluir para os combustíveis fósseis do que para adaptação e mitigação (redução de emissões) climática”, refere ainda o documento aprovado este fim-de-semana que é divulgado esta segunda-feira. E, embora a mitigação receba muito mais dinheiro do que a adaptação, ainda assim é muito menos financiamento do que seria necessário.
Proteger os mais pobres
Se já não há dúvida de que a actividade humana está a causar as alterações climáticas, o relatório do IPCC diz-nos que chegou a altura de pagar o preço pelos efeitos que o clima alterado está a ter na nossa vida e na vida da Terra– mais e mais intensas tempestades, cheias, secas, por exemplo?
Temos as provas mais sólidas de sempre que as perdas e danos das alterações climáticas estão a acontecer em todas as regiões, respondeu a uma pergunta do PÚBLICO na conferência de imprensa a partir de Interlaken, na Suíça, o cientista sul-africano Christopher Trisos. “Mas também de que os grupos de mais baixos rendimentos sofrem as maiores lacunas de adaptação”, sublinhou.
Por isso o relatório põe a tónica na necessidade de haver justiça climática, de não serem deixados para trás nos esforços de mitigação e adaptação às alterações climáticas os mais pobres, sejam eles países em desenvolvimento com uma grande dívida externa ou os grupos mais vulneráveis numa sociedade. “Temos um nível alto de confiança nos dados que mostram que há maiores ganhos de bem estar social, sobretudo em áreas urbanas, se dermos prioridade a reduzir os riscos climáticos que atingem os indivíduos de rendimentos mais baixos ou marginalizados”, frisou Christopher Trisos.
A chave é a “a resiliência” climática. “O desenvolvimento resiliente do clima torna-se um desafio cada vez maior com cada incremento do aquecimento. É por isso que as escolhas feitas nos próximos anos desempenharão um papel crucial na decisão do nosso futuro e o das gerações vindouras", sublinha o comunicado de imprensa sobre o relatório.
Para serem eficazes, as escolhas que temos de fazer têm de estar enraizadas nos nossos diversos valores, visões de mundo e conhecimentos, incluindo o conhecimento científico, o conhecimento indígena e o conhecimento local, destaca o comunicado. “Esta abordagem irá facilitar o desenvolvimento resiliente do clima e permitir soluções localmente apropriadas e socialmente aceitáveis", diz o comunicado.
Perdas e danos
"A justiça climática é crucial porque aqueles que menos contribuíram para as alterações climáticas estão a ser desproporcionadamente afectados", disse Aditi Mukherji, uma cientista que está entre os 93 autores deste Relatório de Síntese. A factura a pagar pela crise climática tem sido um dos temas mais polémicos do debate sobre a crise climática.
O relatório traz para o centro das atenções a questão das perdas e danos “que já estamos a sofrer e continuaremos a sofrer no futuro, atingindo os mais pessoas vulneráveis e ecossistemas”, refere o comunicado de imprensa, sublinhando, no entanto, que "tomar agora a acção certa poderia resultar na mudança transformacional essencial para um mundo sustentável e equitativo".
Na cimeira do clima da ONU (COP27) que se realizou no ano passado no Egipto foi, finalmente, aprovada a criação de um mecanismo sobre "perdas e danos" que visa compensar os países mais frágeis. No entanto, o fundo ainda não está criado e há muitas coisas ainda a definir, como quem paga o quê e quem recebe o quê.
"O que precisamos é de vontade política e dos cidadãos, apoio público para que se tomem acções imediatas", sublinhou Hoesong Lee, na conferência de imprensa. Este relatório será a base da avaliação global do ponto em que estamos do cumprimento do Acordo de Paris, que será feita na Cimeira do Clima das Nações Unidas deste ano, a COP28, nos Emirados Árabes Unidos.
Ainda há espaço para alguma esperança no mais recente relatório do IPCC. Mas os avisos soam a verdadeiros ultimatos. Parece que o tempo de perguntar "agora ou nunca" acabou. A acção tem de ser imediata, não há escolha.
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