quarta-feira, 24 de maio de 2023

Mais Habitação: Governo facilita construção em solos rústicos e reserva agrícola


A construção em solo rústico vai passar a ser possível com a aprovação da última peça legislativa incluída no programa Mais Habitação, que altera a Lei de Bases de Uso do Solo, revista em 2014. A construção também será permitida na Reserva Agrícola Nacional (RAN), desde que os municípios classifiquem esses solos como terrenos urbanizáveis.

A principal novidade é a reposição das expectativas dos proprietários, que viram o valor dos prédios rústicos diminuir com a alteração de 2014, ao eliminar o conceito de solo urbanizável.

Portugal tem atualmente duas classificações para o uso dos solos: urbano e rústico. Com a alteração à lei, o Governo quer acabar com os va­zios urbanos, ou seja, terrenos aptos a urbanizar mas que não estão a ser utilizados. A intenção é fomentar a construção de mais habitação, mas a custos controlados.

A ser aprovada, a medida vai acabar com solos urbanos disponíveis nas cidades e vilas mas que permanecem sem construção, beneficiando de impostos mais baixos, enquanto ganham valor.

Mobilizar Solos
Com a alteração prevista irá ainda ser permitido mobilizar os solos da RAN que sejam aptos para construção. A atual legislação referente à classificação de solos e ao ordenamento do território elimina, com efeitos a partir de 31 de dezembro de 2023, a figura dos solos urbanizáveis, consagrada nos planos diretores municipais.

Até 2015, era possível converter automaticamente solo rústico em urbano. Posteriormente, passou a ser exigido um plano de pormenor para urbanizar e tornou-se obrigatória a consulta prévia às várias entidades que intervêm no licenciamento urbano: Redes Energéticas Nacionais, Infraestruturas de Portugal, Agência Portuguesa do Ambiente, comissões de coor­denação e desenvolvimento, e também a deliberação das câmaras municipais, a discussão pública e a votação em assembleia municipal. Um longo e moroso processo a que o Governo quer pôr fim.

Assim, passam a considerar-se como terrenos para construção todos aqueles que, situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, desde que contíguos, sejam comunicados pelos municípios como aptos para construção. Esta comunicação dos municípios deverá ser feita exclusivamente por via eletrónica, através de declaração de modelo oficial a aprovar por portaria, a legislar depois de o Governo obter autorização do Parlamento.

Diz a proposta do Governo que “os prédios rústicos que tendo capacidade construtiva e estando, nomeadamente, em perímetro urbano, e a que não seja dado uso, devem ser objeto de transição para a classificação de terrenos para construção”.

A medida integra o programa Mais Habitação, em que os prédios rústicos que estejam localizados dentro ou fora de um aglomerado urbano — e que sejam identificados pelos municípios e comunicados à Autoridade Tributária e ao contribuinte como aptos para construção — passam a ser considerados terrenos urbanizáveis.

Habitação a Custos Controlados
A reclassificação só é válida para construção de habitação pública ou a custos controlados. A proposta do Governo — que será votada no Parlamento esta sexta-feira — estipula também que a propriedade dos terrenos reclassificados é exclusivamente pública e que um dos critérios é que fiquem situados na contiguidade de solo urbano. A reclassificação dos solos será efetuada através do procedimento de alteração simplificada, sem necessidade de consulta às várias entidades que até aqui tinham de emitir parecer.

Um ‘simplex’ dos procedimentos administrativos e que permite ainda a “cobrança de IMI urbano a prédios rústicos que estão em perímetro urbano”, tal como inscrito no programa Mais Habitação.

Forçar os proprietários dos prédios rústicos e sem uso a construir ou a ceder o terreno para habitação a custos controlados é a génese da proposta do Governo, que não respondeu às perguntas do Expresso sobre esta matéria, para permitir às câmaras municipais, quando verifiquem que há um proprie­tário que não urbaniza um terreno inscrito como rústico, passar a cobrar o IMI urbano com uma taxa maior, porque tem um valor patrimonial tributário mais elevado.

Frederico Moura Sá, especia­lista em planeamento urbano da Universidade de Aveiro, classifica a proposta de “dispensável e com efeitos contrários ao necessário”. O professor considera que as maiores necessidades de habitação estão “nos grandes centros urbanos, onde já não há solos rústicos”. Ocupar solos rústicos “com construção de habitação a custos controlados vai empurrar as pessoas para a periferia e sacrificar o ordenamento do território”, afiança.

Dispersar a Construção
Na prática, o novo regime de uso dos solos “vai dispersar a construção para áreas onde não há infraestruturas, sem acessos, sacrificando solos agrícolas e florestais”, acrescenta o especialista. A alternativa seria, afirma, “consolidar o espaço urbano, onde há ainda muito solo que permite o crescimento da habitação e aproveitando as infraestruturas já construídas”.

Opinião diferente tem Alexandre Roque, sócio da SRS Legal nas áreas do direito do urbanismo e ordenamento do território, segundo o qual a alteração de 2014 “cristalizou o uso dos solos”. O advogado considera que a proposta de lei “tem margem para evoluir e não permite a utilização de solos das Reservas Agrícola e Ecológica”. Na prática, defende, “há uma simplificação do uso do solo que tem um alcance limitado e que deixa de exigir um plano de pormenor, que, em média, não se consegue aprovar em menos de dois anos”. E introduz “segurança jurídica aos proprietários”. Uma proposta de lei que Alexandre Roque vê com “bondade” e que “pode aumentar a perspetiva de utilização de muitos terrenos, ao permitir a construção de habitação”, e ainda com a “dispensa de burocracias”, ao quebrar o pedido prévio de informação que autorizava a construção mas mantinha os terrenos cativos “durante anos”.

Moura e Sá não acredita que assim seja, porque aos “municípios basta comunicarem a alteração de classificação de prédios rústicos para terrenos para construção”.

Aumentar a Especulação
A proposta de lei do Governo “vai permitir ainda que solos em RAN possam ser considerados aptos para construção”, afirma um diretor de urbanismo de uma câmara municipal do litoral. Este responsável, que pediu o anonimato, lembra que a anterior lei tinha o conceito de “solo urbanizável e permitia construir se as autarquias assim o entendessem”. Com a proposta de alteração da lei feita pelo Governo “a passagem de rústico para urbano vai aumentar a especulação do valor dos terrenos, um pouco à semelhança do que aconteceu com as expropriações para a construção das autoestradas”, conclui o responsável. Frederico Moura e Sá tem opinião semelhante: “Os proprietá­rios vão aguardar que o uso dos terrenos rústicos seja alterado para urbano e ganhar mais-valias.” E destaca que “o solo tem outras funções e a resposta à crise na habitação não pode ser feita com sacrifício do ordenamento territorial”, dando continuidade a “um modelo de urbanismo disperso, quando seria mais fácil e económico aproveitar o solo urbano existente, vazios urbanos, onde se pode construir”.

João Fonseca, perito avaliador de imóveis, reconhece que “existem solos urbanos tributados como rústicos, quando, na verdade, são solos urbanos com capacidade construtiva, mesmo dentro das cidades do Porto e de Lisboa”, situações que “permitem desigualdade comparativa: por exemplo, um lote de terreno urbano com 250 metros quadrados para construção de uma moradia pode pagar muito mais IMI do que um lote com 2500 metros quadrados que esteja classificado como rústico”.

Porém, a atual agilização dos solos “já estava prevista na lei”, afirma Frederico Moura Sá. João Fonseca corrobora. O avaliador lembra que, com a lei ainda em vigor, “a reclassificação do solo rústico para solo urbano tem caráter excecional, sendo limitada aos casos de inexistência de áreas urbanas disponíveis e comprovadamente necessárias ao desenvolvimento económico e social e à indispensabilidade de qualificação urbanística, traduzindo uma opção de planeamento sustentável em termos ambientais, patrimoniais, económicos e sociais”.

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