Recusou fazer parte de um filme pop - Matrix - como recusou tudo o que fosse mainstream. Era um provocador, um não-alinhado. E - o que também contribuiu para a sua obra - tinha casa em Alfama.
Jean Baudrillard tinha um apartamento em Alfama.A primeira coisa que fazia quando chegava a Lisboa, diz o filósofo José Gil, era apanhar um táxi e ir directamente para a Fonte da Telha, que considerava uma das suas praias de eleição.
"Gostava muito de Portugal, conhecia muito bem Lisboa", diz Gil, que teve Baudrillard entre a assistência, quando deu aulas no Collège Internationale de Philosophie, em Paris, nos anos 80. Portugal surge como um dos destinos favoritos no quarto volume das suas Cool Memories (cinco livros publicados de 1987 a 2005).
O destino favorito não soube retribuir.
"Era um grande desconhecido aqui em Portugal", diz José Gil, acrescentando, a título de comparação: "Digamos que se o Derrida tivesse uma casa em Alfama e descesse do avião para ir à Fonte da Telha, saber-se-ia quase de certeza."
A filosofia também tem o seu star-system.
Jean Baudrillard, figura tutelar do pós-modernismo francês, morreu anteontem aos 77 anos, vítima de doença prolongada - o anúncio foi feito por Michel Delorme, director da Galilée, a sua editora desde final dos anos 70.
Nuno Nabais, professor de Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa e dono da livraria de filosofia e teatro Eterno Retorno, nota que "em Portugal ninguém lê Baudrillard". (Esta declaração, por si só, arrisca-se a ser tomada como um insulto para os estudantes de Ciências da Comunicação que leram Baudrillard na faculdade, mas não é a isso que ele se refere). "Todos nós temos o nosso mito privado. Eu tenho o mito de que não pertenço à comunidade filosófica em Portugal. Sou um pária. E alimento esse mito lendo Baudrillard. O seu impacto cá é nenhum", diz Nuno Nabais.
José Gil adianta algumas explicações para o facto de o filósofo francês não ser "um nome de referência como foram tantos outros da mesma geração": "por causa das próprias ideias de Baudrillard" e pelo seu pensamento contra-corrente.
A geração de Baudrillard foi prodigiosa, um grupo de pensadores que ganhou influência e notoriedade nos anos 60 e 70, notava ontem o New York Times, "apesar da densidade e dificuldade do seu trabalho". Michel Foucault, Roland Barthes, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Pierre Bourdieu, Gilles Deleuze.
Como afirma Nuno Nabais, Baudrillard "é um dos últimos moicanos de uma geração onde escrever um livro era abrir mais uma trincheira no pensamento". E a posição dele era a de franco-atirador, um não-alinhado. "Foi sempre alguém que teve ideias próprias, diferentes, nunca esteve numa corrente", resume José Gil.
"Ele tinha uma certa distância face ao núcleo duro da filosofia contemporânea dos anos 60 e 70, o que fez da sua obra uma ilha teórica." O obituário do Libération, ontem, assinalava: "fosse qual fosse o assunto abordado, Jean Baudrillard dizia sempre qualquer coisa que nunca ninguém tinha dito".
Esquivou-se a correntes de pensamento como, de resto, recusou colaborar com um filme que o poderia ter relançado como filósofo pop no século XXI - os irmãos Wachowski tentaram por diversas vezes envolvê-lo nas sequelas de Matrix, depois de no filme original, de 1999, o herói protagonizado por Keanu Reeves ser visto com um livro de Baudrillard nas mãos, Simulacros e Simulação.
Teórico radical
Nascido a 20 de Julho de 1929 em Reims, Jean Baudrillard foi o primeiro da sua família a prosseguir estudos universitários. Formado em Germânicas na prestigiada Sorbonne, começou por trabalhar como professor de alemão no ensino secundário, sensivelmente na mesma época em que assinou crítica literária na revista fundada e dirigida por Jean-Paul Sartre, Les Temps Modernes, e traduziu Brecht e Marx, entre outros.
Retoma os estudos superiores, desta vez em Sociologia, onde defenderá uma tese intitulada O Sistema dos Objectos, onde elabora a sua ideia de uma sociedade de consumo actualizando Marx. Em 1968, a tese converte-se no seu primeiro livro, com o mesmo título - hoje um clássico, ao lado de Mitologias, de Roland Barthes.
O seu livro seguinte, A Sociedade de Consumo, irá prosseguir uma leitura simbólica, e negativa, do consumo - a ideia de que, para lá de uma lógica funcional (a satisfação de uma necessidade), os consumidores também obedecem a uma lógica imaterial, imaginária, associada ao preço, à marca ou design do produto, à publicidade, etc.
Nuno Nabais vê nessas teorias "uma certa histeria de denúncia de mecanismos económicos e sociais" que, supostamente regulam a vida social.
O discurso de Baudrillard irá radicalizar-se, com a tese de que vivemos todos num mundo em que a simulação substituiu a realidade. O real objectivo não existe, o que existe é uma hiper-realidade onde predominam representações virtuais do mundo.
José Bragança de Miranda, professor de Comunicação na Faculdade de Ciências sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa - e um estudioso e teórico de conceitos caros a Baudrillard, como a questão da imagem na sociedade contemporânea ou o virtual - criticava ontem no PÚBLICO as teorias de Baudrillard, em particular a do simulacro, considerando-as "exageradas" e antecipando que a sua obra não terá grande futuro.
É verdade que eram exageradas, reconhece Nuno Nabais, mas isso fazia parte do seu estilo. Era, digamos, a sua forma de se fazer ouvir. Sobretudo porque "teve o azar de viver numa altura em que a França estava dominada por paradigmas teóricos quase imperiais." Deleuze, Foucault, Derrida, etc... Baudrillard "inventou um não-lugar que o torna intratável". Talvez por isso nunca tenha colhido grande simpatia entre a comunidade filosófica portuguesa. Em todo o caso, o que Nabais admira nele é o "estar sempre à margem do mainstream".
O Libération fazia ontem o elogio de um homem atento a tudo, de uma curiosidade sem fim: "Ele não falhava nada, nenhum livro, nenhum artigo, nenhum gesto, nenhuma paisagem, uma exposição, um filme, uma expressão num rosto, uma postura, um fato, um lenço, um logotipo, uma sombra, um ecrã de televisão, um candeeiro a gás, o alcatrão molhado da chuva, uma peça de teatro, um conflito político, uma guerra".
"A guerra do Golfo não aconteceu", declarou Baudrillard em 1991, quando os americanos proclamavam vitória sobre Saddam Hussein na sequência da operação Tempestade do Deserto. O argumento: a guerra não tinha sido mais do que um simulacro, cuidadosamente orquestrado pelos media audiovisuais.
No espaço de um ano, após os ataques terroristas do 11 de Setembro, Baudrillard publica vários ensaios no Le Monde, depois reunidos em livro, onde revela um pensamento desalinhado - e provocador - e pouco solidário para com as vítimas da tragédia. Por um lado, afirma que o 11 de Setembro constituiu um acontecimento com o qual o mundo inteiro sonhara (dada a hegemonia americana), por outro lança a dúvida sobre a origem islâmica da destruição do World Trade Center.
Polemista até ao fim, portanto.
Foi uma testemunha atenta da actualidade, do seu tempo - ao ponto de, em 2001, assinar várias crónicas no Libération sobre a versão francesa do reality-show Big Brother.
Apesar da força e notoriedade de algumas das suas teses, "seria muito redutor" tentar definir Baudrillard, defende António Pinto Ribeiro, formado em Filosofia e Comunicação, programador artístico da Fundação Calouste Gulbenkian. "Ele tem várias fases. Uma das suas riquezas é o facto de ter trabalhado em vários assuntos e várias questões paralelamente. Nesse sentido, é um filósofo contemporâneo. Não tem um sistema que encerre todos os problemas. É um autor da disseminação de ideias."
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