Videodança -Rosas danst Rosas/ Anne Teresa De Keersmaeker
Leitura simbólica e filosófica de Rosas danst Rosas
1. O corpo como linguagem e pensamento
Anne Teresa De Keersmaeker parte da ideia de que o corpo pensa — que o gesto é uma forma de raciocínio.
Em “Rosas danst Rosas”, o corpo deixa de ser mero instrumento expressivo e torna-se um sujeito que reflete, insiste e questiona.
A repetição de movimentos banais (mexer o cabelo, cruzar as pernas, cair, reerguer-se) torna-se uma meditação física sobre a existência:
“Sou corpo, logo insisto.”
Assim, a peça aproxima-se de uma fenomenologia do corpo, no sentido de Merleau-Ponty — o corpo como modo de estar-no-mundo, como consciência encarnada.
2. Repetição e diferença
A repetição obsessiva dos gestos não é redundante; é criadora.
Inspirada no pensamento de Gilles Deleuze, podemos ver aqui uma “repetição que gera diferença”:
cada volta, cada gesto repetido, transforma-se subtilmente — porque o tempo, o corpo e a intenção mudam.
A dança torna-se um laboratório da diferença no seio do idêntico.
Esta repetição também evoca o ciclo da vida: o nascer, o cansar-se, o recomeçar — um ritmo existencial que espelha o modo como o ser humano insiste na construção do sentido.
3. O feminino como resistência
A presença de quatro mulheres que dançam até à exaustão é simultaneamente um gesto de poder e vulnerabilidade.
Os gestos femininos, por vezes sensuais ou domésticos, são reapropriados e amplificados, libertando-os da sua carga social ou sexualizada.
A mulher não é objeto, mas sujeito da sua própria repetição.
O corpo feminino, ao resistir à fadiga e à monotonia, afirma-se como força criadora, como uma espécie de revolta silenciosa.
Neste sentido, a obra pode ser lida como um manifesto feminista do corpo — não por representar “a mulher”, mas por fazer do corpo feminino um espaço de pensamento e autonomia.
4. O tempo e a duração
A peça é também uma reflexão sobre o tempo vivido — o tempo que não corre “para a frente”, mas que se dobra, se repete, se expande.
O tempo na dança é corporal: o público sente o peso da duração, o tédio que se transforma em transe.
Há aqui um eco de Henri Bergson, que via a duração (durée) como uma experiência interior, fluida e não mensurável.
“Rosas danst Rosas” faz o espectador sentir o tempo como matéria física, como respiração, como desgaste e renascimento.
5. A coletividade e o indivíduo
As quatro intérpretes formam uma unidade, mas cada uma tem um ritmo ligeiramente distinto — como vozes de um mesmo coro.
Simbolicamente, isso reflete o tenso equilíbrio entre o coletivo e o singular, entre o eu e o outro.
É uma metáfora da coexistência humana: seres que repetem o mesmo padrão, mas cada um à sua maneira, num mundo que partilham.
6. A estética do essencial
De Keersmaeker retira tudo o que é decorativo. O cenário é austero, o figurino simples, os movimentos mínimos.
Esse despojamento é ético — é uma busca pela verdade do movimento, pela essência da presença.
Nesse sentido, a coreografia aproxima-se de uma espiritualidade laica, onde o gesto repetido se torna ritual e meditação.
✨ Síntese filosófica
Em “Rosas danst Rosas”, o corpo:
Pensa (fenomenologia do gesto);
Repete e transforma (Deleuze: diferença na repetição);
Resiste e afirma-se (feminismo existencial);
Habita o tempo (Bergson: duração vivida);
Partilha e coexiste (ética do coletivo).
A obra, portanto, é uma metáfora do ser humano no mundo: persistente, cíclico, sensível, vulnerável e criador.
É uma dança da existência — onde o movimento é pensamento e o cansaço é revelação.
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