segunda-feira, 3 de junho de 2024

Ideia peregrina- bisontes europeus em Portugal


Texto de Luís Vicente, Biólogo

Esta vai ser longa porque me tirou do sério.
Por definição, uma ideia peregrina é uma solução ou proposta muito estranha ou desadequada.
Tento traduzir para inglês e o melhor que consigo é “a peculiar form of madness”.
Acho que serve!
Pode haver ideias peregrinas inofensivas (pelo menos para a comunidade) e que só afectam o idiota. Confesso que pensei que “idiota” poderia ser uma pessoa com ideias. Contudo, consultados os dicionários, concluo que o termo se aplica apenas a quem denota estupidez. Pronto. Em inglês poderia ser “jerk” ou “asshole”.
E até existem os Prémios Darwin para essas pessoas.
Para quem não sabe, os Prémios Darwin sãoatribuídos àqueles que cometem erros tão estúpidos que levam à incapacidade de legar aos seus descendentes as suas características, dessa forma contribuindo para melhorar o pool genético da humanidade e para a diminuição da estupidez.
Uma ideia peregrina inofensiva para a humanidade é, por exemplo, um tipo atirar-se do Cabo Girão acreditando que consegue voar. Só o afecta a ele e talvez entristeça os que lhe são mais próximos.
Eu também já tive ideias peregrinas. Recordo-me de, ainda no liceu, tomar anfetaminas para um exame. Era um exame escrito, de História. Creio que nunca escrevi tanto na vida e... chumbei... os disparates foram mais do que muitos.
Mas há as ideias peregrinas perigosas e que nos põem a todos em perigo.
As ideias peregrinas perigosas geram confusões e calafrios. Vêm de gente que, afirmando-se cientistas, desconhecem as diferenças entre ciência básica, ciência aplicada, técnica e indústria.
Não submetem as suas especulações a qualquer prova, são dogmáticos, negam a crítica, utilizam argumentos “ad hominem” e “ad verecundiam” em vez de argumentos honestos. É, por exemplo, afirmar que a sua teoria (pobre teoria), se baseia no “estudo de uma universidade!” Poderíamos dizer que vendem “gato por lebre”!
E os incautos caiem na esparrela.
Mas atenção, as ideias peregrinas podem ser muito perigosas quando, com argumentos pseudocientíficos, são postas em prática. O estalinismo e o nazismo foram pródigos nestas coisas.
Confunde-se ciência com pseudociência… e no fim actuam com base em nada.
Recordo-me, há uns anos, do extermínio de ratos e coelhos na Berlenga... com base em nada.
Agora tornam-se moda as introduções, ou reintroduções.
A notícia fantástica, segundo o DN (e passo a citar): “A primeira manada de bisontes europeus, constituída por oito animais, foi instalada em Portugal, numa herdade em Castelo Branco, anunciou hoje a organização responsável pela operação. De acordo com a Rewilding Portugal, a presença dos animais vai estimular a biodiversidade e apoiar o crescimento do turismo de natureza”.
Fiquei boquiaberto... com base em quê?
Uma reintrodução? Não! Não há registos fósseis de bisonte europeu (Bison bonasus) no nosso território. O que terá ocorrido por aqui terá sido o bisonte-da-estepe (Bison priscus), provavelmente um antepassado do Bison bonascus. Há uma imagem lindíssima nas paredes de Altamira.
Mas terão os promotores do projecto reflectido sobre a extinção aqui do bisonte-da-estepe após o pleniglaciar de Würm? Talvez valesse a pena.
E introduz-se assim à Lagardère?
[A expressão “à Lagardère” é utilizada quando alguém faz algo com atrevimento, mas sem medir bem as consequências. Esta expressão refere-se a Lagardère, herói da obra de Paul Féval intitulada Le Bossu (O Corcunda) e publicada em França em 1858.]
Na mesma lógica do Rewilding Portugal (nome da entidade responsável pela ideia peregrina) poderíamos pensar noutras introduções ou reintroduções com vista ao turismo ou a uma pseudo-conservação da Natureza.
No Plistocénico havia por aqui Mamutes (Mammuthus primigenius) os quais, como os elefantes actuais pertencem à família Elephantidae incluída nos proboscídeos. Cá por mim proponho o Elefante-da-floresta (Loxodonta cyclotis), talvez nas zonas de olival intensivo do Baixo Alentejo. Que turístico seria ir vê-los a chafurdar nas margens do Alqueva. Como já houve hienas por aqui, como a Hiena-das-cavernas (Crocuta crocuta spelaea), porque não, no meio dos rebanhos da Serra da Estrela introduzir Hiena-malhada (Crocuta crocuta)? A diferença é apenas subespecífica (interrogo-me sobre se os promotores do Rewilding Portugal serão capazes de me explicar, à luz do Código Internacional de Nomenclatura Zoológica, o que é uma sub-espécie).
E obviamente há mais. Para a Mata da Margaraça mandava Rinocerontes. Há registos fósseis do género Dicerorhinus na nossa península. Talvez aquela malta do sul da Ásia queira negociar connosco a venda de alguns Rinocerontes-de-Sumatra (Dicerorhinus sumatrensis). Que giro seria levar os turistas à Fraga da Pena para se deliciarem com os rinocerontes.
E tantos mais. Também há registos fósseis de leões e leopardos por aqui. Porque não? E crocodilos no Douro? Os fósseis também existem.
Mas falemos mais a sério. Será que as gentes do Rewilding Portugal sabem alguma coisa sobre evolução ou sobre ecologia? Sabem o que é um ecossistema? Sabem o que são zonas adaptativas? Terão algumas noções sobre nicho ecológico? Não me parece, mas talvez não lhes fizesse mal estudar.
De acordo com a Rewilding Portugal, a presença dos animais vai estimular a biodiversidade e apoiar o crescimento do turismo de natureza.
Saberão o que é biodiversidade? Saberão medi-la? Saberão que grande parte da nossa biodiversidade depende dos extratos herbáceo e arbustivo. Micromamíferos, aves, anfíbios, répteis, insectos, muitos polinizadores?
Saberão que os riscos de incêndio resultam, maioritariamente, de desordenamento do território e de péssimas políticas florestais, em particular na região mediterrânica onde os fogos são recorrentes?
Dizem eles: “Como grandes herbívoros, os animais diminuirão o risco de incêndios catastróficos, ao reduzirem a vegetação inflamável e criando corta-fogos naturais, enquanto abrem áreas florestais, o que permite a entrada de mais luz e o crescimento de erva em vez de mato”. Só uma perguntinha de biólogo, o que é “mato”?
Chegam a dizer que os bisontes são sequestradores de carbono e emissores de metano... fantástico. Afinal sempre vamos cumprir as metas da descarbonização! Isso é bom?
Bom, perdi a paciência. Já descarreguei.
Poderia escrever tanto aqui que todos perderiam a paciência de ler o meu texto.
Vivam as ideias peregrinas!!!
E fica uma pergunta: quem lucra com elas?

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