O Presidente da República invocou o “interesse nacional” para anunciar que vai ao Catar e ao Mundial de Futebol, mas nas declarações que fez aos jornalistas Marcelo Rebelo de Sousa foi mais longe: disse que se seguisse uma lógica de não visitar países não democráticos, seria impossível "visitar, receber ou ter relações" com "três quartos do mundo, que são ditaduras". Mas é mesmo assim? Três quartos do mundo são ditaduras? Não é isso que os dados disponíveis mostram.
Um dos mais respeitados indicadores para avaliar o nível democrático dos países é o Índice de Democracia, publicado anualmente pela revista The Economist desde 2006. Trata-se de uma tabela que analisa os dados de vários países tendo em conta cinco critérios: o processo eleitoral e o pluralismo, o funcionamento dos governos, a participação política dos cidadãos, a cultura política e as liberdades civis.
O Índice de Democracia publicado em 2022, com os dados do ano passado, analisa 167 dos 193 países reconhecidos pelas Nações Unidas e as conclusões do relatório indicam que, atualmente, existem 59 regimes autoritários, ou seja, 59 países que são considerados governos ditatoriais. Os regimes são classificados como autoritários quando não têm eleições livres e justas, quando existem abusos e violação de liberdades civis, controlo da imprensa, censura ou repressão e quando o sistema judicial não é independente. Assim sendo, as ditaduras representam 35% dos países avaliados.
Há ainda 34 regimes híbridos, países cuja transição de governo autoritário para uma democracia está ainda muito incompleta: as eleições têm irregularidades, existe pressão do governo sobre os partidos e candidatos da oposição, falhas na cultura política, no funcionamento do governo e na participação política e onde a corrupção tende a ser generalizada. Ora, mesmo que estes 34 países “híbridos”, onde se incluem por exemplo a Turquia e o México, fossem considerados ditaduras estaríamos a falar de uma percentagem de 56%, ainda longe dos 75% que o Presidente da República refere.
Para se ter uma ideia, nesta lista há 21 países que são democracias plenas e 53 países democracias com falhas. As democracias plenas são os países nos quais as liberdades políticas e civis são respeitadas e sustentadas por uma cultura política propícia ao florescimento da democracia. O funcionamento do governo é satisfatório, a imprensa é independente e diversa, o sistema judicial é independente. Já nas democracias com falhas existem fragilidades como problemas de governação, uma cultura política subdesenvolvida e baixos níveis de participação política. Portugal, por exemplo, está no 28.º lugar do ranking e é considerado uma democracia com falhas.
Já o Catar é classificado como um regime autoritário. De resto, a realização deste Mundial de Futebol tem estado envolta em grande polémica e um dos motivos é o facto de se tratar de um país onde os direitos das mulheres e das minorias como os homossexuais são reprimidos. As mulheres, por exemplo, dependem da autorização de um homem para (quase) tudo num sistema de “tutela masculina” - atribuída geralmente ao marido, pai, irmão, avô ou tio.
Por outro lado, milhares de imigrantes terão morrido na construção dos estádios e das infraestruturas para o Campeonato do Mundo. O jornal britânico The Guardian revelou que pelo menos 6.500 migrantes da Índia, do Paquistão, do Nepal, do Bangladesh e do Sri Lanka terão morrido, mas que se trata apenas de uma estimativa e o número real de vidas perdidas pode ser superior. As próprias condições de trabalho foram criticadas, já que incluem horários semelhantes a trabalho forçado, falta de folgas, salários reduzidos arbitrariamente e passaportes confiscados.
Direitos humanos que estão no cerne da polémica causada pelas declarações de Marcelo Rebelo de Sousa após o jogo Portugal-Nigéria, em Alvalade. "O Catar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal..., mas, enfim, esqueçamos isto", afirmou o Presidente da República, na zona das entrevistas rápidas. Palavras que têm merecido duras críticas por parte de partidos políticos e da própria Amnistia Internacional em Portugal. Pedro Neto, diretor-executivo da Amnistia em Portugal admitiu ainda ter ficado "muito preocupado" com as declarações do chefe de Estado português, "uma pessoa que está sempre na linha da frente pela defesa dos direitos humanos" mas que "desvalorizou a situação dos direitos humanos no Catar".
Confrontado com as críticas, o chefe de Estado salientou esta sexta-feira que foi ele quem tomou a iniciativa de abordar a questão dos direitos humanos e garantiu que se o Parlamento aprovar a sua deslocação ao Catar falará sobre o tema no país do Médio Oriente.
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