Fonte: Visão |
Se não faz sentido culpar as tecnologias pela crise, é urgente pressionar os governos a agir. No plano individual, quebrar a corrente do mal também é abrir os olhos e verificar informação. Se não devemos acreditar em tudo o que vemos na televisão, não devemos acreditar em nada do que nos chega ao telemóvel.
Depois de um verão fatalmente inesquecível, a Europa volta ao trabalho. Há quem regresse ao escritório com a sombra da máscara no bronzeado, cunhando uma nova estirpe do bronze à camionista: o bronze à cirurgião. Infelizmente, também há drama nesta piada. Se os media estão, em grande medida, hipnotizados com a Covid, acompanhando com os olhos o pêndulo dos boletins diários, há quem já trema, farejando o profundo impacto na psique coletiva, que, a par com o lodo económico, ameaça seriamente a nossa paz e a democracia.
Entre os fenómenos contemporâneos que mais preocupam sociólogos, políticos, psicólogos e cidadãos atentos, as redes sociais estão no topo pelo modo como têm transformado a ordem mundial e o comportamento humano. Em The Social Dilemma, documentário estreado no mês passado, Jeff Orlowski escancara o submundo das gigantes tecnológicas, tornando óbvia a sua ameaça à nossa ideia de civilização, num registo netflixiano e, portanto, bastante acessível. Vejam. Em suma, os mesmos Facebooks, Twitters, Instagrams e Whatsapps que nos ligam, cujos lados positivos são evidentes e fantásticos, estão, na penumbra, a destruir as sociedades como as conhecemos.
No filme, descartam-se intenções maléficas por parte das empresas americanas, deixando a nu uma verdade ainda mais difícil de aceitar: a maquinal erosão do tecido democrático – garantia imperfeita, porém a única que temos, da paz e dos valores humanos – é feita estritamente em prol do lucro. Por outras palavras, se seria estranho crer que a radicalização política, a polarização da opinião pública, o declínio global da saúde mental e a desestabilização da coesão social que resultam destas plataformas fossem frutos de uma vil conspiração globalista, é absolutamente inaceitável acatá-las enquanto meras consequências do enriquecimento de alguém. Lutar pela regulamentação dos titãs tecnológicos é uma das grandes causas democráticas do século.
Whatsapp. Já aqui escrevi sobre o flagelo das notícias falsas, divulgadas à luz do dia. Hoje, gostaria de me dedicar ao perigo da aplicação aparentemente mais inofensiva e, no entanto, aquela que alimenta o secretismo corrosivo em maior escala. Em julho, William Davies escreveu no The Guardian sobre como os grupos no Whatsapp são veículo por excelência do discurso de ódio e da desconfiança nas instituições públicas. Se a eleição de Trump e o Brexit aconteceram, em parte, graças a campanhas de desinformação e manipulação no Facebook, podemos ligar ao Whatsapp a eleição de Bolsonaro, no Brasil, ou de Modi, na Índia. O medo, a desconfiança e as mais absurdas suspeitas escorrem nesta aplicação, cujo rol de funcionalidades facilita a partilha instantânea e massificada de conteúdos, garantindo um clima de secretismo, anonimato e encriptação, sem contraponto nem escrutínio – o habitat perfeito para a manipulação política de uma opinião pública volátil. É árduo aceitar que o mesmo espaço onde trocamos sorrisos e beijos virtuais com os nossos queridos também é isto, mas é a realidade.
O Whatsapp foi a rede social que mais se expandiu com a pandemia, chegando a crescer 76% em Espanha, durante o confinamento. O problema? Se, no início da pandemia, as comunidades se organizaram na rede social para o bem – distribuição de alimentos, informações locais, apoio aos mais frágeis -, também foi lá que, da noite para o dia, se instalou o pânico e a loucura da desinformação sobre o novo coronavírus, que perdura até hoje.
Tudo começou com mensagens áudio. Alegadamente gravadas por alguém que trabalhava nos hospitais, as partilhas inundaram o país. De seguida, vieram as mais estapafúrdias teorias da conspiração – as quais, ao contrário do que pensamos, muita gente compra. No meu caso, acharia, por exemplo, impensável que um adulto formado pudesse acreditar na teoria de que o vírus está a ser disseminado pelas antenas de rede móvel 5G. No Reino Unido, só no fim de semana de Páscoa, houve dezenas de tentativas de incêndio a antenas telefónicas, por pessoas convencidas de que era verdade. É tão caricato como trágico, pelo modo como expõe a vertiginosa facilidade em manipular pessoas numa sociedade dita instruída. O mais bizarro? A fórmula recalca-se em grande parte dos países. Em Itália, Espanha e Reino Unido, até as mensagens áudio foram iguais, nos respectivos idiomas, gravadas por um suposto familiar, não sei quê não sei aonde, do interior de um hospital dos serviços nacionais de saúde, tal e qual como cá.
Hoje, os mesmos grupos onde entraram as primeiras mensagens sobre a pandemia são, parte deles, destilarias de ódio e desinformação sobre o governo, os imigrantes, a ONU ou a União Europeia. Nisto, não são diferentes dos grupos pré-Covid. Os grupos Whatsapp criam-se, por norma, para juntar pessoas, organizar uma festa ou mobilizar uma equipa, acabando por ser tomados, na melhor das hipóteses, por indivíduos com tempo livre a mais, na pior, por pequenos líderes de opinião. Aí, os grupos transformam-se em comunidades autónomas de faits divers onde os seus membros experienciam, por vezes, uma espécie de sigilo excitante, um sentimento de matilha, de “ninguém nos está a ver”, e onde se partilha tudo: vídeos de cãezinhos, recordações da bebedeira em casa do Zé, o golo do Bayern em câmara lenta ou o testemunho viral de um ex-militar racista que agora apoia o Chega. É ridículo, mas todos já testemunhámos isto. Do gato a andar de skate à montagem manhosa sobre o Rendimento Social de Inserção, com informação falsa, mas cativante e sem qualquer verificação, vai uma distância que não respeita as orientações da DGS. As teorias da conspiração insistem, aliás, num tom que anuncia a “verdade escondida” ao pobre “cidadão de bem”, nutrindo-se de um clima intencionalmente paranoide. A dinâmica do grupinho oculto parece feita à medida.
Na Índia, boatos partilhados em grupos familiares têm levado a motins e mortes concretas. Em Portugal, o grupo racista de extrema-direita Nova Ordem de Avis organizou-se no Whatsapp, tal como várias das diversas manifestações fascistas que, apesar de microscópicas, têm proliferado. Em Espanha, o Whatsapp é a maior aposta do VOX, partido populista de extrema-direita. O fenómeno é colossal. Por muito que nenhum de nós tenha, jamais, pertencido a estes grupos, qualquer pessoa com Whatsapp já deu por si, ou pelos seus, em grupos duvidosos, de teor político ou social não assumido. Muito boa gente pertence a grupos assim, repletos de notícias falsas e mensagens de ódio disfarçadas, a convite do Nelson do ginásio ou da Carla do pilates, que também são muito boa gente. O Whatsapp é uma ferramenta excelente, mas está a ser utilizado para o pior. Deixar que mensagens extremistas, destinadas a gerar o caos, o medo e o desespero, se entranhem deste modo na nossa sociedade é entregar de bandeja o futuro aos oportunistas que capitalizam esses males. Alerta vermelho, Democracia.
Defender a democracia é, hoje, regulamentar o tumor, ora benigno, ora maligno, em que as redes sociais se tornaram. Se não faz sentido culpar as tecnologias pela crise, é urgente pressionar os governos a agir. No plano individual, quebrar a corrente do mal também é abrir os olhos e verificar informação. Se não devemos acreditar em tudo o que vemos na televisão, não devemos acreditar em nada do que nos chega ao telemóvel.
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